VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas en Latinoamérica

Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en el Mercosur

27 al 29 de Noviembre de 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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SAÚDE FEMININA, ABORTO E PLANEJAMENTO FAMILIAR NA MÍDIA PENTECOSTAL 1

Maria das Dores Campos Machado
e Sílvia Regina Alves Fernandes2

I - Introdução

Este artigo analisa o impacto do neopentecostalismo no campo religioso brasileiro a partir de três dimensões que estão fortemente interligadas: a ênfase nos problemas femininos e familiares; a defesa de uma política de planejamento familiar; e o uso da mídia. Privilegiaremos um grupo neotradicionalista que tem crescido rápido e acentuadamente no Brasil, cujas ações e atividades têm provocado consequências modernizantes, particularmente para o segmento feminino de baixa renda. Discutiremos, portanto, como um grupo neopentecostal ao assumir estratégias para o recrutamento dos fiéis na competição religiosa, produz "consequências não intencionais" que favorecem as mulheres pobres - na medida em que as ajuda na luta diária pela sobrevivência - e simultaneamente influencia os demais grupos religiosos.

A literatura sugere uma correlação entre a expansão do Pentecostalismo e os processos macro-sociais em curso na sociedade brasileira. O crescimento da pobreza nas periferias das grandes cidades, a crise nos sistemas de saúde e educação, a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho e o incremento das taxas de divórcio e da chefia feminina nas famílias favorecem a difusão de uma religiosidade mística e emocional, porém, éticamente, afinada com o individualismo e a lógica capitalista contemporânea.

Competindo com os católicos, estas comunidades destacam- se não só pela rigidez de seus princípios morais, mas também pelo paradoxal alinhamento com a moderna dissociação entre a sexualidade e a procriação.3 Da mesma forma tais grupos vêem demonstrando uma melhor performace no uso da mídia, inaugurando no país uma nova forma de religiosidade - "a fé eletrônica". Há de se reconhecer que o processo de adaptação aos modernos meios de comunicação não tem sido homogêneo e nem simultâneo no pentecostalismo brasileiro, com igrejas optando pela mídia impressa e radiofônica, ao passo que outras se lançam mais ousadamente no programas televisivos. Percebe-se também que, enquanto algumas denominações privilegiam a pregação em seus programas e periódicos, existe uma tendência recente dos grupos pentecostais de adotar o modelo secular das televisões, rádios e jornais, com espaços para debates, noticiários, programas esportivos e de variedades ao lado da tradicional evangelização. Temas como ejaculação precoce, aborto, frigidez feminina já foram objetos de discussões de programas da Rede Record de Televisão pertencente à Igreja Universal do Reino de Deus. Assim como, os deveres dos maridos, a AIDS, o homossexualismo, o sexo no casamento são temas abordados constantemente também nas matérias do jornal de maior circulação desta denominação - "Folha Universal".

Jogada de Marketing ou não, a preocupação de oferecer informações desta natureza, pode ser interpretada também como resultante dos elementos ideológicos do Neopentecostalismo4, particularmente da Teologia da Prosperidade, que mesclam as necessidades espirituais com o bem estar na terra. Utilizando a mídia para atrair fiéis e criticar a rejeição da Igreja Católica aos contraceptivos artificiais bem como a ingerência desta instituição na política de saúde reprodutiva, a Igreja Universal do Reino de Deus defende a adoção de uma política de planejamento familiar como estratégia na luta contra a miséria social. Fundada em 1977 e constituida majoritariamente por mulheres pobres, esta igreja só perde em número de templos no Estado do Rio de Janeiro para a Assembléia de Deus, criada em 1911, optando como essa pelas regiões mais carentes de serviços públicos no desenvolvimento de suas atividades religiosas e assistenciais.

A mesma disposição de entrar no debate público, contestanto a realidade nacional, particularmente o lobby da igreja hegemônica, pode ser encontrada na fala do Pastor Israel A.Ferreira, líder da Assembléia de Deus na Bahia, para quem "faz-se necessário que se ouça a voz da igreja em questões morais e espirituais que o pais enfrenta . Por que deixar que a igreja católica fale a respeito do divórcio, planejamento familiar, AIDS e outros assuntos? Por que não temos posições definidas? Por que não marcamos presença no mundo?" (Jornal O Mensageiro da Paz, janeiro de 1996)

II - Pentecostais e a Mídia

O monitoramento de mídias distintas, ainda que associadas a grupos religiosos - Assembléia de Deus (AD) e Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) - requer o reconhecimento das especificidades de cada veículo investigado e embora não apresentemos uma interpretação a luz da semiótica, faz-se necessário uma breve descrição das tendências identificadas. Para começar o caráter diferenciado que cada veículo assume: a Rede Record de Televisão da IURD com o modelo aberto ou genérico de programas e de público; as rádios seguindo a tendência atual da fragmentação dos meios de comunicação e assumindo o formato temático ou religioso; e, finalmente, os periódicos dividindo-se, entre o padrão genérico, caso da Folha Universal (IURD), e a segmentação, identificado em O Mensageiro da Paz (AD).

Cabe lembrar também o impacto diferenciado de cada uma destas mídias na sociedade brasileira e a relação desigual dos grupos religiosos com os veículos impressos e eletrônicos. De acordo com Hoineff (1996: 34) "mais de 80% da população brasileira assiste diariamente à TV. A maior parte destas pessoas faz dela sua principal - ou única - fonte de informação. Isto quer dizer que é a televisão - e quase só ela - que sugestiona a opinião, os valores e o comportamento da maioria esmagadora dos brasileiros." Ainda que não se concorde totalmente com esta visão de um exacerbamento da cultura televisiva no país, com as teses de um telespectador passivo e de um "exercício do controle de opinião" por parte dos veículos genéricos hegemônicos atualmente5, não se pode negar a capacidade de difusão e de envolvimento das pessoas que a eles assistem. O próprio interesse dos grupos religiosos na aquisição de redes de televisão e implantação de canais a cabo expressa o reconhecimento desta importância. A evangelização - atividade principal no recrutamento de novos membros - é portanto, beneficiada com o uso da TV, constituindo-se como uma estratégia afinada com a sociedade brasileira contemporânea.

Desde seus primórdios no Brasil, o proselitismo religioso tem sido uma das características mais marcantes dos grupos pentecostais. A chamada evangelização "corpo a corpo", que vai desde a tentativa de sensibilização dos parentes, amigos e vizinhos até as manifestações em praças públicas, assédios aos transeuntes e visitas periódicas aos hospitais e presídios, constitue-se de longe a principal estratégia de expansão da maioria desses grupos. Mas mesmo neste campo percebe-se mudanças instigantes com a tentativa de adaptação aos modernos meios de comunicação.

Resgatando um pouco da história, a primeira tentativa dos pentecostais de recorrer à mídia, ocorreu em 1917 quando os pastores fundadores da AD do Pará criaram um pequeno jornal. Entretanto, o periódico que conseguiu vencer o desafio da continuidade e ganhar expressão mais nacional no contexto pentecostal foi o Mensageiro da Paz, publicado pela própria AD a partir de 1930. Tendo atingido uma tiragem de 300 mil exemplares, este jornal mensal começou a entrar em crise nos anos 80, sofrendo concorrência com periódicos de grupos dissidentes e sua tiragem entrou em queda contínua reduzindo- se hoje aos 65 mil exemplares.

Data de 1947, o primeiro programa radiofônico da Assembléia realizado por um pastor norte-americano atuando em Minas Gerais que enfrentou forte oposição em sua denominação. Na realidade somente em 1955 a cúpula da Assembléia aceitou o uso deste meio de comunicação, ocorrendo então uma grande expansão na produção dos programas religiosos, cuja principal preocupação era a pregação. De acordo com reportagem da Revista Isto é de 12/05/93 havia naquele ano, mais de 700 programas evangélicos no Brasil e só a Igreja Deus é Amor reivindicava 500 horas diárias transmitidas em mais de 500 emissoras. Apesar da alta concentração durante a madrugada e pelas manhãs existem programas evangélicos em todos os horários e diferentes rádios. Pesquisas indicam por exemplo, que no caso de São Paulo em cada 10 estações ilegais de rádio pelo menos 4 são evangélicas (apud Paul Freston, 1993, p.136- 137) De forma que até os anos 80 as igrejas evangélicas utilizaram praticamente o rádio devido ao baixo custo, à maior disponibilidade de horários e à facilidade técnica da produção. Os poucos que se aventuravam pela televisão alugavam horários em emissoras como a Manchete e a Bandeirantes que já vinham difundindo os programas dos televangelistas norte- americanos. Contudo, estudos recentes indicam um avanço em direção á mídia televisiva com o investimento de vários grupos confessionais nas redes a cabo e canais "brodcasting". No nosso universo de pesquisa, a IURD disputa hoje com a AD a hegemonia pelos meios audiovisuais religiosos no Norte e Nordeste do país. Esta última denominação que concentrou seus esforços na evangelização radiofônica, hoje investe no projeto "JESUS-SAT" a fim de distribuir programas religiosos, via satélite, a partir da Amazônia onde originariamente se instalou. Por outro lado, uma pesquisa realizada em Recife (Campos,1995:94) demonstra que os principais meios de divulgação da IURD segundo os próprios fiéis são: amigos e vizinhos (31%), televisão (29%), parentes (21%), rádio (15%) e outros (4%). Esta importância da Tv no recrutamento de novos fiéis não parece ser uma especificidade da denominação na capital de Pernambuco. Na realidade a IURD tem investido maciçamente na televisão, meio de comunicação que mais garante a junção da palavra com a imagem e, por decorrência a transformação da experiência religiosa em experiência intensamente emocional e participativa A transformação dos aparelhos eletrônicos em meios intermediários poderosos, utilizando-se de recursos diversos que vão desde o estímulo aos fiéis para que coloquem a mão ou a parte doente em contato com a tela ou posicionem um copo de água sobre o receptor esperando que a mesma seja abençoada para ser ingerida ao fim da programação (Oro,1991) até a troca de correspondência com lencinhos, vidrinhos com óleo santo sendo adquiridos via correio, indica uma grande interação do telespectador. Tal envolvimento dos pentecostais nos remete as teses de McLuhan (1964) que classifica a TV como um "meio frio" de comunicação que pela baixa saturação de dados propicia uma participação mais inclusiva da audiência. Outro ponto que os estudiosos têm destacado é que distinguindo-se do Televangelismo Norte-americano que não guarda uma necessária relação com as comunidades religiosas,(Gutwirth,J. 1991) os grupos que se aventuram na mídia brasileira o fazem para reforçar tal comunidade, ou seja atrair mais fiéis. De modo que recorrentemente são mostradas fotos, testemunhos e imagens ocorridas dentro das próprias igrejas e os fiéis são instigados a comparecerem aos cultos.

III - O universo da pesquisa e a metodologia:

A análise que apresentamos se baseia nos dados levantados nos meses de setembro, outubro e novembro de 1996 junto aos programas radiofônicos6 e televisivos7 e os periódicos das duas igrejas pentecostais previamente selecionadas - os jornais Folha Universal (17 exemplares), O Mensageiro da Paz (3) e as revistas Mão Amiga (1), Nosso lar (1) e a Seara (1). O caráter diferenciado de cada um destes meios de comunicação implicou na combinação dos tradicionais clippings para os periódicos com a gravação e posterior decupagem da gravação em fitas VHS e Cassete dos programas transmitidos respectivamente pela televisão e pelo rádio. Superada esta fase os registros relacionados ao nosso campo temático foram lançados num formulário padrão para cada mídia e transferidos para um banco de dados que proporcionaria uma real avaliação da importância de cada tema para os dois grupos religiosos. A fase exploratória da pesquisa levou-nos a optar pelos seguintes tópicos: Saúde feminina, planejamento familiar (anticoncepção e fertilização), aborto, AIDS, homossexualismo, prostituição, adultério, orientação sexual e casamento.

Uma primeira confrontação dos dados sugere que a IURD e a AD - carros-chefe do neo-pentecostalismo e do pentecostalismo clássico no Brasil - vêm tratando diferenciadamente os temas: saúde feminina, direito reprodutivo e planejamento Familiar na mídia impressa, radiofônica e televisiva. Isto fica claro quando verificamos o espaço reservado para as temáticas do planejamento familiar e do aborto na mídia impressa dessas duas denominações pentecostais. No período considerado, constatou-se que o tema do planejamento familiar apareceu quinze vezes nos treze números do Jornal Folha Universal e uma vez nos três exemplares do Mensageiro da Paz e das revistas Nosso Lar e Mão Amiga, cada uma com a publicação de um único exemplar neste período. A frequência da temática do aborto nestes periódicos - apenas quatro registros na Folha Universal - pode ser interpretada a partir da dificuldade dos grupos religiosos, excetuando-se a hierarquia católica, em debater publicamente a questão no Brasil, mas pode também expressar a intenção da maior agremiação neopentecostal de enfrentar a igreja hegemônica, mesmo neste campo polêmico..

Impecavelmente vestidos e penteados, com tom de voz determinado (por vezes, agressivo) e com forte domínio sobre os movimentos da câmara de TV, as lideranças ousadas da IURD (Bispos e pastores) invadem as salas de milhares de pessoas sintonizadas tanto com a Rede Record de televisão, como com as rádios Record e Copacabana8, privilegiando o público feminino com programas que contemplam entre outros temas, relações conjugais, saúde feminina e planejamento familiar9. A recepção destes programas só poderá ser analisada na fase posterior desta pesquisa, quando realizaremos grupos focais com telespectadoras destes veículos. Considerando as inúmeras declarações femininas associando a primeira visita á Igreja a uma determinada programação que acompanharam, seja radiofônica ou televisiva, podemos levantar a hipótese de uma receptividade positiva desse segmento ao conteúdo transmitido por taís mídias..10

Apresentando um universo midiático mais reduzido em relação à IURD11 e num estilo mais moderado, a AD concentra nos veículos impressos a discussão a respeito da saúde reprodutiva, anticoncepção e planejamento familiar12. Na mídia eletrônica, a AD prioriza a mensagem evangélica não demonstrando a mesma preocupação da IURD no que se refere a temáticas relacionadas a sexualidade e a reprodução. Centra sua mensagem nas doutrinas bíblicas; informes das atividades no Brasil e - numa proporção menor em comparação com a IURD - apresenta testemunhos de convertidos ("ex-homossexuais"; " ex- mães de santo"; "ex-sambistas",etc..). Cabe destacar a disparidade na programação eletrônica e impressa favorecendo a IURD. Enquanto esta última mantém um jornal semanal (tiragem de 940 mil exemplares), tem a sua própria Rede de Televisão e duas Rádios com 24 horas de programação, a AD tem um jornal mensal, não dispõe no Rio de Janeiro de canais televisivos nem mesmo de estações de rádio, revelando uma inexpressiva utilização da mídia eletrônica naquele Estado. Exemplificando: em setembro monitoramos oito programas da IURD que representavam 5.310 minutos da programação mensal, e identificamos apenas um programa da AD, o Renascer, transmitido pela TV Record aos sábados (07:00/7:30), totalizando 120 minutos de programação mensal. Em novembro, outro programa desta igreja entrou no ar, também aos sábados (10:50 as 11:20): o Movimento Pentecostal que transmitido pela Rede Manchete - uma TV comercial - imediatamente passou a ser monitorado

O espaço (em colunas ou cms) ou o tempo (minutos) reservado a cada tema varia em função da mídia e do grupo religioso, conforme adiantamos algumas páginas atrás.13 Assim, vemos no gráfico acima que a Saúde Feminina é o tópico com maior número de registros nos veículos impressos que selecionamos para acompanhar, destacando os periódicos da AD como aqueles que proporcionalmente apresentaram mais matérias sobre o tema. Englobando desde a osteoporose, a menopausa, o cancer de mama, as infecções, as inflamações uterinas e ovarianas até a depressão e a Tensão Pré-Menstrual, verifica- se uma grande incidências de registros relacionados à gestação e ao parto. Estes como os demais subtemas ligados à saúde da mulher aparecem ora numa abordagem médica, ora numa perspectiva religiosa. Predominam, entretanto, os testemunhos, ou cartas de mulheres que viveram algum distúrbio físico contando "graças alcançadas": a cura, a gravidez e o parto normal.

A IURD, embora tenha proporcionalmente trabalhado menos o tema da saúde feminina do que a AD em seus periódicos, mantém a preocupação com as questões desta natureza em todas as três mídias, explorando-as de forma mais intensa nos programas radiofônicos. Ou seja, enquanto os tópicos que compõem nosso campo temático aparecem em proporções diferenciadas em todos os veículos da IURD, a Assembléia restringe bastante as questões focalizadas na mídia eletrônica. Na realidade, nestes três meses, os temas mais abordados nas comunicações eletrônicas foram: orientação sexual, homossexualismo e prostituição. Na mídia impressa destacou-se o homossexualismo. A frequência com que esse tema foi abordado nos três meios de comunicação das duas denominações talvez se explique em função da discussão no Congresso Nacional sobre a legislação da união civil dos homossexuais. Já a ênfase na saúde feminina parece associada ao sexo da maioria dos membros destas duas denominações. Segundo estudo recente (ISER,1996) 66% dos membros da AD e 81% dos adeptos da IURD no Estado do Rio de Janeiro pertencem ao sexo feminino.

Em termos de audiência, verificou-se também uma maior capacidade da IURD em atingir o publico telespectador. Enquanto o programa 25a Hora (segunda a sexta, 21:00/22:00 horas) no início da pesquisa obteve uma audiência em termos absolutos de 64.000 aparelhos, o programa Renascer, transmitido nas manhãs de sábado (7:00/7:30) registrou uma audiência em termos absolutos de 14 000 aparelhos. Seguindo o modelo dos programas de debate com especialistas em torno de um tema, o 25a Hora se destacou também pelo tratamento das questões que constituem nosso campo temático. No período de setembro a novembro foram transmitidos três programas sobre saúde reprodutiva, um sobre planejamento familiar - reprisado na íntegra dias depois -, um sobre AIDS, um sobre violência sexual, dois sobre orientação sexual, um sobre sexualidade masculina e um sobre casamento, totalizando 635 minutos de debate com médicos, juristas, políticos e representantes dos movimentos sociais e ONGS.14

No Rádio a disparidade na presença destas duas igrejas se mostrou similar, e enquanto começamos a pesquisa monitorando quatro programas entre os inúmeros veiculados pela IURD, tivemos grande dificuldade no mapeameameto da programação da AD e só acompanhamos o programa O Evangelho no Ar, transmitido pela Rádio Boas Novas. No mês de outubro, passamos a acompanhar Celebrando Deus com o Planeta Terra e em novembro identificamos e monitoramos também os programas: Assembléia de Deus em Petrópolis, De volta a Bíblia e AD de Mutuá. A gravação destes programas tinha como objetivo o conhecimento da estrutura ou formato e mensagem veiculada, e a verificação da associação ou não com o nosso campo temático. Aqui como na televisão constatou-se que a programação da IURD esta mais aberta às questões de saúde e direitos reprodutivos, planejamento familiar e AIDS. A concentração por parte da programação radiofônica da AD em temas como homossexualismo e prostituição chama atenção, particularmente pelo fato destes temas aparecerem desvinculados da AIDS, do controle de natalidade e do aborto.

IV - "De Mulher para mulher"

O nome de um dos quadros do programa sabatino "Falando de vida", transmitido pela TV Record, sugere uma atenção especial às questões femininas; mudanças no universo pentecostal com relação à "vaidade mundana"; o cuidado com o corpo por parte das mulheres, e, finalmente, uma forma especial de se dirigir a este segmento. 15 São jornalistas ligadas à agremiação que assumem a palavra e transmitem orientações sobre estética e moda, falando do bronzeamento artificial, obesidade, lipoaspiração e da necessidade da mulher se preocupar com a sua aparência. A inclusão de temáticas radicalmente contestadas até bem pouco tempo pelo pentecostalismo clássico num programa de caráter religioso, expressa uma flexibilização dentro do universo mais amplo dos pentecostais, com desdobramentos na própria AD.16

No rádio, o programa "SOS Mulher" - direcionado ao segmento feminino - destaca-se na mídia evangélica por seu tom informal. Embora existam os apelos proselitistas, as apresentadoras, três esposas de pastores da IURD convidam em geral, profissionais da área médica para esclarecimento de temas concernentes à saúde feminina como: menopausa, osteoporose, aborto, anticoncepção etc. Tentando criar um clima de cumplicidade e intimidade, as apresentadoras saúdam as ouvintes, tratando-as como "amigas" e solicitando que permaneçam juntas, "ligadinhas" durante todo o programa. Após a abertura do tema para debate, no quadro "Mulher e Saúde" propõe-se a participação das mulheres ouvintes que relatam suas experiências e/ou pedem esclarecimentos aos profissionais convidados. Com um bom índice de audiência com relação ao horário da rádio17, o programa é iniciado com a voz forte do locutor que anuncia: "Para você mulher, que vive o instinto mãe, esposa, que vive a responsabilidade de uma família, programa: SOS Mulher". Esta frase expressa a importância dos tradicionais papeis atribuidos à mulher, mas tanto os temas tratados como a própria condução do programa pelas apresentadoras sugerem uma valorização da mulher na tentativa de promover-lhe a auto-estima, assim como uma ampliação dos papéis a serem exercidos por este segmento na esfera pública.

O desenvolvimento de alguma atividade remunerada que contribua para o orçamento familiar, aparece também como uma forma de atenuar os conflitos entre os casais e, particularmente a cobrança feminina em relação ao que os maridos podem oferecer ao grupo familiar. A motivação religiosa vez por outra aparece no discurso daqueles que ultrapassaram a soleira da porta de suas residências. Através dos testemunhos das ouvintes, verifica-se que cabelereiras filiadas á igreja, não só transformam suas cadeiras em "uma espécie de divã", escutando os problemas de suas clientes e aconselhando-as em função de seus valores religiosos, mas exercem o papel da "mulher de Deus", evangelizando-as. De forma similar, vereadoras e deputadas, filiadas e eleitas com apoio de suas comunidades religiosas, declaram terem sido incentivadas ao engajamento político com o objetivo de dar "continuidade a obra".18

Quanto à abordagem dos temas e à natureza das matérias, o formato de debate com participação de especialistas num programa comprometido com a evangelização resulta numa mesclagem de informação/orientação dos profissionais da área médica e jurídica com os testemunhos e o aconselhamento da apresentadora principal para que a ouvinte procure a Igreja e participe das campanhas da saúde ("Corrente do Setenta") a fim de libertar-se do mal que a molesta, ou seja dando uma interpretação espiritual à doenças como: cólicas e dores no período menstrual, cistos ovarianos, DST, etc...

Em setembro de 1996 ocorreu um debate durante 30 minutos acerca do aborto, discutindo-se também o uso de métodos contraceptivos. A questão girou em torno do posicionamento a favor da legalização do aborto por parte do candidato à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro: Luiz Paulo Conde. As apresentadoras do "SOS Mulher" polemizaram a postura do candidato, condenando-a abertamente. Da mesma forma, uma ouvinte rejeitou a pospota de legalização das práticas abortivas, argumentando : "Há muitos métodos que evitam a gravidez, engravida quem quer. Por isso tem a pílula, a camisinha...." A concordância da apresentadora é imediata e seguida do comentário: "quem está na presença de Deus sabe aguardar o momento certo para engravidar, para fazer tudo direitinho".

A expressão "fazer tudo direitinho" demonstra a valorização da virgindade antes do casamento. Contudo, o uso de métodos anticoncepcionais é visto como a melhor maneira de se evitar a gravidez indesejada que poderá ocasionar o aborto. Uma das apresentadoras do programa, relatando sua experiência, afirma que aos 15 anos engravidou e como não tinha recursos, a mãe "querendo se livrar" fez com que ela tomasse vários chás para provocar o aborto. Chás estes, que ela não iria sequer mencionar o nome no programa para não ensiná-los às ouvintes. Repreendendo a atitude da mãe declara:

Olha gente, foi uma coisa diabólica. Eu tentei o aborto três vezes, foram as vezes que minha mãe me deu aquele tipo de chá horrível, para eu praticar o aborto. Mas eu digo pra vocês o seguinte: hoje minha filha tem 10 anos e graças a Deus não tem nenhuma sequela, não foi afetada em nada (...). Nós vivemos segundo a Bíblia (...) e a Bíblia diz: 'não matarás'." (Sos Mulher, 28/09/96)

Embora as apresentadoras se manifestassem radicalmente contra o aborto independente da situação, questionando a legitimidade da candidatura de um político com tais bandeiras, algumas fiéis que ouviam o programa declararam serem contra, excetuando-se os casos de estupro. O assentimento do aborto nesses casos nos remete para 1) o leque de posições identificado nas duas comunidades, tanto na liderança religiosa como entre os membros ou filiados; 2) para o caráter político das posições assumidas no debate sobre a legislação do aborto na conjuntura pré-eleitoral, onde alianças e compromissos foram estabelecidos na tentativa, por um lado, de assegurar os votos dos fiéis pentecostais, de outro, de garantir determinados privilégios e participação na gestão pública.

No programa "Ponto de Vista" (28/09/96) exibido simultaneamente ao programa "SOS Mulher", pastores de destaque no meio evangélico, um médico e um Deputado Federal também evangélicos, criticaram ferrenhamente os dados apontados pela pesquisa "Novo Nascimento do ISER (1996:69) onde constatou-se que 60% dos membros das igrejas evangélicas aprovavam o aborto em "certas circunstâncias especiais". Visivelmente indignados com os resultados da pesquisa, líderes tanto da AD quanto da IURD colocaram em dúvida a credibilidade do orgão de pesquisa, concordaram que o único caso em que é legítima a prática do aborto é o que implica em riscos para a saúde materna e combateram como as apresentadoras do "SOS Mulher" a posição do candidato situacionista. Explicitando que os "evangélicos" só admitiam o aborto terapêutico e intervindo várias vezes na discussão, o Pastor Mário Luís (IURD) questionava aos telespectadores e um a um dos debatedores se eles votariam num candidato que valorizava mais "um saco de cimento" - numa alusão as obras urbanísticas do PFL no Rio de Janeiro - "do que a um feto". De modo que, este pastor-apresentador acabou por reduzir as posições das diversas denominações representadas em uma "moeda" de troca no jogo eleitoral. Afinal, não se pode desconsiderar os compromissos políticos assumidos pela liderança da IURD com o candidato Sérgio Cabral Filho, que adotou uma postura conservadora e defensiva frente as posições de seu opositor.

Em programas como o 25a Hora (Machado, 1997) já haviamos identificado o reconhecimento das leis existentes e, mais, a defesa da extensão do direito do aborto para os casos de anomalia fetal, por parte do Pastor Ronaldo Didini, ex- dirigente do programa e na ocasião Presidente da Associação Beneficiente Cristã - braço social da IURD. Mesmo no caso da Assembléia de Deus, cuja liderança não apresenta a mesma disposição dos neopentecostais para um debate público sobre o aborto, a radicalização no programa "Ponto de Vista" e a condenação sem atenuantes às práticas abortivas, não expressa a opinião de toda a hierarquia da denominação. Convocado a prestar depoimento na Comissão Especial da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 25/95) que propunha uma revisão do Código Penal de 1940, o presidente da Convenção Geral das Assembléias de Deus, pastor José Wellington Bezerra, depois de afirmar que era a favor "do direito à vida desde a concepção" e questionado pela Parlamentar Marta Suplicy, acrescentou que "nós , evangélicos, concordamos com o que já está preceituado no Código Penal" ou seja o aborto terapeutico que preserva a vida materna é legítimo e legal e que, no "caso de gravidez indesejada, seja ela fruto de um estupro ...concordamos, perfeitamente, desde que o estupro seja comprovado." (Audiência Pública 09/11/95)

V - Aborto: Pastores abrem espaço aos especialistas

Em 13 de dezembro de 1996 foi transmitido um outro programa 25a Hora (0:00/01:00) cujo tema era novamente o aborto e que merece alguns comentários, mesmo estando fora de nosso universo amostral. Analisamos essa programação em especial porque contrastando com o Ponto de Vista, descrito acima, ela explicita bem a ambivalência com que o tema da interrupção da gravidez vem sendo tratado na mídia televisiva Pentecostal Transmitido como sempre por um pastor da IURD, neste caso o Pr Eduardo Cardoso, este programa convidou para debater a problemática do abortamento três médicos do Estado de São Paulo e uma Assistente Social. Dos médicos pelo menos dois são conhecidos por sua atuação em favor do cumprimento da legislação nos hospitais públicos e pela luta pela extensão do direito de aborto nos casos de anomalia fetal: Dr Tomas Cardoso, diretor do hospital de Jabaquara e Dr Thomas Gollop, respectivamente.. Afinal durante quarenta (40) minutos estes profissionais puderam livremente explicar para os telespectadores a legislação atual, os procedimentos adotados nos casos considerados legais, os hospitais que atendem as mulheres nesses casos, quais os setores sociais mais sacrificados com o caráter restritivo da legislação, os riscos impostos ao segmento feminino no abortamento clandestino, e defenderam - todos os quatro convidados - o livre direito de escolha das mulheres e/ou dos casais frente a uma gravidez indesejada.

Entre uma exposição e outra, somente flashes com opiniões contrastantes de uma advogada feminista - Leila Linhares - , um deputado federal - Salvador Zimbaldi, do PSDB - e a participação dos telespectadores através de telefonemas e fax . O pastor reduziu sua participação apenas a leitura das questões encaminhadas aos ouvintes e em nenhum momento expôs qualquer julgamento favorável ou desfavorável sobre as diversas situações ali levantadas. Ainda que os participantes de casa fossem em sua maioria contrários à prática do aborto independente das circunstâncias e usassem argumentos religiosos, a postura do pastor como um árbitro entre os convidados e os telespectador sugeria por um lado, um programa de debates democrático, por outro lado, que havia uma intenção de deslocar a discussão do plano moral e religioso para o plano sócio-econômico e médico. Ainda que esta última hipótese não possa ser verificada sem ouvir a própria liderança religiosa desta igreja, cabe sinalizar para a importância de uma rede de televisão de um grupo Neopentecostal abrir espaço para o tratamento desta temática e cuidar de convidar pessoas tão seriamente comprometidas com uma das mais polêmicas das bandeiras feministas.

VI - O que pensam os líderes religiosos sobre o Planejamento Familiar:

Como demonstram os três gráficos apresentados anteriormente, a IURD é igreja que vem apresentando maior preocupação com as questões pertinentes a contracepção e ao planejamento familiar. Discutindo estes temas nas três mídias com participação de vários atores sociais da sua hierarquia religiosa (Bispos, Pastores, esposas de pastores, obreiras) e da sua membresia, a IURD tem estimulado alguns poucos pastores de outras igrejas pentecostais a se posicionarem em defesa de uma política de planejamento familiar. No caso da Assembléia o principal ator social a participar do debate neste período foi o Pastor Silas Malafaias, eleito Presidente do Conselho dos Pastores do Brasil com o apoio da IURD. Quase a totalidade dos registros sobre estes temas e envolvendo sua pessoa estavam associados às matérias publicadas na imprensa da IURD ou veiculadas na programação eletrônica dessa denominação. São suas as seguintes palavras:

"Nós os evangélicos, não somos hipócritas. Somos a favor de que haja um planejamento familiar, pois a Bíblia diz que os Filhos são heranças e bençãos do Senhor. Se não posso tê- los para que sejam uma benção, é melhor não tê-los. O grande problema do Brasil ainda é a educação. O governo (...) gasta milhões de dólares em publicidade que não dizem nada."

Cabe ao casal a definição do tamanho de sua prole e para que esta atitude seja levada adiante é fundamental uma campanha educativa coordenada pelos orgãos do Estado. Mas foi o Bispo Edir Macedo dirigente máximo da IURD que, radicalizando ao máximo o princípio do livre arbítrio, deixou explícita a transferência decisiva das decisões sobre a reprodução humana das instituições religiosas para os homens e mulheres, argumentando:

"Os filhos não vêm pela vontade de Deus. Eles vêm pela vontade do próprio homem e da mulher. Quando coabitam em relações sexuais, então os filhos vêm naturalmente. Eu sei que quando falamos assim, muitas pessoas ficam um pouco arredias e até tristes de ouvir isto de nossa parte. ' Puxa ! Quer dizer que os meus filhos não vieram da vontade de Deus?' Não. Os seus filhos, como os meus, vieram das nossas vontades...Eu penso, acredito, creio de todo o meu coração, que os filhos vêm pela vontade exclusiva dos pais e não pela vontade de Deus."

Associando a falta de controle da fertilidade à ignorância do casal, mas também à forte pressão política exercida pela Igreja Católica sobre os agentes políticos no país- que nem mesmo implementam as leis já existentes sobre a saúde e o direito reprodutivo- líderes religiosos, tanto da Assembléia quanto da Universal do Reino de Deus atacam a política natalista da igreja hegemônica, contestando sua ingerência em questões desta natureza.

"Infelizmente muitas religiões ainda vivem da 'miséria' do povo, enganando-os sobre a questão do batismo, do casamento pago, das missas. A igreja católica não tem interesse em que haja um planejamento familiar, pois seus rendimentos serão afetados. Normalmente, a igreja evangélica ensina seus fiéis e, graças a Deus, vemos um sucesso, pois o povo evangélico está se planejando e assim tem condição de dar uma melhor assistência aos seus filhos "( Bispo Paulo Guimarães, 25a. Hora, 09/09/96).

Assim, para a liderança da IURD, as consequências do lobby católico sobre a opinião pública, principalmente sobre os políticos, não se resumem na omissão dos governantes no que se refere à saúde feminina e aos direitos reprodutivos de grande parte da população brasileira - direitos não só de conhecer os diferentes métodos anticoncepcionais, como de obtê- los gratuitamente -, mas elas se desdobram no aumento dos problemas sociais nas cidades, acarretando a marginalidade social e o crescimento da pobreza no País. As palavras do Bispo Edir Macedo não deixam dúvidas sobre quem são as principais vítimas desta situação.

"Quantas crianças estão sofrendo, na miséria, andando nas ruas como ratinhos, como camundongos, maltrapilhos? Por que? Culpa de quem? De Deus? Não. Deus não tem culpa do Nascimento deles. Foram os pais que não tiveram consciência de não os terem. Poderiam pensar: não , nós não temos condições de ter filhos, Moramos num barraco...nem temos o que alimentar. Então é melhor que nós não tenhamos. Então use camisinha. A mulher , tome remédio, enfim dê um jeito, mas não tenha filhos nessas condições. Faça qualquer sacrifício para que eles não venham."(Folha Universal, n.

242,24 a 30/11/96)

A solução é uma só: a implementação de uma efetiva campanha de planejamento familiar por parte do Estado que atinja principalmente os setores mais pobres e desinformados da população. "Vamos colocar as coisas nos seus devidos lugares", afirma o próprio Bispo Macedo:

"... muitas famílias estão vivendo na maior desgraça, por quê? Porque não tiveram cabeça para pensar, não tiveram também orientação, pois o governo teria a obrigação de orientar os pais para que não tivessem filhos, dar uma cartilha, falar sobre o planejamento familiar, motivar os casais a primeiro se estabelecerem, terem uma vida estável, financeiramente, para depois então pensarem em filhos...Assim mesmo, eu diria que não deve ter mais do que dois. Você pode verificar que os ricos não têm muitos filhos. Eles têm um, no máximo dois filhos, porque sabem que cada filho requer não apenas despesas, mas também atenção especial dos pais, uma educação, e os dias de hoje são muito difíceis para criar filhos...". (Folha Universal, n. 242,24 a 30/11/96)

Usando a mesma analogia que aproxima o crescimento acelerado dos pobres com o dos roedores, o Pastor Ronaldo Didini, ex-presidente da ABC e ex-apresentador do Programa 25 a Hora, vai além do apelo do Bispo de sua agremiação, afirmando:

"quando digo que criança não é rato, refiro-me à multiplicação desordenada da população, principalmente nas comunidades carentes, nas quais observamos um número exagerado de crianças mal vestidas e mal cuidadas, morando com suas famílias em barracos que mais parecem buracos ou caixotes, cercados de lixo por todos os lados." E, mais, a "Lei 9276, de 12 de Janeiro de 1996, que vinha regulamentando o exercício do direito reprodutivo dentro da visão de atendimento global e integral à saúde, combina diversas ações para o controle demográfico. Nosso problema não é falta de leis, mas de ações práticas. Leis temos até demais; o que desejamos é ver o Executivo( ....) utilizar os mecanismos e as verbas à sua disposição para conscientizar e ajudar a população nesse aspecto tão importante da cidadania." (Revista Mão Amiga, n. 8, outubro de 1996, p. 11)

E mais, as igrejas, os sindicatos, as entidades civis de um modo geral têm um papel a cumprir nesta luta :

"Ir às comunidades carentes, panfletar, distribuir camisinhas, anticoncepcionais, ministrar palestras, enfim, educar o povo, se faz necessário. Sabemos que a mortalidade materna é reflexo direto da condição de vida e da qualidade de assistência recebida pela mulher durante a gravidez. é assombroso o número de mulheres que morrem ainda jovens nas comunidades carentes...O governo estima que 14 milhões entre 15 e 49 anos não têm acesso aos anticoncepcionais ou a alguma forma de esterilização, e estão em condições normais de terem filhos...Dessas 14 milhões de mulheres, pelo menos 80% estão nas periferias das grandes cidades sem cuidados ou assistência médica. um verdadeiro assassinato em massa o que se faz com elas e seus filhos". Pastor Ronaldo Didini (Revista Mão Amiga, n. 8, outubro de 1996, p. 11)

A própria mídia precisa reconhecer e assumir seu papel. A saber: divulgar informações, realizar debates sobre o assunto, ajudar na "estratégia de formação da família" e criar uma opinião pública favorável a inclusão de temas desta natureza nos currículos das escolas públicas, defende o Pastor da IURD, Mário Luís (Folha Universal, n. 242,24 a 30/11/96) A ação da Igreja Universal do Reino de Deus com intuito de realizar uma campanha de planejamento familiar foi identificada em pelo menos quatro registros onde atividades filantrópicas da IURD incluiam a distribuição de preservativos e folhetos explicativos sobre planejamento familiar. O n. 231 do Jornal Folha Universal (setembro, 96, p.8), na matéria "Distribuição de cestas Básicas na Grande São Paulo", indica que juntamente com alimentos, anticoncepcionais orais foram distribuidas gratuitamente na Zona sul de São Paulo, Jardim Itajaí. Sob o título de "ABC intensifica obra social", o n. 234 deste jornal, (out.96, p.7, 2o caderno) traz uma materia noticiando a distribuição de 500 preservativos e material educativo na Zona Oeste de São Paulo - Jardim Santo Elias. Ainda no mês de outubro, a artigo "A Mão Amiga no Nordeste" (Folha Universal n.o 237, p.6) informa os trabalhos de assistência social da ABC no Estado da Bahia, onde "o atendimento médico (enfermagem e primeiros socorros), odontológico, jurídico, planejamento familiar, estético (mãos e cabelos) e a distribuição de alimentos são realizados periodicamente, pelos voluntários" daquela entidade. As incursões da ABC no Rio de Janeiro foram noticiadas na Folha Universal de n.232 (setembro de 1996, p. 2, 2o caderno). Sob o título de "Planejamento familiar" informa-se que além de atendimento dentário e corte de cabelo, os integrantes desta entidade doaram preservativos no Morro da Cachoeirinha no RJ.

No Estado do Rio, o fato do Pastor Mário Luís ter ocupado a Presidência da Fundação Leão XIII, favoreceu a imagem da IURD, pois tal organização trabalhou de forma complementar com a Associação Beneficente Cristã. São suas as seguintes palavras:

"Equipes da Fundação Leão XIII têm levado a algumas comunidades carentes essas informações e ajudado muitas famílias. Coloquei todos os médicos e assistentes sociais em 90 unidades, por todo Estado do Rio. Eles ensinam a planejar a família e ajudam no exame pré-natal, uma área que devemos nos preocupar, já que algumas mulheres não sabem se preparar para ter o bebê saudável. Em todo o Brasil devemos trabalhar o planejamento familiar, ensinado métodos anticonceptivos urgentes, para que essas famílias tenham qualidade de vida de fato e de verdade. Só assim poderemos evitar que a mulher carente tenha sete, oito, dez filhos, sem poder sustentá-los. Ela quer até parar de engravidar, mas não sabe como fazer." (Jornal Folha Universal, n. 241, novembro de 1996, p.1, 2o caderno)

VII - Considerações finais

A pluralidade religiosa e a competição no recrutamento de fiéis tão facilmente observável nos dias atuais em nossa sociedade, têm provocado mudanças significativas em grupos religiosos tradicionais. De modo particular, as estratégias adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus que implicam dentre outras práticas, no estímulo da implementação de uma política de planejamento familiar e inserção da mulher no mercado de trabalho, têm incitado consequências modernizantes - ainda que não intencionais - especialmente para o segmento feminino, gerando um certo impacto não apenas no interno do campo evangélico como também fora deste. Tal impacto se configura especialmente no universo dos direitos reprodutivos, ou seja, no enfrentamento da questão através da mídia por parte da IURD que além de opor-se à posição da Igreja Católica no que se refere as formas de planejamento familiar, termina por incitar posicionamentos por parte de outros grupos religiosos a respeito deste tema.

direito da mulher conhecer e ter acesso gratuito aos métodos anticoncepcionais conforme a Constituição de 1988. Na medida em que lideranças religiosas e membresia reivindicam através dos meios de comunicação uma política de educação sexual e saúde reprodutiva, exigindo sua implementação, acabam por reforçar demandas dos setores feministas e dos segmentos populares que visam garantir os direitos constitucionais sobretudo, da mulher. Porém, o fato de a mídia evangélica funcionar como instrumento reivindicativo, além de evangelizador, não implica em se desconsiderar que interesses institucionais estejam maqueados em tais reivindicações.

A Assembléia de Deus também tem demonstrado sinais de mudanças já que ao menos uma parte de suas lideranças está revendo ou encarando de forma positiva o uso da televisão como meio de evangelização, sem desvalorizar, contudo, a utilização do rádio tendo em vista que até o fim do biênio, este grupo pretende efetivar a aquisição de uma emissora de rádio. Embora a abordagem desta denominação sobre nosso campo temático ocorra de forma mais tímida na mídia eletrônica, a relevância a ele atribuída pode ser observada na mídia impressa onde as lideranças procuram informar e formar a opinião pública a respeito aos direitos reprodutivos, planejamento familiar e ao aborto.

O tipo de abordagem da IURD mescla o social com o religioso. Se por um lado divulga o trabalho da ABC que busca esclarecer a população a respeito dos vários métodos contraceptivos, por outro, ao defender a adoção do planejamento familiar adequado, quase sempre o faz estrategicamente numa postura crítica `as pressões da Igreja Católica no que se refere à implementação de uma política de planejamento familiar por parte do Estado brasileiro. Da mesma forma o pastor da AD critica o Vaticano que prescreve diretrizes a respeito de métodos contraceptivos e planejamento familiar: "Quem não participa do jogo não pode ditar as regras" referindo-se obviamente à condição celibatária do clero católico.

Sinteticamente foi possível identificar a trajetória que ambas as denominações vêm adotando junto à mídia. A hegemonia da IURD na mídia televisiva, tem favorecido esta agremiação neopentecostal no jogo de alianças religiosas e políticas. Se por um lado esta hegemonia pode ser resultado do poder econômico deste grupo (amplamente questionado por vários setores da sociedade civil), por outro lado, não se pode ignorar a adoção do modelo "geralista"; a inegável capacidade de adequação às modernas técnicas de edição e a abrangência dos temas abordados na sua grade de programação. Já a Assembléia de Deus parece manter em sua programação televisiva e radiofônica o "populismo religioso" na escolha dos apresentadores que, na maioria das vezes, são pastores com baixo nível de instrução. Mais importante do que a demonstração de estar atualizada com os problemas da família brasileira no tocante ao planejamento familiar e anticoncepção, parece ser a divulgação da condição de "eleitos" dos seu fiéis, conhecedores da Bíblia que alcançam de Deus as graças desejadas conseguindo "colher" novos membros. Mesmo assim, constatou-se na imprensa um debate acirrado entre a liderança desta denominação acerca das estratégias de evangelização mais adequadas e modernas, rompendo-se a hegemonia do grupo que sempre concebeu a televisão como uma ameaça à comunidade assembleiana.

GRAFICOS


 

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Folha Universal (1996), Rio de Janeiro, Editora Gráfica universal, ano V - do número 230 ao número 242

Revistas:

Nosso Lar (1996), Rio de Janeiro, CPAD, ano IV n. 12

Mão Amiga (1996), São Paulo, Revista da Associação Beneficente Cristã, ano II, n. 8

NOTAS

1 Pesquisa financiada pela MacArthur no Programa de População.

2 Respectivamente, professora Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e aluna do Mestrado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Agradecemos a colaboração fundamental da Assist. de pesquisa e mestranda do IUPERJ ,Wania Amélia Belchior pelo monitoramento da mídia impressa.

3 Pesquisa do Datafolha realizada em 1994 revelou que os católicos representam 74,9% da "população habilitada ao voto", enquanto os evangélicos totalizam 13,9% do colégio eleitoral brasileiro. Entretanto, só na Região Metropolitana do Rio, os grupos evangélicos atrairam nos últimos três anos 300 mil novos adeptos - 64% de origem católica e 17% procedentes da Umbanda. ( ISER, 1996)

4 Os investigadores têm diferenciado o "pentecostalismo clássico" do "neopentecostalismo" em função da rigidez moral e da ênfase nos dons de língua do primeiro, e da liberalidade e da importância atribuida ao exorcismo no segundo. A constatação de um intenso trânsito dos fiéis protestantes e pentecostais sugere que o critério da "eficácia" na resolução dos problemas cotidianos, seja através do exorcismo e das correntes de oração, seja através de algum tipo de ajuda material ou profissional, tem tornado os grupos neopentecostais extremamente atraentes.

5 Na visão de Wolton (1996), o telespectador da TV "geralista" não é passivo e nem interpreta da mesma maneira as mensagens que recebe. Contrariando a interpretação de Hoineff, o pesquisador francês defende a criatividade, a capacidade de discernimento e a atividade do público televisivo.

6 No rádio, os programas que abordaram nosso campo temático foram: SOS Mulher (5); Palavra Amiga (17); O evangelho no Ar (1); Celebrando Deus com o planeta Terra (2); De volta a Bíblia (1)

7 Os programas televisivos monitorados que abordaram nosso campo temático foram: O despertar da Fé(9); Falando de Vida(7); Espaço Evangélico(4); Ponto de Vista(3); Primeiro Mundo(4); Jesus Verdade(11); 25a. Hora(10) e Palavra de Vida(12); Reunião dos Milagres (5); Ponto de Fé(1) e Bom dia Vida(1); Renascer (6); Movim. Pentecostal (3)

8 O programa radiofônico "Palavra Amiga" transmitido pelas rádios Record e Copacabana (segunda a sábado 11:00 a 11:30) atingiu 0.26% dos ouvintes da frequência AM, expressando o pico de audiência alcançado pelas rádios respectivas durante as 24 horas de transmissão.Fonte: IBOPE

9 Nos meses de setembro, outubro e novembro de 1996, o tema: casamento representou 33% dentro do tempo monitorado na TV, e o tema: Saúde feminina, apresentou o mesmo percentual sobre o tempo monitorado na mídia radiofônica.

10 Como no mercado editorial, o crescimento dos segmentos familiar e feminino na mídia eletrônica parece ser uma tendência genérica na América Latina (Hoineff: 1996:70-71). No caso dos veículos religiosos cuja membresia é predominantemente feminina e a família tem um papel fundamental, a opção por tais segmentos é mais do que um reconhecimento da importância desta tendência mais ampla, é uma estratégia de recrutamento e evangelização.

11 Na TV, a AD transmite apenas 2 programas: "Renascer"( Record /CNT) e "Movimento Pentecostal" (Manchete). Ambos vão ao ar nas manhãs de sábado com duração de 30 min. cada programa.

12 O tema Saúde feminina na AD, representou 42% , contra 23% da IURD.

13 Quando comparamos a programação eletrônica das duas igrejas verificamos que o tempo dedicado ao nosso campo temático em comparação com o tempo monitorado foi : de 10% na TV e 1% na programação radiofônica da AD e de 14% e 9% das transmissões televisivas e radiofônicas da IURD.

14 No mês de outubro, o 25a. hora passou a ser transmitido de 0:00 à 1:00, perdendo em audiência (39.000 aparelhos), mas mesmo assim ele se manteve à frente das programações sabatinas da AD: Renascer (11.000 aparelhos) e Mov. pentecostal ( 22.000 aparelhos). Fonte Pesquisa do IBOPE para o período de 07/10/96 a 03/11/96.

15 A partir de janeiro de 1997 este programa e o "Espaço Evangélico" deixaram de ser transmitidos. Já o programa Reunião dos milagres sofreu alteração no título, passando a ser denominado "Santo Culto em seu lar".

16 Em trabalho anterior (Machado, 1996) já haviamos constatado cultos desta agremiação em salões de beleza localizados na Zona Sul do Rio de Janeiro. Esta flexibilização não se dá, contudo, sem resistências e objeções por parte de alguns pastores da AD . O pastor-apresentador do programa "Celebrando Deus com o Planeta Terra" (27/11/96), que vai ao ar na rádio Boas Novas criticou a mudança dos trajes dos "crentes" afirmando que "antigamente os crentes se destacavam do mundo, agora o diabo diz que isso é cafona".

17 O programa vai ao ar aos sábados com transmissão simultânea nas rádios Record e Copacabana no horário das 12:00 às 14:00. Os dados do IBOPE apontam maior audiência com relação aos outros horários da rádio: 0.22% de audiência sobre 2.72% dos ouvintes de AM.

18 Na matéria "Um salto alto no poder" publicada pela Folha Universal (n. 238, 27/10-02/11/96) , percebe-se a preocupação da IURD com a implementação da lei que estabelece uma cota de 20 % para a participação feminina nas disputas eleitorais e o esforço desta agremiação em eleger mulheres comprometidas com seus valores e interesses. A vereadora mais votada de Belo Horizonte foi Maria Helena Soares Alves, obreira desta Igreja. Buscar en esta seccion :