ETNOGRAFIA DAS PRÁTICAS MUSICAIS e  educação comunitária PARA Adolescentes afrodescendentes

Francisca Marques

Laboratório de Etnomusicologia, Antropologia e Áudio / Recôncavo

leaa-reconcavo@uol.com.br

Resumo

Nesse trabalho apresento relato de experiências com educação comunitária dirigidas a um grupo de adolescentes, todos afrodescendentes, da cidade de Cachoeira (Recôncavo da Bahia, Brasil) e que resultou na formação de uma equipe de pesquisadores juniores em etnomusicologia e cultura popular.

O Recôncavo baiano é um dos núcleos de resistência, irradiação e preservação mais expressivos da cultura afro-brasileira. Num momento de amplas discussões sobre as cotas de negros na Universidade torna-se importante afirmar que a educação comunitária pode ser um meio criativo e colaborador para a superação das desigualdades étnico-raciais e de gênero.

Palavras-chave: etnomusicologia / educação comunitária / cultura popular / antropologia do som

ETNOGRAFIA DAS PRÁTICAS MUSICAIS e  educação comunitária PARA Adolescentes afrodescendentes

Francisca Marques


Alunos em sala fazendo exercício de captação de áudio e imagens
(Foto: Louise Botkay)

(...) O ato de estudar, no fundo, é uma atitude frente ao mundo.

Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo.

Paulo Freire, Ação Cultural para a Liberdade.

A relevância dada à questão do retorno do pesquisador à comunidade, relatada na maior parte dos trabalhos apresentados no 36º Congresso do International Council for Traditional Music (Rio de Janeiro, julho 2001), enfatizaram, e problematizaram, o trabalho de campo como um meio  legítimo para o diálogo e a colaboração entre o etnomusicólogo e a sua comunidade de estudos.

Na ocasião desse Congresso apresentei uma comunicação e sugeri a educação comunitária como uma das propostas e alternativas que eu havia encontrado para efetivação de minha colaboração, simultânea ao meu desenvolvimento docente, através de cursos de extensão dirigidos à comunidade de Cachoeira, Bahia (Marques, 2001; Marques, 2002a).

Trabalho de Campo e Captação Sonora (maio 2001) e Introdução à Pesquisa em Etnomusicologia (setembro 2001-abril 2002) foram duas atividades educativas dirigidas, em especial, aos jovens e adolescentes afrodescendentes, em sua maioria músicos das filarmônicas Lyra Ceciliana e Minerva Cachoeirana.

Das perspectivas geradas a partir do êxito dessas duas experiências surgiu a decisão de minha residência em campo, o que efetivou o propósito de continuidade dos trabalhos em educação comunitária e resultou na formação de um grupo de pesquisadores juniores em etnomusicologia e cultura popular.

Além das atividades didáticas, e em processo de organização coletiva com membros da comunidade de Cachoeira, São Felix e Muritiba (professores, artistas e músicos), foi formada a Associação de Pesquisas em Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo.

O processo educativo em curso tem contribuído para o reconhecimento do valor e da estima do significativo patrimônio material e imaterial da cultura do Recôncavo, o que tem feito com que os alunos, e as pessoas a eles próximas, tenham um outro olhar sobre si mesmos.

Num momento de amplas discussões sobre as cotas de negros na Universidade torna-se importante afirmar que a educação comunitária pode ser um meio criativo e colaborador para a superação das desigualdades étnico-raciais e de gênero. Um número cada vez maior de adolescentes mulheres têm se interessado pelo trabalho etnográfico e todos os alunos envolvidos nesse trabalho projetam perspectivas de ingressarem na Universidade.

Uma pedagogia da prática

Em 2000, observando o processo de ensino-aprendizagem no trabalho das bandas de música no Recôncavo e dos grupos de samba de roda percebi o desenvolvimento de uma didática predominantemente prática em que o "aluno" poderia "tocar" um instrumento e ser imediatamente incorporado ao grupo. Entendi ser pedagogicamente viável também ao ensino e à aprendizagem etnomusicológica a inserção do aluno-pesquisador, ou seja, o trabalho etnográfico durante e através das performances musicais e culturais de sua própria comunidade.

Santos (1998:44), assim como Paulo Freire, defende "uma pedagogia baseada na investigação do universo do educando, na seleção de temas geradores e na ampliação do educando no horizonte do perceber". Pensando a formação de currículos e na psicologia cognitiva através dos estudos de Bruner (década de 60) a pesquisadora considera três critérios relevantes:

(1)    o que provoque sensação de prazer pela descoberta e redução da complexidade;

(2)    o que seja útil em si mesmo;

(3)    o que propicie "ir além da informação dada".

O que se deseja, intensamente, é que as situações de ensino aprendizagem permitam que o aluno, a cada aula, construa algum conhecimento que, respondendo às suas questões, o leve à sensação de prazer em desvendar aspectos constitutivos de práticas musicais do seu cotidiano, bem como a ser capaz de praticar e reconhecer estes elementos, presentes em outras obras, talvez menos familiares (...) (Santos 1998:46)

Na primeira fase desse trabalho a audição e a experimentação da captação de sons foram atividades dirigidas aos alunos como recurso de percepção do seu próprio ambiente sonoro. Como Murray Schafer sugere que "a paisagem sonora é para ser estudada por quem vive no local, porque fala a língua, e sabe os tipos de sons com que está lidando" (apud Costa 1998:80).[1]

A assimilação de termos como 'etnomusicologia' e ecologia sonora[2] através de uma atividade prática como a captação de áudio, fez conceitos complexos acessíveis e estimulantes aos alunos.

Ao introduzir o ‘trabalho acústico’  (Araújo 1993:25-31) como uma prática social foi enfatizada a performance e os dados obtidos como atividade e exercício de etnografia.

Ainda em sala foram discutidos o trabalho e o papel que o pesquisador desempenha com a pesquisa em etnomusicologia:

·        O que faz um pesquisador?

·        O que é etnomusicologia?

·        Porque fazer trabalho de campo? De que forma? Para quem?

·        Qual a importância da ética na pesquisa, nos relacionamentos humanos e no trabalho em equipe?

Técnicas básicas de escrita etnográfica foram introdutoriamente abordadas e aplicadas pelos alunos. Eles receberam orientação sobre equipamentos (gravação analógica e digital), a existência de diferentes tipos e o uso de microfones, e também, sobre a importância da organização e arquivamento de material coletado.


Pesquisadores juniores em campo durante a Festa da Ajuda, novembro 2001.
(Foto: Francisca Marques)

Embora a ênfase do curso tenha sido a captação de áudio, os alunos tiveram instruções e prática de captação de imagens (vídeo e fotografia) e produção de texto (caderno e anotações de campo).

Houve exercício de trabalho acústico (entrevista e captação de performance) também com os músicos do Samba de Roda Amor de Mamãe. Durante a entrevista os alunos discutiram com os músicos do samba de roda a ligação do samba com o candomblé de caboclo, a importância da coreografia e a função de cada instrumento. No dia seguinte o grupo também assistiu ao ensaio e à gravação do Samba de Roda Suerdieck


Equipe em "campo" durante entrevista com o
Samba de Roda Amor de Mamãe, maio 2001.
(Foto: Dian Carlos Melo)

Terminada essa fase os alunos passaram brevemente ao trabalho de laboratório. A equipe teve uma aula em estúdio e pôde ter uma breve noção sobre edição de fonogramas, mixagem e utilização de softwares para  edição de áudio digital.

Como documento e síntese dessa experiência foi produzido um cd Cachoeira: trabalho acústico e paisagens sonoras que foi ouvido e avaliado coletivamente (pesquisadora, alunos e membros da comunidade e do samba). 

O curso teve 8 alunos com faixa etária entre 14 e 18 anos.  Eles não tinham experiência prévia conduzindo pesquisa de campo.
Objetivos importantes foram alcançados:

·        Introduzir a captação e a escuta como sentido e estímulo à percepção sonora e musical.

·        Despertar o interesse pela pesquisa etnomusicológica.

·        Observar e avaliar as ações que afetam e alteram a qualidade do ambiente através da intervenção humana e tecnológica.

Alguns pontos a considerar

Se na primeira fase do trabalho as atividades foram feitas no sentido coletivo, a partir  da segunda fase os pesquisadores juniores passaram a desenvolver individualmente suas pesquisas (samba de roda, candomblé, esmola cantada, capoeira, festa da ajuda, pagode, choro e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário).

Na experiência com as aulas de introdução à pesquisa em etnomusicologia, busquei fornecer aos alunos uma prática intensificada pelos trabalhos de campo e uma base teórica através de uma bibliografia que pudesse atender às suas necessidades, e especialmente, "despertar o desejo de aprofundar conhecimentos", desafiando-os e não frustrando-os (Freire 2001:9). Procurando também compensar a pouca propensão à leitura sistemática recorri a utilização de recursos audiovisuais.

O processo de trabalho de educação comunitária e de formação de pesquisadores juniores está em contínuo andamento, mas a relevância da etnografia das práticas musicais já pode ser sentida no interesse crescente dos adolescentes da comunidade de Cachoeira pela ampliação dos cursos oferecidos.

Esse projeto vai na direção de tornar a etnomusicologia cada vez mais acessível aos alunos do ensino médio, introduzindo-os à prática de documentação etnográfica, ao conhecimento e possível profissionalização em novas tecnologias, e também direcionando-os para a Universidade, meta de um futuro mais igualitário numa sociedade ainda pouco justa com os afrodescendentes.

 Bibliografia

ARAUJO, Samuel. " Descolonização e discurso: notas acerca do poder, do tempo e da

noção de musica". In: R. Brasileira de Musica, Rio de Jaeiro, 20:25-31, 1992-1993.

COSTA, Mauro Rego. "Paisagens Sonoras e o Radio como Arte, Educação e Política com

Murray Schafer." In: Pesquisa e Musica, volume 4 n. 1 / 1998; pp. 79-88

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São

Paulo : Paz e Terra, 1996.

____________ Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos. 9a edição, São Paulo: Paz

e Terra, 2001.

FURTER, Pierre. Educação e Vida. Petrópolis: Vozes, 1987.

GADOTTI, Moacir. "A Prática à Altura do sonho", artigo indexado disponível em

www.ppbr.com/ipf/bio.

HAULI, Janete el. "Ecologia Sonora: a escuta do radio como ato de criação." Comunicação

apresentada no 6o Simposio Paranaense de Educação Musical, Londrina, 1996.

MARQUES, Francisca. "Ethnomusicological Research and Communitarian Demands:   an

experience in Cachoeira, Bahia." In: (Abstracts) International Council for Traditional Music, 36th World Conference, Rio de Janeiro, July 4-11, 2001, p. 65.

___________ "Educação Comunitária e Etnomusicologia: a colaboração participativa e o

desenvolvimento docente do pesquisador através do trabalho de campo." 3o Colóquio de pesquisa da Pós Graduação, 20 de março de 2002. UFRJ - Centro de Letras e Artes - Escola de Música (2002)

___________"Cultura Popular e Etnomusicologia: superando desigualdades étnico-raciais

e de gênero através da Educação Comunitária". Comunicação apresentada na I Conferência de Cachoeira: Cultura Brasileira, Candomblé e Africanidades, 27-30 de abril de 2003. Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte - IBECA.

OLIVEIRA PINTO, Tiago de. " Som e Musica. Questões de uma Antropologia Sonora".

In:. Ver. Antropol. V. 44 n.1, São Paulo, 2001.

SANTOS, Regina Márcia Simão Santos. " Desafios a Concepção de Curriculos e ao

Tratamento de Programas." In: Pesquisa e Musica, Volume 4 n. 1 / 1998; pp. 43-57.

SEEGER, Antony. " Styles of Musical Ethnography" . I: Helen Myers, ed.

Ethnomusicology: an introduction, N. York; Norton, 1992. pp. 342-353.


NOTAS

[1] O termo "soundscape", contração do inglês "sound" e "landscape", traduzido literalmente, "paisagem sonora", segundo Haouli (2000) ganhou força como movimento através das pesquisas sobre o meio ambiente sonoro no começo da década de 70.

[2] A ecologia sonora, ou ecologia acústica, é o "estudo da relação entre os organismos vivos e o seu ambiente sônico". Sua função é "chamar atenção para os desequilíbrios desta relação; otimizar a qualidade acústica sempre que possível e manter e proteger as paisagens sonoras acusticamente balanceadas onde quer que as mesmas existam". (Fórum Mundial de Ecologia Acústica, 1993).

O World Forum for Acoustic Ecology (WFAE) é uma associação interdiciplinar internacional de indivíduos e instituições interessadas nos aspectos científico, estético, ecológico e sócio-cultural da paisagem sonora mundial. (http://interact.uoregon.edu/MedialLit/WFAEHomePage)

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