A seara virtual: notas sobre a presença dos evangélicos brasileiros na Internet

Airton Luiz Jungblut

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil)

A colonização evangélica da Internet no Brasil

A entrada do Brasil na Internet é algo relativamente recente. Oficialmente o Brasil passou a fazer parte desta rede em janeiro de 1989. Desde lá, quando a rede estava apenas disponível a algumas instituições de pesquisa, o crescimento de usuários não parou de crescer num ritmo espantoso que ultrapassa, em muito, o de qualquer outra tecnologia eletrônica de comunicação já implantada no Brasil e no mundo. Para se ter uma idéia, em janeiro de 2002, o número de usuários no Brasil estava estimado em 16.445.750 (Comitê Gestor da Internet do Brasil, 2002). É oportuno lembrar que somente em maio de 1995, por portaria do Governo Federal, é que se criou a figura do provedor de acesso privado possibilitando, na prática, a conexão à rede de qualquer cidadão comum.

No rastro do crescimento espantoso deste veículo de comunicação também foram se diversificando as possibilidades de sua utilização. Hoje a Internet é, entre outras coisas, um espaço livre para a manifestação de idéias, um espaço de lazer, de sociabilidade, de compras, um espaço para pesquisar os mais diversos assuntos possíveis.

Um veículo de comunicação com este potencial não poderia ficar muito tempo sem ser utilizado pelos evangélicos que, diga-se de passagem, tradicionalmente sempre tiveram por hábito buscar o uso eficiente  de todas as tecnologias possíveis para levar o Evangelho a toda a parte. Há, por parte de muitos grupos protestantes, uma já histórica avidez para com o domínio e utilização de modernas tecnologias de comunicação para fins de evangelização. Isso nos demonstra Jacques Gurtwirth em seu livro sobre o televangelismo norte-americano (Gurtwirth, 1998).

Com a Internet não parece ter sido diferente, a julgar pela presença nada desprezível de evangélicos em quase todos os espaços virtuais possibilitados pela Internet. Examinemos, primeiramente, a presença evangélica nas páginas da World Wide Web (WWW).

Quantificar, com alguma precisão, a presença de páginas evangélicas brasileiras na Web é uma tarefa quase impossível, haja visto a diversidade de critérios adotados pelas instrumentos de pesquisa do tipo Alta Vista, Google e Cadê e pela generalidade dos resultados que se obtém nas pesquisas. Uma tentativa de se procurar páginas através da palavra evangélicos, por exemplo, pode trazer milhares de referências, mas muitas delas apontam para páginas que não são evangélicas e que comumente só aparecem no resultado da pesquisa por terem em seu texto a palavra evangélicos. Não bastasse isso, sites de páginas já inexistentes e sites de desdobramentos de home-pages costumam aparecer poluindo o resultado das pesquisas. O certo é que, até onde pude perceber, existe uma quantidade muito expressiva destas páginas evangélicas se comparadas às de outros assuntos.

O exame destas páginas nos mostra dois tipos principais: páginas institucionais de igrejas, grupos missionários, editoras, instituições educacionais, etc. e páginas pessoais. No primeiro caso, são páginas em que normalmente constam dados sobre uma determinada instituição, tais como: localização, princípios básicos de fé, objetivos institucionais, fotos de templos, escritórios e integrantes da instituição, e-mails para contato, links (atalhos) para outras páginas correlatas, indicação de trechos da Bíblia para estudos, etc.. Há também páginas mais complexas que dispõem de recursos de interatividade como, por exemplo, Bíblia on-line para pesquisa, livros de visitas onde se pode deixar registrado as impressões do visitante sobre o que viu, fóruns de debates do tipo mural, diretórios de download de onde se pode copiar arquivos e programas, recursos para ouvir música ao fundo e  mais raramente salas de conversação do tipo chat (bate-papo), onde se pode conversar em tempo real com outras pessoas que por ali estiverem.

As páginas pessoais, por sua vez, geralmente são mais simples podendo contudo conter alguns ou todos os recursos mencionados das páginas institucionais. Nelas os objetivos principais parecem ser dois: o usuário a utiliza para se expressar como um cristão que testemunha sua fé evangélica na Internet e/ou para disponibilizar para as pessoas contatadas, em algum canal de diálogo da rede, uma espécie de recinto para onde se possa enviar alguém para ver suas fotos, testemunhos, passagens bíblicas preferidas, informações gerais sobre si, etc.. É normal em várias destas páginas pessoais que o usuário as utilize para outros fins que não somente o religioso, como por exemplo, para ensinar truques de informática, para falar de seu time de futebol ou algo assim.  Há casos em que nestas páginas se encontre disponível até o próprio curriculum vitae do usuário.

Um exame do conteúdo das páginas evangélicas brasileiras na web, contudo, é algo que até certo ponto se mostra um tanto decepcionante, haja visto que não se vê nelas nada que outras formas de comunicação utilizadas pelos evangélicos não disponibilizem e, em muitos casos, com mais eficiência e atratividade do que na web. Desta forma, não são através destas páginas – mesmo que elas impressionem pela quantidade – que se pode verificar o que considero a significativa importância da presença evangélica na Internet.

Os locais mais apropriados para isso são certamente os espaços virtuais destinados a interlocução  de usuários evangélicos na Internet. Refiro-me aos canais de bate-papo (chats), aos fóruns de debate em sites da web, aos grupos de notícias (news groups) e as listas de discussão via e-mail (mailing list). Não haveria como falar, no tempo destinado a esta comunicação, sobre as especificidades  das ações dos evangélicos em cada uma destas modalidades de comunicação via Internet. Por isso, me aterei ao relato de alguns dos aspectos que envolvem as listas de discussão via e-mail e os canais de bate-papo (chats).

As listas de discussão funcionam de uma forma muito simples. Em um servidor (um grande  computador  integrado a  Internet)  está  um programa  que  gerência  uma  conta de e-mail para onde pessoas com seus endereços de e-mail cadastrados e interessadas, em discutir algum assunto específico, enviam suas mensagens. Cada uma das pessoas cadastradas recebe as mensagens para ali enviadas, o que possibilita discussões, troca de informações, etc. que são visualizadas via e-mail por todos os participantes da lista.

Existem várias listas de discussão evangélicas no Brasil. Elas variam muito quanto ao número de participantes. Há desde listas com 10/15 participantes até algumas que chegam a 250/300 participantes, como é o caso da lista evangélicos-l criada pela Igreja Presbiteriana do Brasil, com 261 participantes, e que em certos dias chega a descarregar até 40/50 mensagens. Nestas listas, os assuntos são muito variados. Há trocas de impressões sobre assuntos do cotidiano da vida nacional, solicitações de orações para pessoas necessitadas, divulgação de atividades de congregações em várias partes do Brasil, algumas recatadas anedotas, informações sobre recursos da Internet e de informática em geral, comentários exegéticos sobre alguma passagem da Bíblia, etc.. Mas o que mais ocupa a atenção dos participantes mais ativos de algumas destas listas maiores são os debates teológicos acirrados que quase sempre ali se desenvolvem. Os assuntos que animam estes debates são, via de regra, de ordem teológica e giram em torno de alguma polêmica envolvendo pontos de vistas relacionados a princípios doutrinários. Há momentos em que, num mesmo dia, alguns participantes trocam várias mensagens entre si discutindo freneticamente algum ponto controverso. Há dias em que não chega a demorar mais que 20/30 minutos para que uma mensagem enviada para a lista seja comentada, endossada e/ou criticada por outro ou outros integrantes e assim se segue em réplicas e tréplicas que se sucedem mantendo-se, em alguns casos, por vários dias e até semanas.

Interessante nessas discussões é o esmero apresentado por muitos participantes em demonstrar capacidades de desconstrução crítica do discurso dos interlocutores com quem se deparam nas controvérsias que surgem. É bastante comum que uma mensagem original apareça reproduzida em outra de alguém, que a ela reagiu, toda decomposta em partes (frases ou parágrafos) que são intercaladas por considerações que endossam ou refutam a daquele que a comenta. Utiliza-se o recurso de referir-se a cada uma das colocações do interlocutor, sem que nada de importante de seu discurso seja desconsiderado opondo aquelas a que não se concorda uma verdade teológica que se pretende inegociável e que fora por aquele desconsiderada. O objetivo parece ser sempre o mesmo: negociar, o mais exaustivamente possível, um modelo ideal das bases confessionais comuns aos que ali estão a partir de questões que, problematizadas ao extremo, levem a um termo satisfatório. Mas também marcar diferenças denominacionais e idiossincráticas e defender sua legitimidade quando estas não se choquem contra as bases confessionais do protestantismo ali compartilhadas. Parece interessar menos as bases fundamentais do protestantismo e mais questões para as quais estas bases não forneçam respostas inequívocas.

Não deixa de haver nesses embates um certo exercício narcísico de ostentação de perspicácia teológica de vários que ali estão. Há algo indisfarsavelmente agonístico (cf. Lyotard 1986 17) nestas discussões no sentido em que ali o ato de defender um ponto de vista possa envolver vaidades pessoais de uma forma muito mais acentuada do que em outros locais do mundo evangélico e sem que isso resulte em demérito moral. Algo que faz com que debates teológicos assumam a forma de descontraídos jogos onde se mede os talentos retóricos de cada um. Um jogo que sendo improvável de ocorrer em instâncias normais da vida evangélica ganha ali, devido as características desse veículo de comunicação, sua possibilidade de existência. O que quero dizer, em outras palavras, é que as características de espaço virtual que as listas de discussão evangélicas possuem parecem possibilitar um ambiente em que debates evangélicos possam acontecer com regras e tolerâncias inexistentes no mundo não virtual. Ali é muito mais tolerável sofismar, blefar,  ser dissimulado, teimoso, pretensioso, etc. num debate teológico sem que isso resulte, repito, em deméritos morais. Talvez as listas de discussão evangélicas sejam, nesse sentido, espécies de vídeo games para evangélicos adultos e, certamente, contribuem para isso as características das relações interpessoais que a comunicação via Internet instaura. Refiro-me mais precisamente as proteções psicológicas que as características deste meio de comunicação propicia. Na Internet é certamente muito mais fácil as pessoas se desinibirem se despreocuparem, com sanções morais, quanto ao que dizem, dar vazão as suas idiossincrasias com menos autocontrole, etc.. já que os constrangimentos da comunicação face a face estão ali em parte ausentes (Kiesler; Siegel & Mcguire, 1984: 1123-34).

Os canais ou salas de bate-papo na Internet (chats), por sua vez, se prestam a atitudes de interlocução bem mais variadas do que as possibilitadas pelas listas de discussão  isso, obviamente, porque seus recursos e dinâmicas são bastante distintos. Basicamente, existem dois tipos principais de sistemas de chats: os que funcionam em sites da web e os que se utilizam de sistemas de transferências de dados marginais à web. No primeiro caso a sala ou canal de chat está localizado numa determinada página da web que, comumente, pertence a um determinado provedor privado (como Terra ou UOL) mas que, no entanto, está aberto a qualquer usuário. Os recursos de interatividade nestes chats são bastante limitados e restringem-se normalmente a enviar e receber, quase que instantaneamente, mensagens escritas que podem ser visualizadas para todos os que ali estiverem ou reservadamente para um determinado usuário. Não há autoridades capazes de inibir ou censurar os conteúdos das mensagens nem excluir algum usuário que esteja importunando os demais. Geralmente nos sites que disponibilizam estes chats há varias salas dividas por assuntos ou por idades sendo que o número de participantes em cada sala é limitado a 25/30 pessoas. O usuário quando ingressa numa destas salas deve fazer uso de um pseudônimo (nickname).

Há alguns casos, como já foi dito antes, de chats em páginas de instituições evangélicas, como é o caso do existente no site da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Mas é bastante difícil encontrar pessoas nestes locais. Na imensa maioria das vezes que entrei nestas salas em páginas evangélicas não encontrei ninguém por ali. Os evangélicos que se utilizam deste tipo de chat geralmente preferem os locais mais públicos, mais habitados, onde não estejam somente evangélicos. Um destes locais é a sala intitulada Religião do provedor Terra. Ali, mesmo não sendo um domínio evangélico, a grande maioria dos freqüentadores é quase sempre declaradamente evangélica. Trata-se de um espaço em que há a convivência com outras pessoas de outros credos e mesmo com pessoas abertamente antipáticas a qualquer tipo de credo ou mesmo contumazes debochadores de crentes.

As interlocuções destes evangélicos que ali habitam ocorrem em todas as direções possíveis e com variadas finalidades. Há os que, sendo evangélicos e gostando de bate-papos, ali estão porque simplesmente não lhes parece apropriado a um cristão ficar em salas com temáticas mundanas. Há os que estão ali para evangelizar os não crentes, fazer testemunhos públicos sobre as transformações na sua vida após ter se convertido ou para polemizar com católicos, espiritas, etc. e assim por diante

Por ser um chat em que todos tem o mesmo status e podem dizer qualquer coisa sem regras ou censuras, há períodos em que tudo ali é muito caótico.  Ocorrem situações em que se alternam diálogos do tipo: alguém xingando um espírita, ao mesmo tempo que um outro está fazendo inflamados discursos proselitistas, e um terceiro e um quarto estão em briga acirrada com um suposto satanista que insiste em dizer palavrões e pronunciar blasfêmias inomináveis. Simultaneamente, enquanto um quinto participante que está falando para outras pessoas dos milagres que já ocorreram em sua igreja, um outro, que se diz ateu, ali está para debochar do que considera um absurdo desfile de asneiras.

Alguns participantes evangélicos destes tipos de chats me revelaram, em conversas privadas, que se sentem desafiados a testemunharem sua fé e tentar obter a conversão de alguém em espaços com estas caraterísticas, pois ali, convivendo com católicos, espíritas, satanistas, ateus, etc., predispostos a defenderem posições contrárias a sua fé, se sentem na clássica situação do evangelizador que tem que ir como ovelha ao meio dos lobos, só que com as vantagens e confortos domésticos que a situação de internauta proporciona.

Estes chats, que poderíamos denominar de públicos, são, então, de certa forma, no imaginário de vários evangélicos internautas, como que uma miniatura do mundo, um cenário onde estão dispostos os elementos essenciais que configuram a oposição ao que se considera o legítimo Evangelho. E, assim sendo, são os preferidos por aqueles que querem viver a situação de estarem testemunhando sua fé num lugar em algum grau hostil às verdades bíblicas, mas que, no entanto, ainda existe a possibilidade de serem ouvidas, já que se tratam de chats para a discussão de temas relacionados a religião.

Existem, no entanto, um outro sistema de chat fora da web que permite uma modalidade distinta, mas em algum sentido análoga a esta de interlocução de evangélicos internautas com o mundo não evangélico. Trata-se dos chats que funcionam em sistemas do tipo IRC (Internet Relay Chat). O IRC é um sistema de chat que tal como o sistema de e-mail não utiliza a web. Ele funciona através de um determinado servidor escolhido pelo usuário (um sistema privado de computadores que gerencia a troca de mensagens) que funciona fora do sistema web e portanto requer um programa distinto do navegador para funcionar (Mirc, Virc, Pirch, etc.).  Possui uma infinidade de recursos que tornam seu uso bem mais atraente que o dos chats da web (.Silva, 1998).  Por exemplo: qualquer usuário pode inaugurar e controlar a partir de comandos muito simples e rápidos um canal próprio destinado à discussão de qualquer assunto; nos canais o seu criador e outras pessoas por ele autorizadas podem dispor do status de operadores de canal, o que possibilita, entre outras coisas, os poderes para excluir momentaneamente ou banir definitivamente usuários indejáveis; no canal é possível instituir regras, como por exemplo não permitir o uso de palavrões,  que uma vez não seguidas, podem levar a sanções que vão da advertência ao banimento; pode-se falar reservadamente com qualquer usuário em janelas privadas; pode-se ouvir coletivamente nos canais músicas digitalizadas compartilhadas entre um grupo de usuários; pode se jogar coletivamente determinados jogos de pergunta e resposta; os operadores de canal podem instituir, quando lhes interessa, a impossibilidade de enviar mensagens para que, por exemplo, alguém exponha algo mais demorado, como uma palestra, sem ser interrompido, etc..

Há nos maiores servidores brasileiros de IRC uma série de canais evangélicos. Estes canais, apesar de controlados por operadores evangélicos que em maior ou menor grau disciplinam seus usos, permitem e até buscam o ingresso e a permanência de pessoas não evangélicas. Alguns destes canais são extremamente bem organizados como por exemplo o 100% Jesus do servidor Brasnet que possui programação semanal definida de atividades no canal (preleções e estudos bíblicos, debates organizados por tema, horários para orações, jogos de pergunta/resposta de temas bíblicos, etc..), dispõe de página na web com diversas informações sobre o canal e seus freqüentadores, tem cadastrados grande parte de seus freqüentadores, possui um grupo de discussão via e-mail, são feitas freqüentes reuniões de seus operadores, etc..

Por terem estas características canais como o 100% Jesus não deixam de assumir, em algum sentido, a forma de igrejas ou templos virtuais. Trata-se, pois, de uma comunidade bastante constante de usuários em sua grande maioria evangélicos que obedecem  a determinadas disciplinas instituídas pelos seus operadores, que utilizam o canal para a efetiva vivência e aprimoramento de sua fé, que conseguem rotinizar certas cerimônia virtuais de celebração de suas crenças. Mas, além disso, canais como esse são fronts de evangelização pois estão, de certa forma, num lugar público, uma espécie de rua virtual, onde têm como vizinhos centenas de canais onde se reúnem espíritas, judeus, punks, hackers, homossexuais, etc.. Estando ali se sentem tentados a visitar seus vizinhos para convidá-los a aceitar o Evangelho ou são por eles visitados e têm, então, o prazer ou, em alguns casos, o desprazer de travar diálogos em que a sustentação de suas crenças é posta em questão.

Geralmente, os freqüentadores de chats do sistema IRC dominam mais do que a média dos usuários os diversos recursos de utilização da Internet. A utilização do IRC é algo que quase sempre acontece com os usuários da Internet mais experientes e isso normalmente depois de se ter há algum tempo utilizado e se cansado de utilizar outros recursos mais limitados como os chats da web. Seus usuários, portanto, e isso obviamente se aplica aos evangélicos também, já são mais experientes na utilização do diversos recursos da Internet. Por está razão dominam e desenvolvem técnicas bastante criativas de interlocução. Vários freqüentadores de canais evangélicos utilizam, por exemplo, programas modificados de Mirc (que possibilitam o ambiente de utilização do IRC) com recursos desenvolvidos para interlocuções com qualquer tipo de pessoa. Há um destes programas, desenvolvidos por evangélicos, que tem acoplado uma Bíblia informatizada e uma verdadeira biblioteca de textos que podem ser utilizados para refutar qualquer posição anti-evangélica. Assim, por exemplo, se quem estiver se utilizando deste programa se deparar com um espírita ele tem disponível para imediata utilização textos bíblicos que desautorizam as práticas e crenças espíritas. Basta escolher num menu, clicar em cima do item e a mensagem é imediatamente enviada.

Os canais IRC desta forma são certamente os espaços virtuais mais eficientemente utilizados pelos evangélicos. Alguns deles estão entre os que mais concentram usuários em certos servidores. Tenho a impressão que uma utilização mais massiva e mais eficientemente sistematizada da Internet pelos evangélicos tem grandes chances de acontecer através de técnicas, procedimentos e recursos próximos ao que os canais evangélicos do IRC começam a desenvolver. Estão entre os freqüentadores destes canais pessoas que já começam a falar seriamente em templos virtuais evangélicos. Assim, não é de se duvidar que em pouco tempo possa surgir um evangelismo virtual mais profissionalmente desenvolvido. Embriões disso, como se viu, já existem.

Os evangélicos e o campo religioso brasileiro na Internet

Mas como ficam os evangélicos em relação aos outros grupos que compõem o campo religioso brasileiro na Internet?

Há cerca de cinco anos atrás quando iniciei minhas pesquisas sobre religião na Internet o quadro existente mostrava que a utilização de espaços de publicação e a presença de indivíduos evangélicos em interação na Internet brasileira eram bem mais notáveis do que a de qualquer outro grupo religioso. Vinha depois, nesse ranking, distantes os espíritas e bem mais longínquos ainda os católicos e grupos esotéricos. Grupos afro-brasileiros eram praticamente invisíveis neste momento. Nas páginas da Web a forma de visibilidade mais comum das identidades religiosas se dava através de páginas institucionais e em menor grau, pessoais. No caso dos espíritas eram, quase sempre, páginas institucionais. Nos web-chats religiosos, que neste momento não são segmentados confessionalmente e estão alojados em portais de grandes provedores, a presença evangélica era, de longe, a mais marcante. Na maior parte do tempo, o debate era entre crentes evangélicos, de um lado; e descrentes, ateus, agnósticos, etc.. de outro. A mesma situação se repetia em relação aos chamados fóruns de debate alojados em portais da web. Além disso, outros recursos que não a web – tais como canais de chat do tipo IRC, grupos de notícia e listas de discussão via e-mail – também eram, de longe, neste período, mais eficazmente utilizados por grupos ou indivíduos evangélicos, sendo seguidos, também neste caso, por grupos e indivíduos espíritas. Note-se que se interessavam mais pela Internet, um ambiente comunicativo baseado principalmente em mensagens escritas, grupos religiosos – evangélicos e espíritas – que estão ligados a uma tradição de valorização da cultura escrita e eis, talvez o porquê de se sentirem tão mais vontade neste ambiente.

Assim, de um modo geral, o que se percebia é que os dois grupos religiosos – evangélicos e espíritas – mais tradicionalmente ligados à cultura escrita é que mais avidamente se lançavam à exploração do ciberespaço brasileiro recém inaugurado. Passado quase cinco anos, tem-se uma situação um tanto distinta. Em primeiro lugar, assiste-se ao ingresso cada vez mais perceptível de uma infinidade de outros grupos religiosos antes invisíveis. Páginas católicas, esotéricas e também afro-brasileiras, gradativamente, vão se disseminando por todos os lados deste ciberespaço brasileiro, ao ponto de ser bastante temerário na atualidade afirmar quem, entre indivíduos e grupos religiosos em questão, demonstra estar melhor se utilizando das possibilidade de publicação da web no Brasil.

Em segundo lugar, é preciso mencionar aqui, com destaque especial, uma iniciativa bastante audaciosa da Igreja Católica no Brasil (mais especificamente da Arquidiocese de Porto Alegre) na direção de uma eficiente divulgação do catolicismo através da Internet. Trata-se da criação em janeiro de 2000 de um portal e um provedor de acesso gratuito a Internet denominados Católico. Este portal-provedor, causou bastante impacto na Internet brasileira quando de seu lançamento já que foi um dos primeiros a disponibilizar acesso gratuito e se constitui, muito claramente,  numa demonstração de que a Igreja Católica no Brasil tem claras intenções de atuar de forma arrojada na colonização religiosa do ciberespaço.

É preciso destacar também que nestes quatro anos –  em que houve um substancial crescimento do ciberespaço brasileiro e do número de seus freqüentadores – nota-se  também um crescente interesse dos chamados portais comerciais de acesso a conteúdos pelo que poderíamos chamar de filão religioso. De um primeiro momento em que uns pouquíssimos portais disponibilizavam uma ou duas salas de bate papo (chats) ou algum fórum para assuntos religiosos (geralmente genérico, não segmentado confessionalmente, como já foi dito), se passou para uma situação onde é dada especial e privilegiada atenção a este tipo de interesse. Isso pode ser notado principalmente pela proliferação de chats e fóruns de debates de assuntos religiosos em vários portais de conteúdo que antes não atendiam a essa demanda, pela crescente oferta segmentada aos públicos interessados nesse assunto (antes uma única opção genérica tal como religião; agora cada vez mais uma segmentação confessional no qual evangélicos, católicos,  espíritas, etc. têm seus próprios espaços). Alguns grandes portais vão até mais longe disponibilizando sites bastante complexos em que, além de serviços de chats extremamente segmentados (por denominação institucional, por exemplo), há informações sobre as crenças, as formas de organização, os personagens, as datas, os símbolos e ritos, comércio de produtos, etc. de cada grupo (caso do portal globo.news.com, por exemplo). Há também portais que exploram as possibilidades de veicular, com exclusividade, informações e formas de transmissão de eventos mediadas pela Internet de famosas personalidades religiosas no Brasil como por exemplo o Padre Marcelo Rossi, que dispõe de um site num dos principais portais em atividade no Brasil (Terra). Ali, esse padre popstar, tem a sua disposição uma sala de bate-papo para celebrar todas as quartas-feiras a sua missa-chat, recursos de transmissão audiovisual pela Internet de suas missas dominicais e de suas orações diárias, etc..

Bastante interessante também é o repentino uso que as casas de religião afro-brasileira passaram a fazer da Web. De uma situação de quase que total invisibilidade, há cerca de quatro anos atrás, o número de páginas pessoais ou institucionais deste segmento religioso cresceu surpreendentemente. Observando as características destas páginas (que, geralmente, são muito simples e têm como intenção básica a mera publicidade dos serviços oferecidos nestas casas de religião) percebe-se que se trata de uma utilização ainda bastante acanhada deste meio. A impressão que passam muitas destas páginas é que foram criadas apenas para satisfazer os fetiches tecnológicos que o uso da Internet parece provocar na subcultura afro-brasileira como item atribuidor de prestígio para quem dela faz uso.

Mas algumas coisas também se mantiveram substancialmente inalteradas nestes últimos quatro anos. Para citar apenas aquilo que considero mais importante menciono a forma com que espíritas e evangélicos – os dois grupos religiosos que, muito provavelmente, mais se utilizam da Internet no Brasil – utilizam-se dos recursos virtuais-comunitários possibilitados no ciberespaço. Refiro-me à formação das chamadas comunidades virtuais através de comunicação mediada por computador de características síncronas (chats) ou assíncronas (grupos de notícia ou listas de discussão via e-mail). Estes tipos de utilização da Internet são, de longe, melhor potencializados por grupos ou indivíduos pertencentes a esses dois segmentos religiosos. Através destes recursos de interatividade e sociabilidade no ciberespaço lida-se com uma forma – bem mais dinâmica e atraente do que a mera publicação de textos em páginas da Web – de ostentação e de negociação identitária de cunho religioso. Mas é preciso dizer que embora façam uma utilização muito parecida destes recursos, evangélicos e espíritas têm padrões de comportamento diferentes em suas respectivas comunidades virtuais.

Os espíritas, normalmente não manifestam comportamentos distintos entre o uso que fazem de chats e listas de discussão (ou, também, fóruns e grupos de notícias), tal como ocorre com os evangélicos, que, viu-se acima, têm comportamentos mais diversificados em função das variaveis técnicas (qual tecnologia de comunicação mediada por computador é utilizada) ou etárias. Procuram, assim, independentemente da faixa etária ou recurso técnico utilizado, manter debates disciplinados com alto nível de exigência intelectual dos participantes. São, mormente, debates orientados, quase que exclusivamente,  para questões referentes  às interpretações dos livros espíritas. É comum não demonstrarem interesse por polêmicas com integrantes de outras religiões ou cosmovisões (ateus, por exemplo). Nos poucos casos em que é possível vê-los utilizando-se de chats – veículo em que, em princípio, é mais difícil manter debates disciplinados – o fazem usando sistemas mais sofisticados (e menos populares) como o IRC, em que são possibilitados, entre outras coisas, como já se mencionou, uma série de atitudes punitivas a participantes indisciplinados, como à exclusão provisória (kick) ou definitiva (ban).

            Se fossemos classificar/qualificar de maneira esquemática as formas como as principais modalidades religiosas aparecem na Internet brasileira teríamos algo como:

Católicos

-          presença preponderantemente institucional (páginas de dioceses, organizações católicas, serviços de acesso a Internet, etc..);

-          pouca interatividade individual e de relacionamentos extra-muros (é difícil encontrar pessoas identificadas com o catolicismo em chats ou listas de discussão, por exemplo);

Afro-brasileiros

-          visibilidade publicitária (as maioria das páginas na web têm como intenção, por exemplo, informar local e horário de atendimento dos médiuns, mostrar fotos dos estabelecimentos e dos médiuns, etc.);

-          apelo comercial  (há um bom número de páginas de lojas de artigos religiosos afro-brasileiros, também editoras e livrarias);

-          praticamente nenhuma interatividade individual (não se notou nenhuma lista de discussão nem chat importante deste segmento; a presença de indivíduos identificados com essas religião de um modo geral é bastante rara);

Espíritas

-          presença institucional bastante marcante (possuem uma considerável rede de páginas, algumas entre as quais bastante complexas onde se disponibilizam, por exemplo, livros espíritas completos em formato digitalizado);

-          muita interatividade individual  de relacionamentos preponderantemente intra-muros (os espíritas tem um bom número de listas de discussão e chats  e mostram-se bastante apaixonados por debates mediados por redes de computares);

Evangélicos

-          Formas bastante diversificadas de visibilidade:

-          institucional (muitas páginas de igrejas locais, regionais, nacionais ou mesmos internacionais; um grande número também de páginas de organizações ecumênicas, para-eclesiásticas, interdenominacionais, etc.);

-          publicitária/comercial (um numero considerável de páginas na web com publicidade de livrarias e lojas de discos evangélicos, por exemplo);

-          pessoal (um grande número de páginas pessoais visando a divulgação da fé evangélica);

-          intensa interatividade individual de relacionamentos extra e intra-muros (grupo religioso que, seguramente, mais se lança a interatividade comunicativa via Internet buscando não só a formação de comunidades de crentes como também o trabalho convercionista);

Esotérica

-          oracular (um número cada vez maior de sites oferecendo serviços de oráculo tais como, tarô, astrologia, numerologia, etc.);

-          pessoal (as páginas divulgando assuntos esotéricos na web são geralmente pessoais);

-          média interatividade individual extra e intra-muros (possuem listas de discussão e chats que não chegam a atrair muita atenção).

3. A guisa de conclusão: disputa mercadológica ou eficiente evangelização?

Os protestantes, hoje mais conhecidos como evangélicos, sempre, em sua história, buscaram a eficiente evangelização, ou seja, mais do que os católicos ou outros cristãos, levaram a sério a obrigação bíblica de levar a todos os povos as boas novas. O fato da palavra evangelho significar boas novas ou boas notícias já é, talvez,  uma pista do porquê de serem praticamente correspondentes os termos evangélicos e protestantes. Eles tomaram como missão fundamental de sua vivência religiosa exercitar uma das práticas fundantes do cristinismo: evangelizar, levar ao mundo as boas novas, noticiar sua fé.

            O uso dos meios de comunicação sempre mais eficientes para isso também é constitutivo da tradição protestante ou alguém imaginaria o sucesso de tal cisma no cristianismo, que tinha como palavra de ordem fundamental a livre interpretação da Bíblia, se antes Gutenberg não houvesse inventado a imprensa de caracteres móveis possibilitando a popularização deste livro a partir do século XVI? O mesmo ocorreu com o rádio e a televisão logo que surgiram, como nos demonstram alguns estudiosos do assunto (Gurtwirth, 1998).

            Com a Internet não tem sido diferente, a julgar pela presença cada vez mais visível de paginas evangélica na web, de versões evangélicas de chats (canais de bate-papo) e grupos de discussão via e-mail, de gente circulando por todos os lugares da rede pregando a fé evangélica, etc..

            Diante dessas novas formas de apropriação de modernas tecnologias a serviço da evangelização protestante, muitas vozes tem dito que se trata de mais um sintoma de que estamos no Brasil diante da implantação ou mesmo consolidação de um mercado religioso (Berger, 1985: 149), onde a propaganda é a alma do negócio. Há algo de verdade nisso. É inegável que com a crescente diversificação de novas formas de religiosidade – a pluralização do campo religioso – cresce a disputa pelas almas e, conseqüentemente, sofisticam-se os meios e os apelos conversionistas.

            Mas, no caso evangélico há que se dar um desconto. Diferentemente de outras tradições religiosas, que só recentemente passaram a eficientemente oferecer suas cosmovisões, credos, serviços religiosos, etc., através de modernas tecnologias de comunicação, os evangélicos têm,  como algo constitutivo de sua fé, essa racionalização comunicativa. Foram eles, certamente, os que mais contribuiram para que hoje possamos falar de algo como uma racionalidade comunicativa a serviço da divulgação das mais variadas práticas religiosas. Racionalidade essa que, muitas vezes, é plagiada para ser utilizada até em práticas comunicativas mundanas.

            Por esta razão é de se perguntar se o fato de ocorrer uma eficiente utilização por parte dos evangélicos de meios de comunicação tais como o rádio, a televisão e a Internet pode realmente ser considerado sintoma da instituição de um mercado religioso em países como o Brasil? Ou se, com mais complexidade, os plágios feitos por outras tradições religiosas destas suas racionalidades comunicativas é que estariam instituindo, no plano da comunicação, este mercado religioso de que se fala? Essa questão pode levar a outras hipóteses mais gerais, tais como: é o conversionismo ou proselitismo evangélico, junto ao crescimento considerável desta fé que força outras tradições a uma disputa religiosa-mercadológica?

Se assim for, seriam os evangélicos os provocadores do surgimento do mercado religioso mas não seus instituidores, já que não são eles que estabelecem, propriamente, a disputa por espaços e sim os outros grupos religiosos que tem que correr atras do prejuízo e oferecer algo onde antes, praticamente, só estavam os evangélicos. Na Internet eles já estão, como se poderia esperar, confortavelmente instalados. Estão chegando, muito provavelmente, antes e em maior número que seus concorrentes e já começam a desenvolver eficazes estratégias e técnicas de utilização. No entanto, não se pode dizer que os evangélicos estão maquiavelicamente tentando dominar o uso a Internet em prejuizo das outras crenças religiosas. Eles estão fazendo o que sempre fizeram e o que se esperaria de um cristão mais fundamentalista, zeloso de suas obrigações religiosas: levar a todo lugar as boas novas cristãs.

Bibliografia

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