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ARQUEOLOGIA PÚBLICA, UNIVERSIDADE PÚBLICA E CIDADANIA

Jorge Eremites de Oliveira[1]

Resumo: Este artigo discute a prática da Arqueologia pública no âmbito da universidade pública brasileira, desenvolvida com vistas a contribuir para a construção de uma cidadania popular, na qual as pessoas possam atuar como agentes históricos plenos.

Abstract: This article discusses the practice of the public Archeology in the extent of the Brazilian public university, developed with views to contribute for the construction of a popular citizenship, in the which the people can act as full historical agents.

Palavras-chave: Arqueologia, Universidade, Cidadania.

Key words: Archaeology, University, Citizenship.

“Por que devemos tentar atingir o público? Por que não nos contentamos em ser um grupo minoritário e atrair uma pequena elite, que apreciará totalmente nossos métodos e nossas sutis abordagens em relação ao passado?

Precisamos realmente de um público informado; não podemos nos dar o luxo de ficar isolados. A arqueologia necessita da compreensão e da colaboração do fazendeiro, do garimpeiro e do mateiro. Um público interessado e informado não destruirá seu próprio passado (nossa matéria-prima)” (Philip Rahtz, 1989:165).

            Desde a década de 1980, com o fim do regime militar (1964-1985) e o início oficial do processo de redemocratização do Brasil, a Arqueologia feita no país vem dando cada vez mais demonstrações de estar conquistando um outro momento, o momento atual, marcado por uma série de transformações epistemológicas, verdadeiras mudanças de nuances como Walter A. Neves (1988) havia proposto durante a V Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, realizada na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, em 1989. Muitas dessas transformações passaram a acontecer com o surgimento de uma nova geração de arqueólogos pós-graduados nas duas últimas décadas do século XX, via de regra sob influência de muitos dos mais recentes avanços registrados na Arqueologia mundial, especialmente o Processualismo e o Pós-processualismo.

            As análises de Betty Jane Meggers (1985), Walter A. Neves (1988), Pedro Ignacio Schmitz (1994), Pedro Paulo A. Funari (1989, 1992, 1994a, 1994b, 1998, 1999, 1999/2000, 2000), Cristina Barreto (1998, 1999, 1999/2000) e Tania A. Lima (2000), dentre outros autores, apontam, ainda que sob diferentes pontos de vista em certos aspectos, para essa situação de transição, oxalá rumo a uma Arqueologia Brasileira mais crítica, reflexiva, heterogênea, holística, plural e dedutiva, mais engajada do ponto de vista social e melhor preparada em termos teórico-metodológicos. Essas mudanças, ainda em curso e de difícil avaliação no calor dos acontecimentos, têm aproximado cada vez mais os arqueólogos de outros cientistas sociais e estimulado o surgimento de um ambiente mais aberto a profícuos debates sobre a Arqueologia e seus campos interdisciplinares, dentre outras temáticas. Além disso, essa nova geração de arqueólogos, da qual também fazem parte os chamados e assim auto-denominados jovens arqueólogos, embora sendo heterogênea em sua totalidade, vem derrubando muitas das barreiras impostas pela geração anterior, sobretudo no que diz respeito à relação entre arqueólogos e o público em geral. Sua produção científica gradativamente está rompendo com velhos paradigmas e lançando novas luzes e perspectivas sobre a Arqueologia Brasileira. Talvez o exemplo mais recente tenha sido a publicação do dossiê Antes de Cabral: Arqueologia Brasileira, organizado por Walter A. Neves (1999/2000) e publicado na Revista USP, um dos mais respeitados periódicos nacionais.

            O caráter epistemológico das ações dessa nova geração está, ao meu ver, em ter consciência de que a Arqueologia, assim como qualquer outra ciência criada pelo homem, não é, nunca foi e jamais será neutra, pois o arqueólogo enquanto cidadão da pólis está inserido em um contexto econômico e político-social que marca a vida em sociedade (Funari, 1988; Trigger, 1989, 1990). Esta constatação pode parecer óbvia para outros cientistas sociais, mas acontece que na Arqueologia Brasileira, especialmente em algumas instituições de pesquisa, durante anos predominou um certo discurso de neutralidade científica, também recorrido com vistas a defender a tese de que o papel do arqueólogo era produzir novos conhecimentos, sem contudo ter algum tipo de engajamento político e social. Um pensamento assim por certo não pode ser historicamente descontextualizado de seu tempo, haja vista que teve maior ressonância na época do regime militar (1964-1985), período em que não raramente os opositores da ordem vigente foram perseguidos, presos, torturados e até assassinados.

            Em meio a essas mudanças, a discussão em torno da Arqueologia pública, compreendida como uma Arqueologia aberta para o público e que aspira, para mais ou para menos, um engajamento social por parte dos arqueólogos, torna-se oportuna e necessária para um (re)pensar permanente sobre os rumos da Arqueologia Brasileira. No caso da Arqueologia pública praticada na universidade pública, uma reflexão crítica traz à tona, pois, não somente diferentes concepções sobre o papel da universidade pública e gratuita brasileira, mas também diferentes práticas de engajamento social em contextos regionais particulares, cujo debate é bastante oportuno neste início de milênio, mais um momento de crise para as instituições federais e estaduais de ensino superior.

            Assim, o presente artigo tem por finalidade apresentar algumas reflexões e relatos sobre a prática da Arqueologia pública no contexto da universidade pública brasileira, também tratando de questões pontuais de interesse ao debate sobre as relações existentes entre arqueólogos e o público em geral, incluindo populações indígenas, bem como sua práxis educacional no ensino superior e a questão da preservação de bens culturais.

DIFERENTES VISÕES SOBRE A UNIVERSIDADE PÚBLICA

            De início, uma primeira questão vem à tona e merece ser respondida de pronto: qual a universidade pública que queremos? Atualmente, duas concepções estão sendo debatidas no Brasil: a oficial, defendida pelo atual governo federal e seus pensadores; e a alternativa, defendida pelo movimento docente e seus teóricos. Um dos maiores debates sobre o assunto ocorreu durante o lançamento público do IV Congresso da USP, ocorrido em setembro de 2000, protagonizado por Bresser Pereira e Marilena Chauí.

            A primeira concepção é a de universidade produtivista, concebida nos moldes das “organizações sociais” propostas pelo ex-ministro Bresser Pereira (2000), um dos principais pensadores da reforma do Estado implantada pelo governo federal desde 1995, início do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). A proposta de Bresser baseia-se mais ou menos nos modelos estadunidense e britânico de universidade e está fundamentado em três idéias centrais: 1) competitividade no nível nacional e internacional; 2) autonomia administrativa e financeira; 3) financiamento feito pelo Estado, através de recursos adequados, porém de acordo com a qualidade de trabalho que realiza as instituições (produção). Seu modelo, entretanto, não prevê a gratuidade do ensino superior e não implica, necessariamente, na defesa da manutenção das universidades federais, por exemplo. Na concepção do ex-ministro do governo FHC, a universidade produtivista deve ser crítica na produção e no ensino de novos conhecimentos, devendo existir em função do interesse público, o qual não necessariamente deve ser compreendido como estatal.

            Na verdade, as “organizações sociais” propostas pelo governo federal são instituições prestadoras de serviços que celebram “contratos de gestão” com o Estado. Seu pressuposto ideológico está diretamente associado à tese de que o mercado é portador de uma racionalidade sócio-política e que, portanto, é o principal agente provedor do bem-estar social da república. Em outras palavras, uma universidade concebida como “organização social” é uma universidade operacional, posicionada no setor de prestação de serviços e que possui, em síntese, uma autonomia reduzida à gestão de receitas (Chauí, 1999). Este é modelo de universidade que o Ministério da Educação (MEC) defende no governo FHC.

            O modelo de universidade operacional, por sua vez, tem beneficiado o crescimento da Arqueologia por contrato no Brasil, principalmente através de contratos firmados entre as fundações existentes nas universidades federais e estaduais e os mais variados tipos de clientes, seja o próprio Estado, seja o setor privado. Isso significa que as universidades públicas brasileiras estão sendo cada vez mais influenciadas pelas leis de mercado, isto é, pelo capital. Particularmente, não sou contra o crescimento da Arqueologia por contrato nas universidades públicas, mas não a vejo como um fim, senão como um meio, uma estratégia para captar recursos a serem investidos no desenvolvimento de pesquisas de resolução de problemas e atividades de ensino e extensão, as quais visem a preservação de bens culturais e a produção de novos conhecimentos, dentre outras ações ligadas ao exercício da profissão de arqueólogo. Não se pode negar, por exemplo, a contribuição que a Arqueologia por contrato vem dando em termos teórico-metodológicos e na produção de novos conhecimentos, bem como para a preservação de bens culturais, conforme está bastante claro nas análises publicadas em Caldarelli (1997) e feitas por Caldarelli (1999) e Caldarelli & Santos (1999/2000). Porém, é correto a afirmativa de com ela surgiram e vêm surgindo novos dilemas éticos a serem enfrentados pela comunidade de arqueólogos que atuam no país, questão esta que tem preocupado a própria Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), entidade que participou, juntamente com o Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia (IGPA), órgão pertencente à Universidade Católica de Goiás (UCG), da organização do simpósio A Arqueologia no Meio Empresarial, ocorrido de 28 a 31/8/2000, em Goiânia, um importante evento que tratou especialmente da realidade da Arqueologia por contrato no país.

            A segunda concepção, por seu turno, é a de universidade crítica, defendida pelo movimento docente das universidades públicas do país, federais e estaduais, que tem na filósofa Marilena Chauí (1999, 2000) uma de suas mais renomadas teóricas. A idéia de universidade crítica pressupõe uma universidade livre das imposições ditadas pelas leis de mercado, com autonomia do saber, que saiba compreender, explicar e interpretar o mercado e o processo de articulação interna entre todas as instituições sociais existentes na sociedade capitalista. Além disso, uma universidade crítica é aquela que sabe resistir às imposições do mercado, à lógica do capital, combatendo-o no âmbito da teoria e da prática e reiterando a tese de que a educação pública e gratuita, em todos os níveis (fundamental, médio e superior), é um direito historicamente conquistado pelos cidadãos brasileiros. Nessa visão, a universidade pública deve ter autonomia de conhecimento, administrativa e financeira, sem o fetichismo da lei, da burocracia estatal, compreendida como uma forma de exercício do poder, anti-democrática por excelência, que opera com a hierarquia (e não com a igualdade), com o segredo (e não com o direito, a produção, recepção e veiculação de informações) e com a rotina (e não com a criação pelo trabalho dos conflitos) (Chauí, 2000).

            Ainda de acordo com as idéias defendidas pela filósofa, uma universidade crítica deve ser, portanto, democrática e estar baseada na valorização da docência e na autonomia universitária, algo que para Chauí não pode ser avaliado unicamente pela quantificação da produção: em quantos congressos esteve; quantos artigos e livros publicou; em quantas notas de rodapé foi citado; quantas aulas ministrou na graduação e na pós-graduação; etc. Produção científica, aliás, é algo que não falta ao conjunto das universidades públicas do país como recentemente demonstrou Bosi (2000).

ARQUEOLOGIA PÚBLICA, UNIVERSIDADE PÚBLICA E CIDADANIA

            Diante do sucinto quadro apresentado, como fica a Arqueologia pública no contexto de universidade pública brasileira? Acredito que a premissa básica é conceber a Arqueologia pública como uma ferramenta de luta pela conquista da cidadania. Aí, então, surge um outro questionamento não menos importante: qual a cidadania que queremos? Defendo a tese da conquista de uma cidadania entendida “como competência humana de fazer-se sujeito, para fazer história própria e coletivamente organizada”, tal qual definiu o sociólogo Pedro Demo (1995:1). Uma cidadania assim não pode ser limitada à noção inicial de cidadania surgida em Roma antiga, baseada no Status Civitatis, ou limitada à idéia de cidadania como uma concessão dada pelo Estado de direito, assim concebida desde a Revolução Francesa. Neste último caso, o cidadão matou a pessoa quando subordinou os direitos de cidadania a concessões legais, reservando-a a uma classe de privilegiados (Dallari, 1997). Ou nas palavras de Vilmar Schneider (1997:19): “Em tese, o Estado de direito fundado no ideal democrático, em valores de liberdade, participação e igualdade, busca regular, por meio de regras e instituições constituídas, o contraditório processo de disputas políticas existentes no seio da sociedade”. Portanto, a cidadania individual e coletiva é, com efeito, uma conquista e não uma doação do Estado de direito no capitalismo, especialmente em sua fase neoliberal (Demo, 1997). Um típico exemplo disso é a luta dos trabalhadores rurais sem-terra pela reforma agrária no país.

            No caso brasileiro, os caminhos da cidadania apontada por Demo (1995), concebida como uma cidadania popular, estruturada no princípio do progresso democrático e no fim das desigualdades sociais, são bastante tortuosos, haja vista que envolvem componentes cruciais como educação, organização política, identidade cultural, informação, comunicação e, acima de tudo, o processo emancipatório das pessoas e dos povos, fundado na capacidade crítica de intervir na realidade de modo alternativo. Isso porque, vale a pena salientar, temos um passado comprometido com a pobreza política, a ignorância acerca da condição de massa de manobra, também resultado dos muitos momentos de autoritarismo edificados na ruína dos direitos humanos (Demo, 1995; Chueiri, 1997).

            Portanto, uma Arqueologia pública desenvolvida no contexto de universidade pública brasileira, que tenha como objetivo a conquista da cidadania popular, está mais distante do modelo oficial de universidade produtivista ou operacional e mais próxima da proposta alternativa de universidade crítica, embora em ambos os casos deve continuar sendo produtiva. Deve ela, por esse compromisso assumido, romper com a estrutura de compadrio, paroquialismo e confrarismo que ainda marca a disputa pelo poder e pelo micropoder no interior das universidades, também reflexo do processo histórico e cultural de formação da sociedade brasileira. Uma das medidas tomadas pelo governo federal no sentido de manter tal estrutura arcaica é a nomeação de reitores nas universidades federais, não raramente feita em desrespeito à vontade da maioria da comunidade universitária. Além disso, deve ela ainda primar pelo debate com a sociedade organizada e com os governos sobre os mais variados assuntos de interesse à Arqueologia Brasileira: preservação de bens culturais, ensino da temática da pré-história brasileira em todos os níveis, direito dos povos indígenas, preservação e uso sustentável dos recursos naturais e muitos outros.

ALGUMAS EXPERIÊNCIAS EM MATO GROSSO DO SUL

            No contexto da realidade sul-mato-grossense, ações ligadas a Arqueologia pública tiveram começo na década de 1980, com o desenvolvimento do Programa Arqueológico do Mato Grosso do Sul, projeto de pesquisas idealizado e coordenado por Pedro Ignacio Schmitz, inicialmente planejado para ser desenvolvido de modo semelhante ao PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas) e ao Programa Arqueológico de Goiás. No âmbito do referido programa, desde seu início em 1985, com o Projeto Alto Sucuriú, até sua interrupção em 1997 e sua retomada em 2001, com o Projeto Corumbá, alguns cursos e palestras foram ministrados sobre Arqueologia, especialmente tratando do passado pré-histórico de povos indígenas que povoaram o atual território nacional e outras regiões do continente americano. Nessas ocasiões, dezenas de pessoas tiveram contato, pela primeira vez até então, com a disciplina Arqueologia, com a profissão de arqueólogo e com uma leitura científica sobre a pré-história brasileira. Via de regra, ações desse nível, abertas à comunidade universitária (alunos, docentes e corpo técnico-administrativo) e à comunidade local (estudantes, professores do ensino médio e fundamental, pesquisadores de outras instituições e demais interessados), em muito têm contribuído para a formação de uma conscientização sobre a importância da preservação de bens arqueólogos e sobre o passado dos povos indígenas no Brasil e em outros países da América. De todo modo, a construção de uma cidadania popular não foi o objetivo que motivou a realização desses cursos e palestras, geralmente realizados nos meses de julho, época dos trabalhos de campo. Em Corumbá, por exemplo, o próprio Schmitz disse publicamente que um dos propósitos daquelas ações era contribuir para a construção de uma identidade própria para a população local. Seu argumento pouco feliz e anti-relativista do ponto de vista da alteridade, foi de público justificado pelo fato do arqueólogo ter deduzido que a população corumbaense ainda não tinha construído uma identidade própria para si mesma, tal qual haviam feito gaúchos e catarinenses, fala esta que causou indignação e constrangimento para muitas pessoas presentes nas atividades, incluindo dezenas de historiadores. Em momentos assim, nota-se que ações ligadas à Arqueologia pública pressupõem um certo conhecimento do complexo universo multidimensional e heterogêneo que é o público, seja ele qual for.

            Hoje em dia, em Mato Grosso do Sul há cinco profissionais de Arqueologia atuando em instituições de ensino superior: três na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), dois como professores efetivos e um como pesquisador-colaborador; uma na UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul); outra UCDB (Universidade Católica Dom Bosco). Embora com um número reduzido de arqueólogos, atividades ligadas à Arqueologia pública vêm sendo realizadas por esses profissionais, sobretudo a partir da década de 1990, através de exposições científicas de material oriundo de pesquisas realizadas na modalidade de Arqueologia por contrato, pesquisas exploratórias e pesquisas de resolução de problemas. Cursos e palestras igualmente vêm sendo ministrados ao público universitário e às comunidades locais. De uma maneira geral, o eixo das atividades vem sendo a divulgação de resultados das pesquisas realizadas ou em andamento sobre a pré-história regional e o desenvolvimento de ações que possam contribuir para a preservação de recursos naturais e culturais, proposta que grosso modo em muito se assemelha à do Programa Arqueológico do Mato Grosso do Sul.

            No sul do Estado, especialmente em Dourados e Mundo Novo, um engajamento social da disciplina tem sido feito através de parcerias pontuais entre profissionais da UFMS, UEMS e de outras instituições públicas, além de setores da sociedade organizada como ONGs (Organizações Não-Governamentais) e sindicatos de trabalhadores em educação. Três frentes de ações vêm sendo privilegiadas: preservação de bens arqueológicos, conhecimento da pré-história brasileira e defesa dos direitos dos povos indígenas. Exemplo disso foi o curso Patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul: conhecer, compreender e preservar, com 80 horas de aulas teóricas e de campo realizadas em Dourados, Corumbá e Ladário e ministradas por profissionais da UFMS e da UEMS. O curso foi oferecido à comunidade universitária do Campus de Dourados da UFMS e a professores da rede de ensino fundamental e médio da região da chamada Grande Dourados, entre outubro e novembro de 1998, contando com mais de 80 participantes, a maioria composta por alunos do curso de História da UFMS.

            No que diz respeito à Grande Dourados, uma pequena digressão merece ser feita. Trata-se de uma região que ainda hoje em dia está densamente povoada por povos indígenas, principalmente por povos lingüisticamente Guarani. Somente no município de Dourados, por exemplo, há cerca de 10.000 índios, representantes dos povos Kaiowá, Guarani (ou Ñandeva) e Terena, cuja história mais recente está diretamente relacionada à implantação, na década de 1940, época do governo Vargas, da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), uma das primeiras experiências de reforma agrária implementada no Brasil, a qual aconteceu sobre antigos territórios indígenas. Dourados, aliás, tem a maior área indígena urbana do país (aldeias Jaguapirú, Bororó e Panambizinho) e o contato entre índios e não-índios ocorre diariamente por praticamente toda a cidade (CIMI-MS et al., 2001).

            Na região, cursos e palestras também têm sido ministrados sobre a pré-história regional, quer para o público universitário, quer para alunos e professores da rede de ensino fundamental e médio. Nessas atividades, a pré-história tem sido tratada como parte de uma história indígena total e contínua, como uma Arqueologia do índio americano, perspectiva também assumida por Sanders & Marino (1971), Meggers (1979) e Fiedel (1996), dentre outros arqueólogos que escreveram sínteses sobre a pré-história do Novo Mundo. Em atividades educacionais desse tipo, o debate sobre a questão indígena atual sempre tem sido levantado pelo público. De todo modo, longe de cair em um discurso indigenista ingênuo, os povos indígenas têm sido apontados como agentes históricos, pessoas que também constroem seu destino e que, portanto, também merecem ter seus direitos respeitados, dentre eles o direito a seus antigos territórios, locais onde ainda hoje estão sendo encontrados tekohás abandonados há menos de um século.

            Paralelamente, a publicação de artigos em jornais de circulação regional e na internet (www.equiponaya.com.ar e www.riosvivos.org.br), bem como a elaboração de material didático distribuído por toda a rede pública estadual de ensino fundamental e médio de Mato Grosso do Sul (J. Oliveira, 2000g), vêm lançando luzes sobre a história mais antiga de um Estado que também busca nas culturas indígenas elementos para a construção permanente de sua identidade. Digo isso pelo fato de haver em Mato Grosso do Sul, principalmente em Campo Grande, um movimento de (re)construção da identidade sul-mato-grossense através de leituras particulares sobre a história e a arte dos povos indígenas, especialmente dos antigos Mbayá-Guaicuru, dos quais os Kadiwéu de hoje são seus maiores representantes no território brasileiro.

            Além disso, os debates em torno do ensino da temática da pré-história brasileira, americana e geral nos níveis fundamental, médio e superior têm alcançando resultados positivos, inclusive na crítica a livros didáticos de História e na discussão sobre a importância da Arqueologia na formação de futuros professores de História e historiadores no Campus de Dourados da UFMS (Lima & Silva, 1999; Quast, 2000). Prova disso está na recente linha de pesquisa, denominada História Indígena, inaugura no Programa de Pós-graduação em História da UFMS, iniciado em 1999 (Oliveira, 2001d).

            Discussões com a sociedade organizada sobre a preservação e o uso de bens arqueológicos, como a Usina Velha (J. Oliveira, 1999b, 1999c), também têm despertado a atenção do poder público, parlamentares, militantes do movimento cultural, dentre outros atores diretamente envolvidos no processo histórico regional. No caso, trata-se de uma antiga usina termelétrica que deverá sofrer ações de preservação, quiçá para fins de atividades ligadas à educação patrimonial e contemplação.

            Com base nas reflexões de Funari (2000), percebe-se que a publicação de matérias e artigos na imprensa nacional, versando sobre temáticas de interesse à Arqueologia Brasileira, vem crescendo anualmente em uma proporção de favorecimento à vulgarização de antigos e novos conhecimentos produzidos por arqueólogos. No caso das pesquisas etnoarqueológicas, etnoistóricas e arqueológicas sobre o povo Guató (J. Oliveira, 1996a, 1998, 2000d, 2000e, 2000f, 2001b, 2001c), a repercussão tem sido grande entre não-arqueólogos e, de certa forma, contribuído para a “redescoberta” desse povo canoeiro que até pouco tempo era tido como extinto (Barros, 1999; M. Oliveira, 2000; Bini, 2001; Mageste, 2001). Um pouco mais que isso: a história e a cultura Guató acabaram sendo objeto de uma película, um filme de longa metragem intitulado 500 Almas, sob a direção do cineasta Joel Pizzini Filho, inicialmente planejado para ser exibido no ano de 2001 em cinemas do país e na TV Cultura, mas que deverá ser concluído em 2002. Os resultados alcançados são bastante positivos, inclusive do ponto de vista da preservação de bens arqueológicos existentes em antigos territórios Guató, a exemplo do recente levantamento arqueológico concluído por Migliacio (2000) na área indígena Baía dos Guató, em Mato Grosso.

            Mais recentemente, a partir de 2001, foi iniciado um prévio levantamento de antigos tekohás do povo Kaiowá da aldeia Panambizinho, localizada no distrito de Panambi, em Dourados, pesquisa esta vem sendo feita a partir do uso de informações orais, sendo parte de um projeto multidisciplinar desenvolvido através de uma parceria firmada entre UFMS, UEMS e EMBRAPA, denominado Avaliação ambiental estratégica para o gás natural. As pesquisas têm sido útil, por exemplo, para compreender o processo de deslocamento territorial e perda de grande parte do território Kaiowá a partir da implantação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, bem como para que os próprios índios passem a dar mais atenção para seus antigos tekohás, alguns dos quais em áreas de conflito e litígio com não-índios, inclusive informando sobre eles aos mais jovens.

            Em suma, as experiências até então acumuladas no âmbito da Arqueologia pública desenvolvida na UFMS, especialmente no Campus de Dourados, têm sido voltadas sobretudo para a atuação do arqueólogo enquanto cientista e educador (Bender & Smith, 2000), cujo processo de engajamento social presume a construção de uma cidadania popular, coletiva, que necessariamente passa por reflexões a serem realizadas, também, para além fronteiras da academia e em defesa de uma universidade pública, gratuita e socialmente referenciada.

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