VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas en Latinoamérica

Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en el Mercosur

27 al 29 de Noviembre de 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
https://www.equiponaya.com.ar/
info@equiponaya.com.ar
VII JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA

27 a 29 de novembro
Buenos Aires - Argentina

Grupo de Trabalho
"Religião, Gênero e Família"

Pluralismo Religioso Intrafamiliar no Contexto de Pobres Urbanos

Márcia Thereza Couto

Situando a Problemática

A complexa - mas já reconhecida - dinâmica estabelecida entre família e religião no contexto da sociedade brasileira vem sendo traduzida por gerações de cientistas sociais (Freyre, 1946; Willems, 1954; Medina, 1974; Aubrée, 1985; Ribeiro e Lucan, 1995 e 1996). Estes situam com precisão o, ao mesmo tempo forte e delicado, vínculo entre estas duas instâncias: se, enquanto locus fundante da socialização, a família é uma das grandes responsáveis pela manutenção e reprodução da religião; esta, por outro lado, enquanto agente regulador e normatizador da sexualidade e da reprodução, é um dos principais sustentáculos da família. Isto sem falar, é claro, no aspecto regulador moral e ético do comportamento individual e coletivo que a religião proporciona.

Dentre o conjunto de proposições teóricas dos últimos 30 anos para a complexa relação estabelecida entre tais instituições merece destaque o paradigma da secularização.

Machado (1994) e Espinheira (1995) mostram como este paradigma - assentado em grande parte no pensamento weberiano - interpreta a relação atual entre família e religião enquanto voltada para tendência à privatização e à subjetivação da experiência religiosa, destacando que a religião, apesar de continuar a ser relevante em termos de motivos e auto-interpretações das pessoas, torna-se assunto de livre decisão e escolha individual. Ainda segundo este paradigma, haveria o fim de uma hegemonia religiosa e a instalação de um pluralismo religioso, no qual as diversas denominações competiriam numa espécie de mercado (Berger, 1981; 1985).

No que diz respeito ao Brasil, sobressai a percepção que a tendência ao pluralismo religioso é bastante recente. Segundo Mariz e Machado (1994), até a década de 60 a sociedade brasileira teria-se caracterizado por uma hegemonia católica, no sentido de que as religiões afro- brasileiras (por, em parte, seus adeptos adotarem também uma identidade católica) e os protestantes (devido ao reduzido número) não impunham significativas ameaças, o que possibilitava à Igreja Católica evitar o diálogo com estes e outros sistemas religiosos. É certo, porém, que esta hegemonia se estabeleceu mais em termos institucionais e a prática religiosa cotidiana brasileira - especialmente entre as camadas populares - está, de fato, voltada para o pluralismo e para a abertura à diferentes tradições.

O já estreito vínculo estabelecido entre tais instituições pode ser ainda mais problematizado se tomarmos o atual contexto de inúmeras famílias em diferentes estratos sociais, onde o universo das relações internas vividas caracteriza-se na convivência de indivíduos que partilham crenças de diferentes sistemas religiosos1. Tal pluralidade religiosa no âmbito familiar foi pontualmente assinalada por alguns autores (Ribeiro, 1982; Monteiro, 1979, Aubrée, 1985; Mariz, 1994; Machado, 1996)2. Contudo, ainda é perceptível a ausência de análises detalhadas sobre a questão. Em sua maioria, os estudos tendem a enfatizar a ampla variedade de opções para a experiência mística e, consequentemente, o livre trânsito dos indivíduos entre as mesmas. Portanto, ao nível das práticas religiosas do dia-a-dia no âmbito do privado, emerge a necessidade de compreender como os indivíduos escolhem as crenças e práticas que melhor se ajustam às suas necessidades, problematizando as implicações para a dinâmica familiar. Uma abordagem neste sentido oferece não apenas a possibilidade do entendimento do pluralismo religioso na sociedade contemporânea, mas do significado da família enquanto força de referência simbólica para os indivíduos e, mais especificamente, se insere numa discussão a pouco iniciada no Brasil sobre as relações entre as instâncias família e religião intermediadas pelo comportamento de gênero3 e geração4.

Problematizando trânsito e pluralismo religioso intrafamiliar no contexto de pobres urbanos

A caracterização do universo das práticas religiosas em nossa sociedade como sincrética e, em si mesma, propícia à mistura, parece ligar-se à análise da própria noção de identidade nacional, que foi construída em termos de um sincretismo étnico-racial-religioso (Motta, 1992 e Mariz e Machado, 1994). Assim, não é de estranhar que diferentes e mesmo temporalmente distantes interpretações da identidade nacional brasileira, tal como a de Gilberto Freyre (1946) e a de Roberto Da Matta(1989), tenham ressaltado essa base tríplice e de caráter conciliatório.

Seguindo as tradições de interpretação do universo religioso brasileiro enquanto sincrético, voltado à mistura, e com tendência ao trânsito quase que ininterrupto dos sujeitos na busca da cura de aflições de diferentes ordens, percebe-se - de antemão - a ênfase analítica posta nos sujeitos, sobre os quais busca-se compreender valores, visão de mundo e estilo de vida. Em outras palavras, a abertura à compreensão da complexidade cultural brasileira em termos das práticas religiosas tem encaminhado diferentes autores à privilegiar o sujeito na sociedade circundante.

Como o entendimento do pluralismo e trânsito religioso em nossa sociedade tem sido usualmente tratado em torno do eixo sujeito/sociedade abrangente, torna-se tentador inserir como variável interveniente o grupo familiar, afim de perceber a interferência dos conteúdos explícitos nas relações familiares na configuração dos temas em questão, os quais têm sido naturalizados como elementos singulares e autônomos para o conjunto da sociedade brasileira, especialmente entre as camadas populares. Assim, acredito que a inserção da família como variável interveniente no conjunto da problemática levanta suspeitas e provoca um (possível) confronto de duas importantes interpretações sobre o universo social dos pobres urbanos.

De um lado, encontramos a referência à tendência, por parte sobretudo das camadas populares, ao pluralismo e trânsito entre religiões. Neste sentido, diferentes autores sintonizados com o paradigma da secularização sugerem que parece não haver, tanto quanto antigamente, a adoção de uma religião imposta pela tradição ou família, que, além de regular as atitudes e produzir valores, confira uma identidade ao indivíduo (Ribeiro, 1982, Aubrée, 1985; Oliveira, 1976, Monteiro, 1979). A referência a individualidade como característica importante na modernidade é, na realidade brasileira, ampliada quando se trata de enfatizar não só o pluralismo em termos de crenças e práticas religiosas, mas a "nossa" característica, enquanto povo, em assumir uma identidade múltipla.

Por outro lado, entretanto, temos a constatação por parte de alguns de que entre os pobres urbanos há a precedência do todo (família) sobre as partes (indivíduos). Assim, a partir da referência a um código moral e hierárquico, seus membros fundamentam suas relações em família - expressas nas relações homem/mulher e nas relações entre pais e filhos -, e organizam, interpretam e dão sentido a seu lugar no mundo (Sarti, 1996a; 1996b; Zaluar, 1994; Woortmann, 1987).

Em termos investigativos, portanto, a problemática proposta (pluralismo religioso intrafamiliar entre pobres urbanos) levanta uma questão estrutural para a família moderna: o conflito entre, de um lado, a afirmação da individualidade5 e, de outro, o respeito às obrigações e aos padrões próprios dos vínculos familiares. É a ambigüidade inerente à problemática, o questionamento da eficácia da análise das relações familiares entre os pobres urbanos a partir deste recorte e o entrelaçamento ou confronto destas abordagens aparentemente inconciliáveis que abordaremos a seguir. A discussão posterior vincula-se à possibilidade, mais ou menos eficiente, de construção de arcabouços conceituais para o entendimento do universo das relações internas vividas nas famílias das camadas populares no contexto do pluralismo religioso intrafamiliar.

As famílias de pobres urbanos na encruzilhada das abordagens econômico-produtivista e subjetivista

Qualquer abordagem da(s) família(s) brasileira(s) não é algo fácil de empreender; começando pelo questionamento da eficácia dos modelos construídos e de suas aplicações à pluralidade empírica reinante. Dos estudos sobre família produzidos durante décadas pelas ciências sociais emerge um paradoxo: a volumosa e excelente produção empírica e a ausência de esquemas teóricos interpretativos que dêem conta dos dados levantados, das mudanças observadas e das novas faces que esta apresenta6. A falta de um entendimento da instituição familiar como processo e não como uma estrutura fixa no tempo tem, segundo diversos autores, provocado distorções nas interpretações do universo familiar (Corrêa, 1993; Goldani, 1993; Szymanski, 1995; Bilac, 1995 e Scott, 1997). Assim, "dado que as famílias não só respondem às transformações sociais, econômicas e demográficas, mas também as geram, tem sido difícil para os estudiosos da família brasileira interpretarem as mudanças nas estruturas familiares no tempo. A visão dicotômica - entre o tradicional e o moderno - ... já não satisfaz. Não só por suas limitações enquanto modelos interpretativos associados à uma concepção de família e de tipologias de família, mas, também, porque obscurece a realidade da maioria das famílias brasileiras que pertencem às chamadas camadas populares" (Szymanski, 1995, p.73).

Tal falta está diretamente associada com certos modelos estereotipados. Alguns autores, tais como Corrêa (1993) e Szymanski (1995), são claros ao enfatizar que é em torno de estereótipos como "família patriarcal" e "família nuclear burguesa" que a percepção negativa de configurações externas aos modelos coaduna-se. Nestes casos, explicita Szymanski (1995), é o foco na estrutura e não na qualidade das relações que promove colocações como "desestruturada" ou "incompleta" para as famílias que "fogem" aos modelos normativos. Desta forma, podemos então pensar que da mesma maneira como a homogeneização se processou, inicialmente, em torno do modelo de "família patriarcal", também as generalizações a respeito de sua descendente direta - a "família nuclear burguesa"/ou "conjugal moderna" tem homogeneizado a maioria dos estudos sobre família que consideram as diferenças como desestruturação ou incompletude do modelo (Goldani, 1993)7.

Para além desta questão, emerge uma outra que pode ser traduzida em termos da "encruzilhada teórica" em que se encontram os estudos sobre família no Brasil. Um olhar sobre os paradigmas centrais de tais estudos possibilita o reconhecimento de duas tradições teóricas: a tradição econômico-produtivista de estudos sobre famílias de pobres urbanos e a tradição subjetivista de estudos sobre famílias de camadas médias.

A tradição econômico-produtivista tem, segundo Scott (1997) e Fonseca (1988), utilizado as categorias analíticas trabalho, poder e dominação para a interpretação das relações intra e extra familiar entre as camadas populares. Em seu interior instalam-se diferentes abordagens totalizantes, onde a ênfase na solidariedade do grupo familiar é forçada e reforçada por suas condições econômicas no processo de enfrentamento com a sociedade inclusiva (Carvalho, 1995). Senão vejamos.

A percepção de que entre os pobres urbanos o grupo familiar tende a maximizar as chances de garantir a sobrevivência perpassa grande parte da literatura produzida (Couto, 1995). Segundo Zaluar (1994), o esforço em afastar o espectro da fome para as famílias pobres assenta-se, em larga medida, nos números arranjos que são buscados no sentido do esforço de gerar renda a fim de manter a sobrevivência da família. Além do mais, diz ela, o que parece haver é uma alternância entre cônjuges e filhos na responsabilidade de contribuir para a renda familiar, o que demonstra que a renda familiar dos pobres conta com a contribuição substancial de todos os membros, e não apenas do provedor principal. Em termos resumidos "o resultado final desse quadro de ganhos insuficientes e falta de assistência estatal é criar, em termos de padrões culturais de relacionamento, uma solidariedade ao nível do grupo doméstico ou mesmo da família extensa que talvez seja desconhecida em outras classes, tanto no que se refere à intensidade, quanto às formas específicas de manifestação. O adjetivo individualista pouco caberia nesse padrão, quando sabemos que as necessidades de sobrevivência, inclusive a obtenção de moradia, obriga a cooperação não só de todos os membros da família conjugal, mas também de outros parentes e agregados a ela incorporados" (Zaluar, 1994, p.99).

Uma outra abordagem totalizante e que ressalta os "valores tradicionais" como marca dos pobres urbanos tem sido articulada por alguns autores como Duarte (1986); Woortmann (1987) e mais claramente defendida por Sarti. (1996a; 1996b).

Sua tese central é a de que "a análise das relações na família, sobretudo a partir da mudança nos papeis familiares... torna evidente uma questão estrutural na família moderna: o conflito entre, de um lado, a afirmação da individualidade... e, de outro, o respeito às obrigações próprias dos vínculos familiares" (Sarti, 1996a, p.01). Entretanto, e trazendo sua perspectiva para as famílias das camadas populares, ela diz que: "Na família pobre, este conflito - ainda que existente... - aparece pouco acentuado pela precedência do todo - a família - sobre as partes - os indivíduos -, fazendo com que as relações familiares entre os pobres sigam um padrão tradicional de autoridade hierárquico. (Idem, p.01). Ao ressaltar os "valores tradicionais" como marca dos pobres urbanos e de suas famílias, considera que suas relações estão fundadas num código de lealdades e obrigações mútuas e recíprocas. Analisada a partir das categorias trabalho, moralidade e hierarquia, os autores desta abordagem mesmo defendendo a recusa a um modelo de interpretação baseado no material e no econômico e a adoção de uma abordagem simbólica, tratam as famílias das camadas populares - em última instância - a partir de suas condições materiais.

Dado o que delineia-se nas linhas precedentes, o interesse em abordar a temática do pluralismo religioso intrafamiliar8 pode ser expresso a partir de alguns questionamentos: o pluralismo religioso intrafamiliar entre pobres urbanos vem questionar a idéia defendida por vários autores da abordagem totalizante e do paradigma econômico- produtivista de que a família nessas camadas não dá espaço às expressões de tipo individualistas? E, em decorrência disto, será que este vem romper com o padrão tradicional para os pobres urbanos e, como conseqüência, provocar tensões/conflitos não apenas em relação ao caráter pontual da escolha religiosa, mas de uma visão individualista e de uma outra não-individualista? Ou será que a problemática em questão não chega a constituir uma quebra do padrão tradicional e hierárquico das famílias pobres urbanas, já que representa mais uma divisão (de gênero e geração) no trato com as questões de ordem religiosa? Somadas a estas questões impõem-se outras: o pluralismo religioso intrafamiliar viria a corresponder, de fato, ao estabelecimento de tensões familiares? Ou estas seriam anteriores e, em parte, causadoras das adesões? Quais os tipos mais comuns de tensões decorrentes? E, se de fato ocorrem, quais as estratégias utilizadas pelos diferentes sujeitos na superação ou acomodação dos possíveis conflitos?

O conjunto das questões postas carece de análise detalhada, onde fatores como complexidade e ambigüidade em termos das diferentes crenças e práticas religiosas no contexto familiar sejam considerados. Embora saiba que tanto as questões como suas respostas torna-se-ão claras a partir dos dados da pesquisa de campo, proponho a tentativa de construir marcos para o entendimento do fenômeno a partir de parâmetros menos rígidos e, especialmente, que possam articular as teorias sobre a dinâmica das relações internas à família com as que dizem respeito ao significado da conversão para os indivíduos. Ou, como sugere Soares (1994), aposto num movimento de antecipação-tentativa em sentido ao todo que designa, segundo Gadamer (1977), a pré-compreensão ou aposta hermenêutica.

O indivíduo e os sistemas religiosos: conversão e (re)definição de identidade

Tomando como referência a instância individual/subjetiva e o trânsito entre sistemas religiosos, Oliveira (1976) defendeu que o pluralismo religioso presente em nossa sociedade acarreta "misturas religiosas". Ao contrário do sincretismo, a "mistura religiosa" se refere à prática de atos ou a adesão à crenças, por parte dos indivíduos, que não afeta diretamente nenhum dos sistemas religiosos em questão9. Esta, segundo sua tipologia, pode ser sincrônica ou diacrônica. O tipo mais freqüente é a mistura sincrônica. Nesta, os indivíduos, não tendo uma identificação nítida ou forte com um único sistema religioso, são levados a procurar, e de fato encontram, em diversas agências religiosas a proteção sobrenatural. Já a "mistura religiosa" diacrônica vem caracterizar-se pela mudança de identidade religiosa durante o transcorrer da vida dos sujeitos. Este último tipo trânsito religioso representa o ponto focal da presente análise. A fim de que se possa vislumbrar sua complexidade, é necessário considerar os fatores relacionados à adesão dos sujeitos aos sistemas religiosos.

A adesão a qualquer movimento religioso implica em dois processos simultâneos: o processo de identificação ao grupo religioso - isto é, a construção de uma nova identidade - e um processo de diferenciação em relação ao grupo social ambiente (familiar) que a participação religiosa deve/pode concretizar, produzindo assim uma alteridade. Autores como Boyer (1996), Mariz (1994), Machado (1996), Fry e Howe (1975) demonstram como os sujeitos experimentam no processo de conversão a grande emoção devido, via geral, à solução de problemas concretos, relacionados, entre outros, a doenças, problemas financeiros, afetivos, conjugais e familiares10. Estes fatores - recorrentes entre as camadas populares - vêm atestar a não-linearidade ou causalidade entre adesão do sujeito/tensão familiar, já que a própria busca destes diferentes sistemas religiosos pode refletir "tensões" anteriormente instaladas no universo familiar. Com isto, ao argumentar sobre a força das afiliações religiosas frente à dinâmica familiar, não estou excluindo a priori a relação inversa: a possibilidade de uma convivência familiar permeada de conflitos, insatisfações, fracassos e ambigüidades entre os gêneros e as gerações provocar a busca por conforto e satisfação na religião.

Contudo, acredito que o sujeito, ao rejeitar um sistema religioso anterior (seja este forte ou frágil em termos de exigência de comprometimento), possa passar a modificar parte das relações cotidianas vividas em família; dado que estes experimentam um processo de (re)definição de identidade (sobretudo religiosa), o que supõe, muitas vezes, mudanças de comportamento, hábitos, valores e visão de mundo. No âmbito desta perspectiva, portanto, especial atenção deve ser conferida ao problema do significado geral que a religião assume para os sujeitos que a adotam, e, consequentemente, em seu sentido.

Uma importante referência desta análise é a possibilidade de conectar a experiência religiosa vivenciada ao estilo de vida particular de quem a adota. Desta maneira, é possível observar que os símbolos, além de serem específicos da experiência religiosa nas suas diversas modalidades mítico-rituais, podem também começar a fazer parte da cultura dos grupos ou sujeitos oprimidos, os quais podem utilizar figuras e estruturas religiosas de diferente proveniência voltadas para o resgate da condição de marginalização a que têm sido reduzidos (Velho, 1996). Mas não pára por aí. Esta percepção liga-se diretamente à compreensão da afiliação religiosa como um processo que implica não apenas uma aderência a um sistema de crenças, mas também num comprometimento com o grupo que sustenta estas crenças. Assim, ainda que a conversão possa ser entendida e publicamente expressa em termos do relacionamento homem/divindade, também envolve certas modificações no intercâmbio social.

Pluralismo religioso intrafamiliar: marcos para uma abordagem

Por todas essas abordagens tratadas, levanto a questão: com tantas dúvidas e tantos aspectos a serem examinados para um apropriado exame da problemática, é possível chegar a um modelo interpretativo coerente?

A aposta em uma resposta negativa, acredito, deve ser descartada. Um primeiro passo, portanto, remete à tentativa de construção de uma abordagem aproximativa que, não perdendo de vista a especificidade dos vários elementos envolvidos, esteja orientada menos à busca da reificação das oposições e, ao contrário, possa oferecer elementos de junção das abordagens citadas. Um ponto interessante, portanto, é o que liga a crise na sociedade e a crise nos modelos globalizantes de explicação para ambas instituições: família e religião.

É certo que desvencilhar-se das amarras analíticas arraigadas no pensamento social não é tarefa fácil, inclusive para pesquisadores experientes. Neste sentido, o exercício de inversão teórica para os estudos de famílias parece bastante salutar. Em outras palavras, não há necessidade de descartar as categorias analíticas até então utilizadas na compreensão da dinâmica familiar nas camadas populares, pois isto seria o mesmo que jogar fora o neném com a água do banho. O que parece oportuno empreender é a relativização (tão cara a antropologia) de tais abordagens. Isto no sentido de perceber que a análise do fenômeno do pluralismo religioso intrafamiliar possa ser reformulado, a partir da tentativa de trabalhar com outras categorias analíticas - que não as historicamente privilegiadas para esses grupos (trabalho, poder, dominação).

Assim, articulando melhor esse exercício em termos do fenômeno em questão, podemos ver que a análise que tem servido à compreensão do fenômeno para as camadas médias - que focaliza o individualismo ou autonomia individual - (Soares, 1994), pode também servir de lastro para o entendimento do fenômeno nas camadas populares. Em outros termos, devemos trabalhar - também - com a perspectiva de que as transformações na família de pobres urbanos estão se dando pela alta cotação do individualismo na conteporaneidade. De forma simplificada, a família não é mais vista como organizada por normas dadas, mas, sim, fruto de contínuas negociações e acordos entre seus membros, e, neste sentido, sua duração no tempo depende da duração dos acordos. Neste sentido, devemos descartar uma análise rígida do padrão de autoridade familiar para tais camadas em favor de outra que contemple - isto sim - a solidariedade inerente ao grupo.

Nos termos de Gadamer (1977), a proposta inicial, ou "aposta hermenêutica", portanto, seria a de considerar que a investigação poderia contemplar a compreensão do quanto o pluralismo religioso atingiu o universo familiar entre os pobres urbanos e também como e por quê. Em outras palavras, trata-se de considerar como centrais os questionamentos atuais sobre a "inconstância ideológica", fenômeno que, segundo Soares (1994) é "comum, porém significativamente pouco explorado do ponto de vista da teoria social" (p.30).

A "inconstância ideológica" que, nas palavras de Soares, diz respeito "à heterogeneidade de concepções ou valores aos quais aderem os mesmos atores sociais, em esferas diferentes de sua experiência cotidiana" (op. cit, p.30-1), pode ser analisada com referência às descontinuidades ideológicas no âmbito das esferas doméstica e religiosa. Nesta perspectiva, então, têm-se ressaltadas a ambigüidade, a contradição, a incoerência e a inconsistência. Significa, portanto, compreender que os sujeitos podem formular, e de fato formulam, certas idéias, certos discursos, normas e valores, muitas vezes pouco sistemáticos e coerentes para as suas esferas de atuação, de acordo com sua trajetória individual.

Em termos concretos, argumento que a referência à solidariedade presente nas famílias desfavorecidas não interfere na autonomia em termos de opção religiosa. Ao contrário, a partir da adoção de um sistema religioso forte em termos de comprometimento, pode-se observar uma maior ênfase na solidariedade e em sua concretização no grupo familiar. Isto remete, finalmente, ao reconhecimento da importância da configuração de uma "alquimia das categorias sociais". Em termos concretos, a necessidade de compreender que na construção das subjetividades a estrutura de classes condiciona práticas, mas não pode determiná-las. Noutras palavras, é necessário perceber que rupturas com a tradição e com a socialização recebida da família podem não ser facilmente recebidas mas, nem por isso, deixam de ocorrer e, muitas vezes, (re)definem valores e práticas cotidianas, isto sem alterar os laços de compromisso, reciprocidade e solidariedade.

BIBLIOGRAFIA

AUBRÉE, Marion. Voyages entre corps et esprits: étude comparative entre deux courants religieuses dans le Nordest brésilien. Thése de Doctorat, 3 éme Cicle - Université Paris VII Jussieu, 1985.

BERGER, Peter. Um rumor de anjos. São Paulo: Paulinas, 1981.

_____. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985.

BILAC, Elisabete D. Família: algumas inquietações. In: CARVALHO, M.C. (Org.) A família contemporânea em debate.

São Paulo: Educ, 1995.

BOCµGEL, Imelda. "Eu sempre fui muito protegida" - Condição feminina, cultura e religião. In: BIDEGAIN, Ana Maria (Org.) Mulheres: autonomia e controle religioso na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1996.

BOYER, Véronique. Trajetórias sociais e pertencimento religioso: três exemplos pentecostais. [Trabalho apresentado na XX Reunião Brasileira de Antropologia - Salvador, abril, 1996].

CARVALHO, M. C. A priorização da família na agenda da política social. In: A família contemporânea em debate. São Paulo: Educ, 1995.

CASTRO, Mary Garcia. Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos políticos. Estudos feministas. V. 0, N. 0, 1992

CORRÒA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira.

In: ARANTES, A. /et al./ Colcha de retalhos - estudos sobre a família no Brasil. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1993.

COUTO, Márcia Thereza. Estrutura familiar e opção religiosa: um estudo de famílias religiosamente mistas. Trabalho de conclusão de curso em ciências sociais, UFPE, Recife, 1992.

_____. Pobres urbanos e família à brasileira [Trabalho apresentado no Seminário "Pesquisando Família e Gênero - História e Tendências/ Mestrado em Antropologia da UFPE, Recife, 1995].

DaMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

DUARTE, Luiz F. Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

ESPINHEIRA, Gey. A ascensão do individualismo e o declínio das religiões ou o mal-estar na racionalidade. Cadernos do CEAS, n. 60, nov.-dez., 1995.

FONSECA, Cláudia. Família e classe: questionando alguns conceitos sobre grupos de baixa renda, Porto Alegre, 1988. mimeo.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.

FRY, Peter H. & Howe, Gary N. Duas propostas à aflição: umbanda e pentecostalismo. Debate e crítica, São Paulo: HUCIT, Vol.6, 1975. pp. 74-94.

GADAMER, H-G. The universality of the hermeneutical problem.

In: LINGE, D. Philosophical hermeneutics. University of California Press, 1977.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.

GOLDANI, Ana Maria. As famílias no Brasil contemporâneo e o mito da desestruturação. Cadernos Pagu, n. 1, 1993.

MACHADO, Maria. D. C. As relações intrafamiliares e os padrões de comportamento sexual dos pentecostais e carismáticos católicos do Rio de Janeiro. Revista da Universidade Rural - Série Ciências Humanas, v. 16, n. 1/2, p. 69-84, jan.-dez., 1994.

_____. Carismáticos e pentecostais - adesão religiosa na esfera familiar. São Paulo: Autores Associados/ANPOCS, 1996.

MARIZ, Cecília L. Coping with poverty - pentecostals and christian base communities in Brazil. Philadelphia: Temple University Press, 1994.

MARIZ, C. e MACHADO, M. D. Sincretismo e trânsito religioso: comparando carismáticos e pentecostais. Comunicações do ISER, n. 45, ano 13, 1994.

MARIZ, C.; MAFRA, C.; MACHADO, M. D. Família e reprodução entre os evangélicos. In: OLIVEIRA, R.; CARNEIRO, F.(Orgs.) Corpo: meu bem, meu mal. Rio de Janeiro: ISER, 1995.

MEDINA, Carlos. Bibliografia crítica sobre a família no Brasil. Família e mudança, Rio de janeiro: Vozes/Ceris, 1974.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. Igrejas, seitas e agências: aspectos de um ecumenismo popular. IN: VALLE, E. & QUEIRàS, J.(Orgs). A cultura do povo. São Paulo, Cortez & Moraes: EDUC,1979, p. 81-118.

MOTTA, Roberto. Etnia, sincretismo, desenvolvimento e pensamento social brasileiro [Trabalho apresentado na CLASCO, Brasília, dez. 1992].

NOVAES, Regina. Religião e política: sincretismos entre alunos de ciências sociais. Comunicações do ISER. N.45, ano 13, 1994.

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A coexistência das religiões no Brasil. In: Revista de Cultura Vozes. Ano 71, Vol. LXXI, número 7, 1976. pp. 555-562.

RIBEIRO, René. Antropologia da religião e outros estudos. Editora Massangana - FUNDAJ, Recife, 1982.

RIBEIRO, Lúcia e LUCAN, Solange. Reprodução e comunidades de base: dúvidas e certezas. In: OLIVEIRA, R.; CARNEIRO, F.(Orgs.) Corpo: meu bem, meu mal. Rio de Janeiro: ISER, 1995.

_____. Vislumbrando contradições - reprodução e Comunidades Eclesiais de Base. In: PARKER, R. & BARBOSA, R.

Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

SARTI, Cynthia. A Família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas, SP: Autores Associados, 1996a.

_____. A família como referência moral no mundo dos pobres: onde fica a lei? [Trabalho apresentado na XX Reunião Brasileira de Antropologia - Salvador, abril, 1996b].

SCOTT, Russel Parry. A etnografia da família de camadas médias e de pobres urbanos: trabalho, poder e a inversão do público e do privado. Revista pernambucana de antropologia, n. 2, ano 1, 1997.

SOARES, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina - ensaios de antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: ISER/Relume Dumará, 1994.

SZYMANSKI, Heloisa. Teorias e "teorias" de famílias. In: CARVALHO, M. C. (Org.) A família contemporânea em debate. São Paulo: Educ, 1995

VELHO, Otávio. Besta fera - a recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

WOORTMANN, Klass. A família das Mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/CNPq, 1987.

WILLEMS, E. "A estrutura da família brasileira". In: Sociologia. XVI - 4, 1954.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_______________________________

NOTAS

A pesquisa que decorre das questões postas neste trabalho encontra-se em fase inicial e conta com o apoio do "Programa de Dotações para Pesquisa da ANPOCS, com recursos da Fundação FORD".

Dedico este trabalho à memória do meu querido avô e a saudade que ele me faz sentir.

Pesquisadora do Núcleo de Saúde Pública e aluna do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.

1 Em pesquisa anterior os dados revelaram que 21.2% do total de famílias pesquisadas (340) em uma comunidade pobre do Recife eram "religiosamente mistas". Uma maior expressividade foi encontrada nos arranjos familiares compostos por católicos e pentecostais (33.3%), pentecostais e sem-religião (20.8%) e católicos e sem religião (16.6%). Além disto, a divergência religiosa concentrava-se particularmente entre as famílias estendidas (58,3%), entre os cônjuges mais que entre as gerações (Couto, 1992).

2 Segundo Aubrée, "na sociedade brasileira, as crenças nem sempre são homogêneas no interior de uma mesma família, nem mesmo entre os membros de um casal, nem entre os filhos, sobretudo quando estes são adultos e permanecem - como geralmente ocorre no Nordeste, até o casamento ou concubinato - na casa dos pais" (1985: 79).

3 Ver, neste sentido, os trabalhos de Machado (1996), Ribeiro e Lucan (1995, 1997), Bocángel (1996) e Mariz e Machado (1994).

4 Ver o trabalho de Novaes (1994).

5 Segundo Giddens (1993), a tradição vem sendo abandonada como em nenhuma outra época da história.

6 Uma sistematizando das teorias sobre família (que não é o objetivo no momento) implica necessariamente numa análise do papel das teorias no desenvolvimento de modelos e de como estes têm (ou não) aprisionado a realidade empírica.

7 Em termos de análises críticas sobre a homogeneização de padrões familiares em torno da "família patriarcal" e, posteriormente, "nuclear burguesa" ver Corrêa (1993) e Szymanski (1995), respectivamente.

8 A pesquisa empírica está sendo realizada em um bairro da periferia Recife, o Ibura. Na fase atual está sendo realizado um levantamento quantitativo relativo à estrutura e dinâmica das famílias com uma mostra de 480 domicílios.

9 Diferenciando "mistura religiosa" de sincretismo religioso, este autor sugere que o sincretismo vem ocorrer quando dois ou mais sistemas religiosos se combinam, de modo a dar origem a um sistema religioso inédito.

10 Isto não significa, entretanto, desconsiderar que a solução de problemas concretos não é o bastante para justificar a adesão ou permanência num sistema religioso.

Buscar en esta seccion :