V Congreso de Antropologia Social

La Plata - Argentina

Julio-Agosto 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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JOVENS EM SITUAÇÃO DE RISCO EM FLORIANÓPOLIS:

UM ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE E DA INTELIGÊNCIA NO USO DA REDE INTERNET ATRAVÉS DO SISTEMA HIPERNET

 

Magda do Canto Zurba, Luiz Fernando Bier Melgarejo, Léa da Cruz Fagundes

            Nesta pesquisa,  de caráter participante, compreenderemos um universo de jovens que, na maioria das vezes, não contam com um seio familiar estruturado ou com freqüência escolar regular, nem com qualquer planejamento de nutrição, de saúde ou habitação. São jovens que perambulam pelas ruas dos centros urbanos do Brasil, mais precisamente em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, onde muitas vezes trabalham, comem e dormem, sendo identificadas em algumas  teorias como "crianças em situação de risco" (Campos, Raffaelli, Ude & Greco, 1994), e popularmente designadas como "crianças de rua".

            As condições de vida da população de baixo nível econômico aparecem relacionadas a forte marginalização do conhecimento, que pode ser traduzida pela alta taxa de evasão escolar em Santa Catarina,  que durante o  ano de 1994 era de 14,80%, conforme dados oficiais da Secretaria de Desenvolvimento do Estado, conforme a "Síntese Estatística de Santa Catarina" (1996). Além disso, segundo as mesmas fontes, apesar de a taxa de escolaridade alcançar 96,30% para crianças até 14 anos, estes índices caem radicalmente na população de jovens catarinenses entre 15 e 19 anos, cuja taxa de escolaridade durante o ano de 1994 era de apenas 41,04% do total de jovens. Ou seja, mais da metade dos jovens entre 15 e 19 anos, 58,96%,  encontravam-se fora do sistema regular de ensino em Santa Catarina naquele ano.

            Diante da constatação de que o sistema escolar não tem conseguido atender boa parte da demanda da população brasileira, nos restariam uma entre duas alternativas:

            a)  Estudaríamos a escola, sua funções e limitações, traçando um histórico da estrutura educacional e do sistema de ensino brasileiro, procurando compreender os motivos pelos quais a escola tem se mostrado ineficaz no atendimento a jovens em situação de risco.

            b) Procuraríamos compreender como, independentemente da estrutura de ensino formal que permanece à margem da vida destes sujeitos, os jovens em situação de risco têm  desenvolvido sua cognição e identidade.

            Excluímos a primeira possibilidade, considerando que uma avaliação do sistema escolar não é de nossa competência, visto que este é um trabalho que já vem sendo exaustivamente realizado por inúmeros estudiosos, gerando polêmicas diversas, e cujas questões levantadas sugerem, inclusive, o fim do caráter institucional  sobre a atividade de aprendizagem (Illich, 1978). Portanto, sem entrar no mérito da questão do processo institucional de escolarização, adotamos a segunda alternativa como a maior  preocupação presente neste trabalho, ou seja:

 - Como se desenvolve a cognição e identidade de jovens que não compartilham do sistema de ensino formal, enquanto vivem em situação de risco?

A Criança e o Jovem em Situação de Risco

            O termo "jovens em situação de risco", já foi utilizado por outros autores (Campos R.; Raffaelli, M.; Ude, W. & Greco, M.,  1994), e nasceu na substituição do termo "crianças de rua", cuja utilização definia condições pouco precisas na situação de vida dos sujeitos aos quais o termo se referia.

Tal  termo implica em indivíduos menores de 18 anos que: sofrem riscos contra sua identidade física; contam com vínculos familiares frágeis ou inexistentes; não participam regularmente de atividades de ensino formal, como escolas ou centros educacionais, embora possam eventualmente contar com registro de matrícula em algum estabelecimento de ensino cuja freqüência seja irregular; encontram-se em baixo nível econômico; atuam como provedores do próprio sustento ou de seus familiares.

            A "situação de risco", portanto, define riscos econômicos, sociais, culturais e afetivos.

Caracterização dos Sujeitos da Pesquisa

            Foram sujeitos desta pesquisa, 5 jovens entre 15 e 17 anos, em situação de risco da Capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis. Estes indivíduos não pertencem a nenhum sistema de ensino de escola regular, nem possuem qualquer vinculação com organizações governamentais ou não-governamentais. Eis a seguir a caracterização inicial de cada participante:

REN - Sexo masculino, negro, 16 anos Costumava dormir no Albergue público do Estado, embora tenha passado a maior parte de sua infância dormindo nas ruas de Florianópolis. Conta com irmãos menores que se encontravam na mesma situação que REN se encontrara no passado, ou seja, dormindo nas ruas. Sua família é originária de uma pequena cidade periférica à Capital de SC, sendo que REN já não contava com vínculos familiares há alguns anos antes do início desta pesquisa. Não trabalhava, e não estudava, embora houvesse freqüentado a escola regular até a 5a. série do ensino básico.

VOL - Sexo masculino, branco, loiro, 15 anos. Costumava dormir nas ruas, e  esporadicamente no Albergue público do Estado. Embora contasse com dois irmãos mais velhos que residiam na periferia de Florianópolis, não estabelecia contatos com nenhum deles. Costumava cheirar cola de sapateiro algumas vezes por semana com alguns colegas. Não estudava, nem trabalhava, e segundo VOL, sobrevivia trabalhando como jardineiro em diferentes residências, ao que chamava de "bico". Havia freqüentado a escola regular na infância, de forma que concluira a 2a. série do ensino básico.

LEO - Sexo masculino, branco, moreno, 17 anos. Proveniente do interior do Estado de SC desde a infância, costumava dormir nas ruas de Florianópolis, juntamente com um irmão mais novo. Algumas vezes dormia no Albergue público estadual. Havia estudado em escola regular, mas não lembrava até que série. No momento inicial da pesquisa, LEO não trabalhava nem estudava. Além disso, desde sua chegada a cidade, não estabelecia contatos com seus familiares, que permaneceram no interior de SC.

OSM - Sexo masculino, branco, moreno, 17 anos. Trabalhava como office-boy da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e costumava dormir no Albergue público do Estado. Havia alguns anos que chegara a Florianópolis, proveniente do interior de SC. Durante os primeiros anos após sua chegada, residia nas ruas do centro da cidade, sobrevivendo, segundo ele próprio,  de pequenos trabalhos. Sua família permanecera no interior, e OSM não possuía vínculos familiares. Antes de residir na Capital, havia concluído a 7a. série do ensino de I grau.

SAN - Sexo feminino, mulata clara, 15 anos. Proveniente de Florianópolis, relatou ter vivido em condição de miséria desde a infância. Afastou-se do seio familiar por motivos de desavença, quando engravidara aos 12 anos. Ao parir o filho, o Estado passou a exercer a tutela da criança. SAN passara a dormir algumas noites nas ruas da cidade e outras no Albergue público estadual. Possuía vínculos familiares frágeis, estabelecendo raros contatos com sua mãe.

A caracterização dos participantes, oferecida por estudos anteriores, Zurba, M.C. & Zago, N.  (1994); Zurba (1995) nos permitiu definir que a seleção dos cinco jovens que participariam deste estudo ocorreria de maneira a constituir uma amostra por conveniência, segundo os seguintes critérios:

disponibilidade e interesse dos próprios sujeitos em participarem das atividades;

capacidade de escrita e leitura, a fim de que pudessem interagir por escrito na rede Internet.

O Enfoque Psicogenético do Desenvolvimento Humano

            A epistemologia genética demonstrou, através dos minuciosos estudos de Jean Piaget, como se dá a gênese e os processos internos do desenvolvimento da inteligência humana. A premissa anterior a esta teoria psicogenética, é a existência de significativa continuidade entre as formações puramente biológicas ou adquiridas e aquelas que constituem o desenvolvimento da inteligência mesma, de forma que a inteligência humana concomitantemente se apoia e utiliza daqueles processos primitivos na sua construção.

            Assim, na compreensão do desenvolvimento e da formação do conhecimento, Piaget (1976)  encontrou um "processo central de equilibração", ou "equilibração majorante",  que descreve e explica o equilíbrio dos sistemas cognitivos.

            Conforme Piaget, o desenvolvimento da inteligência humana passa crescentes estágios ao longo da vida. Enquanto a criança pode se limitar apenas às operações concretas de classes, relações e números, no período das operações formais o sujeito adolescente ou adulto já pode submeter o real ao possível, realizando a lógica das proposições. Isto significa que o adolescente seria capaz de levantar hipóteses, pensar sob proposições, isolar variáveis de um problema, analisar tais variáveis de maneira combinatória, e ainda raciocinar em termos de proporção. Estas capacidades intelectuais do adolescente ocorrem, essencialmente, porque a lógica interproposicional não considera as proposições enquanto tais, mas constrói outras proposições determinadas a partir da veracidade ou falsidade de cada proposição inicial. Pode-se dizer que se num período anterior a criança pensava sob uma lógica operatória de elementos, então, por volta dos 11-12 anos, o adolescente começa a pensar através de uma lógica de operações de operações, caracterizando o início do pensamento formal que se estenderá por toda a vida.

            O que vai aparecer na vida adulta e que ainda não ocorre nos primórdios da adolescência, é um processo de descentração, fundamental para que o sujeito não atribua poder ilimitado ao seu próprio pensamento.

            Assim, o adolescente é capaz de pensar sobre seu próprio pensamento e construir teorias, enquanto procede a passagem do egocentrismo à cooperação. Ocorre, portanto, uma íntima correlação entre o social e o lógico, "onde o agrupamento das operações formais dirigido sobre simples 'proposições' corresponde às necessidades da comunicação e do discurso, quando ultrapassam a ação imediata" (Piaget, 1973. p.100).

            É o surgimento da cooperação que marca a possibilidade de exercício da regra racional, baseada no acordo mútuo e na reciprocidade. A cooperação implica em um sistema de normas, diferente de uma suposta troca livre que ilusoriamente se percebe como livre de normas. Ocorre, entretanto, que o sistema de normas ao qual a cooperação se presta é construído com base na coordenação de pontos de vista, através da regra de reciprocidade, enquanto a livre troca, ao contrário, fica sujeita ao egocentrismo e às coações.

            Assim, o adolescente chega à capacidade de cooperar, ou seja, operar em comum, ajustando suas ações às operações realizadas por cada um dos parceiros,  por meio de novas operações de correspondência, reciprocidade ou complementaridade. Tal processo supõe a descentração, que permite a socialização e o aparecimento  de respeito e acordo mútuo, chegando ao desenvolvimento da autonomia.

            Para compreender a organização e o funcionamento da cognição humana, Piaget desenvolveu, e empregou  primeiramente em 1926, o método clínico, que desde então prosseguiu sofrendo modificações em função das situações experimentais em que tem sido utilizado. Neste estudo utilizaremos o método clínico adaptado às atividades de comunicação em rede.

            O método inclui uma prática de indagação clínica que permite ao experimentador verificar suas hipóteses sobre o funcionamento da inteligência de um indivíduo enquanto este investiga uma situação. Tal metodologia permite uma compreensão mais consistente sobre o pensamento humano, preenchendo lacunas oferecidas pela observação pura ou pelos testes tradicionais de medidas de inteligência.

A Concepção da Personalidade pela Abordagem Gestáltica

            A abordagem gestáltica é fenomenológica e existencialista.

            Segundo esta concepção, dentro do organismo há um sistema onde cada um dos milhões de células que nós somos possui mensagens internas que são mandadas para o organismo total, e o organismo total atende então as necessidades das células e de qualquer coisa que precise ser realizada às diferentes partes do organismo. Assim, a primeira coisa considerada pela Gestalt, é que o organismo sempre trabalha como um todo. Perls (1977) salienta que foi Kurt Goldstein quem primeiro formulou tal conceito de organismo.

            A esta nova concepção utilizada por Goldstein, Perls (1977) chamou de aspecto ecológico, definindo que não se pode separar o organismo do ambiente. A partir de então,  definiu o conceito de mitwelt - "o mundo que você e o outro possuem em comum." O conceito nasceu para explicar a possibilidade de comunicação quando as pessoas encontram algum ponto de contato entre seus mundos, talvez numa pequena área de superposição. Assim, as relações interpessoais ocorrem sempre que as pessoas encontram interesses comuns, mundos comuns, onde a comunicação e a união passam repentinamente do eu e você para o nós. Mas como enfatiza Perls (1977), "'Nós' não existe, mas é composto de Eu e Você; é uma fronteira sempre móvel onde duas pessoas se encontram. E quando há encontro, então eu me transformo e você também se transforma."

            As transformações que ocorrem nos  processos de mediação  entre  o sujeito e  o mundo, nos quais incluímos as interpelações pessoais, estão ligadas à fronteira entre o organismo  e o ambiente. Tal fronteira, que regula as relações orgânicas, consiste no que Perls chamou de "fronteira de contato do self".  O   self existe na medida em que estabelece contato com o universo, ou seja, o self existe sob uma condição existencial que o define. Isto significa que o self não  é uma substância com fronteiras, mas exatamente as fronteiras, os próprios pontos de contato que constituem o self. Dessa forma, somente quando o ser se encontra com algo "estranho" e define um contato entre o velho e o novo, começa a existir e funcionar o self, determinando-se a fronteira entre o campo pessoal e o campo impessoal.

Questões Contextuais

            Perguntamos: 

            - Como se desenvolve a cognição e a identidade de jovens em situação de risco?

            Compreendemos que nossa pergunta de pesquisa não é uma questão que poderia ser investigada junto a algum estabelecimento de ensino. E um novo problema  se coloca: onde investigar tal questão? Onde poderíamos encontrar estes sujeitos interagindo, construindo conhecimento de maneira desinstitucionalizada? Que local poderia proporcionar trocas cooperativas, que de acordo com a epistemologia genética, são  fundamentais no processo de desenvolvimento da autonomia de aprendizagem? Que ambiente permitiria a observação das trocas intelectuais a ponto de caracterizar a possibilidade de mudança na subjetividade dos sujeitos?

A criação de verdadeiras sociedade virtuais com o apoio de groupware desenvolvidos completamente em língua portuguesa, definiram por fim, o ambiente ideal para o desenvolvimento desta experiência: a Rede Internet com a utilização de programas do Sistema hiperNet. O Sistema hiperNet é um modelo cooperativo de trabalho grupal na Internet, que já era, a priori,  um meio inovador de comunicação, socialização e de acesso livre ao conhecimento.

O Sistema hiperNet

O sistema consiste em um trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Laboratório de Software Educacional - EDUGRAF, da Universidade Federal de Santa Catarina.

O projeto busca, desde a perspectiva técnica até às componentes pedagógicas, respeitar as noções de aprendizagem autônoma, buscando desenvolver possibilidades de trabalho cooperativo. Em última instância, este trabalho revoluciona a cultura de informática educativa no Brasil, propondo-se a exibir interfaces  orientadas ao usuário e totalmente em Língua Portuguesa, além do que, conta com um sistema de rede que permite tanto o modo de comunicação síncrona como assíncrona. 

O primeiro tipo, o modo de comunicação síncrono, ocorre quando os comunicantes interagem em tempo real, como por exemplo, durante o uso do programa hiperMOO, onde inúmeros participantes podem conectar-se e interagir simultaneamente. Este ambiente é modo texto, sendo composto por salas virtuais que se intercomunicam, de forma que o usuário pode se locomover através de "portas", e se comunicar simultaneamente com várias pessoas que estejam presentes na mesma sala que ele. Além disso, o ambiente conta com objetos e personagens que podem ser "manipulados" pelo usuário através de diferentes comandos, como por exemplo, "pegar", "olhar", "soltar" ou "abrir" (Zurba, M. C.; Hoepers, C.  &  Moura, M. R.; 1996).

O segundo  modo de comunicação, aquele assíncrono, pode ser bem exemplificado pelo uso de "e-mail", onde a interação não ocorre em tempo real, mas através de mensagens que são enviadas a um ou mais participantes do processo comunicativo.

            A viabilização de uso deste sistemas para os fins planejados implicou na formação de parcerias, que possibilitaram a implantação de NET's (Núcleos de Experimentação/Aprendizagem de Telemática).    As parcerias funcionam na medida em que a equipe do projeto hiperNet oferece tecnologia, instalação e manutenção básica do software de rede, enquanto por outro lado o parceiro deve dispor de equipamentos, espaço físico adequado, segurança e materiais de expediente.

            Tecnicamente, um Net é uma sub-rede com equipamentos PC interligados de modo TCP/IP. Toda sub-rede permanece conectada à sede do projeto, na UFSC, "aonde se encontram os equipamentos de maior porte (do tipo SPARC 10), que rodam os servidores principais da rede (Processadores de Lista, Servidores Gopher, WWW, MOO, POP, SMTP,etc.)." (Ramos, 1995, p.171).

            Dentro do projeto existem os fóruns hiperNet, que são debates que acontecem na rede utilizando o software hiperNet. Os fóruns são iniciados por repositórios de informações organizadas por pessoas que se interessem por determinado assunto. A partir de então, colocadas estas informações em rede, sob a forma de hiperMídia  (textos, sons, imagens digitalizadas, ligações com outros repositórios da Internet, etc.), outras pessoas podem discutir em torno do tema, tendo o repositório como base, que entretanto, pode ser reformulado por qualquer um dos participantes do debate, que estejam inscritos naquele fórum e desejem alterar o material disponível (adicionando, apagando, movendo, etc.).

O Processo de Pesquisa

            Este trabalho de pesquisa teve como atividade básica, o uso de redes de comunicação síncronas ou assíncronas pelos participantes, através do sistema hiperNet. Cada sessão de atividades ocorria com todos os participantes simultaneamente ou com apenas alguns deles, conforme a disponibilidade de cada um, ou da distribuição de vagas e horários no net-centro. Em função do cotidiano pouco organizado e imprevisível dos jovens que participaram da pesquisa,  iniciamos as atividades com cinco sujeitos excedentes ao tamanho da amostra, para que em decorrência de possíveis desistências de participantes na pesquisa, pudéssemos ainda assim manter uma análise de dados baseada em cinco casos. Cada participante contou com duas  sessões semanais, cuja duração era aproximadamente de 2:00hs cada uma, o que culminou, segundo um percurso de 5 semanas, em  aproximadamente 20 hs de trabalho por sujeito, ou seja, 100 hs de trabalho total.

Foram dados da pesquisa todas as interações dos sujeitos na rede (armazenadas em disquetes), bem como seus comentários orais, expressões corporais e nossas intervenções feitas durante a experimentação sob a perspectiva do método clínico (registrados em vídeo).

            Encontramos níveis de desenvolvimento cognitivo e afetivo que se sucediam e interpenetravam. Tal fenômeno caracteriza um processo segundo aquele modelo descrito pela teoria da equilibração cognitiva de Piaget (1976). Assim, utilizaremos a organização de níveis de desenvolvimento cognitivo baseados nesta teoria da equilibração cognitiva, enquanto, ao mesmo tempo, introduziremos os resultados a respeito do desenvolvimento da personalidade dos sujeitos naqueles níveis. Isto significa que o desenvolvimento da personalidade dos sujeitos durante o processo de pesquisa não foi subdividido naqueles mesmos níveis cognitivos, embora, de acordo com Perls (1977), a respeito da concepção gestáltica do desenvolvimento da personalidade, seja possível compreender o desenvolvimento através de sucessivos ciclos que atingem crescentes níveis de tomada de consciência. Consideramos que não há uma necessária correspondência entre os níveis de desenvolvimento de personalidade e aqueles cognitivos, de modo que não temos o propósito de investigar tal correspondência nem o estabelecimento de níveis de desenvolvimento da personalidade.

   Níveis

Nível I

Nível II

Nível III

Sessões

       

I sessão

II

REN, VOL, OSM,

LEO, SAN

     

II sessão

REN, OSM, LEO,

SAN

VOL

   

III sessão

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

   

IV sessão

REN

OSM, LEO, SAN

VOL

 

V sessão

REN

OSM,  LEO,  SAN

VOL

 

VI sessão

 

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

 

VII sessão

 

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

 

VIII sessão

 

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

 

IX sessão

 

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

 

X sessão

 

REN

VOL, OSM, LEO,

SAN

 

            O processo de desenvolvimento cognitivo e afetivo, pelo qual passaram os sujeitos desta pesquisa, indicou-nos um novo caminho que, independente da estrutura de ensino formal, mostrou favorecer o desenvolvimento de autonomia e tomada de consciência pessoal de jovens em situação de risco. Assim, os riscos econômicos, sociais, culturais e afetivos, que restringiam opressivamente a vida dos sujeitos investigados, não inviabilizaram um processo de desenvolvimento precioso no uso do Sistema hiperNet.

            Os resultados nos mostraram que o processo de desenvolvimento de autonomia de pensamento, explicada por Piaget (1973), ocorreu imbricado ao processo de desenvolvimento de auto-estima e suporte a que se refere a abordagem gestáltica de Perls (1977). A eminente dificuldade em compreender separadamente os processos de cognição e afetividade, sugerem uma compreensão holística sobre o desenvolvimento dos sujeitos da pesquisa. Compreendemos que implicações mútuas, entre inteligência e personalidade, ocorreram durante o desenvolvimento das atividades, o que nos permite concluir que nenhum sujeito da pesquisa chegou a demonstrar aprendizagem autônoma sem transformar sua própria subjetividade e seu existir no mundo.

            De fato, o Sistema hiperNet, ao constituir-se como uma maneira livre de acesso e construção de conhecimento, pretende modificar o ser-no-mundo de seus usuários, propiciando-lhes conflitos, desequilíbrios e novas configurações de seus campos existenciais.

            Segundo uma compreensão holística, toda tomada de consciência cognitiva oferece subsídios para a transformação do ser como um todo. Conforme a abordagem gestáltica, tornar consciente algo que não fazia parte da identidade do sujeito,  implica na ampliação de seu self. Como afirmou Perls (1977), trata-se de: "reassumir  o potencial oculto".

            Assim, podemos compreender que, desde o início das atividades, cada sujeito ocupava determinado espaço psicológico, cujas fronteiras caracterizavam as fronteiras de contato de self de cada um. No decorrer da pesquisa, como observamos, os sujeitos intensificaram seus contatos interpessoais, ao mesmo tempo em que desenvolviam novas habilidades cognitivas. Como vimos, o contato entre organismos somente pode ocorrer entre seres separados, que são capazes de relacionarem-se, sem que, entretanto, os seres percam a noção dos limites de sua própria identidade. Por outro lado, todo contato real, aquele a que se refere a abordagem gestáltica, implica em transformações na identidade do sujeito que contata. Isto significa, pois, que se um sujeito contata, portanto se transforma, e se mesmo se transformando ele não perde a noção de sua própria identidade, é porque está tomado de consciência das implicações do contato que estabeleceu.

            Tal processo de tomada de consciência descrito pela Gestalt, não apareceu dissociado daquela característica da abstração refletida descrita por Piaget (1995), que consiste no resultado consciente de uma abstração reflexionante. Embora não tenhamos consistência epistemológica para entender como ocorre esta relação, consideramos de profunda relevância o fato em si observado: conforme o processo de abstração reflexionante se revertia em abstrações refletidas, maior era a capacidade de contato dos sujeitos.

            O fenômeno poderia nos sugerir um ciclo, no qual nem a afetividade se desenvolveria sem o desenvolvimento da inteligência, e nem esta alcançaria tais níveis sem o desenvolvimento daquela. Sobre este processo complementar, ressaltou Piaget (1964, apud in Parra, 1983, p.41):

"(...) é sempre a afetividade que constitui a mola das ações das quais resulta, a cada nova etapa, esta ascensão progressiva, pois é a afetividade que atribui valor às atividades e lhes regula a energia. Mas a afetividade não é nada sem a inteligência, que lhes fornece meios e esclarece fins. " (Piaget, 1964, apud in Parra, 1983, p.41)

            A questão entre o desenvolvimento cognitivo e de personalidade, parece ter tomado maiores proporções, quando os sujeitos SAN, VOL, OSM e LEO alcançaram o terceiro nível de desenvolvimento. Pudemos, então, observar como as transformações na auto-imagem ocorriam de modo simultâneo ao desenvolvimento de comportamentos cooperativos e autônomos, quando os sujeitos eram capazes, então, de alcançar o equilíbrio nas trocas sócio-cognitivas.

            A noção construtivista indica que, dizer que a autonomia está em oposição à anomia e à heteronomia, consiste em referir-se a uma autodisciplina, de forma que a cooperação implica em um sistema de normas, que a torna diferente da "suposta livre troca cuja liberdade se torna ilusória pela ausência de tais normas" Piaget (1973). Durante as atividades de pesquisa, percebemos que observadores menos avisados que freqüentavam o net-centro, não compreendiam as trocas equilibradas por um sistema de normas que resultavam em cooperação, e sugeriam que os sujeitos estivessem apenas realizando uma "baderna"  no ambiente,  aparentemente poluído pelo som das falas e risadas. Entendemos que a autodisciplina, indispensável ao desenvolvimento da autonomia, realmente não é de fácil observação, de onde temos encontrado tanta dificuldade na distinção entre os comportamentos autônomos daqueles que Piaget (1973) definiu como regulados por uma "liberdade ilusória" de expressão. Liberdade ilusória, porque se não há autonomia, então o sujeito está agindo baseado na passividade, conforme uma disciplina externa, que por mais sedutora que seja (como, por exemplo, alguns programas de televisão), define algum padrão de conduta imposto, sem que o sujeito use com plenitude sua liberdade de opção e construção de conhecimento. Por isso a preciosidade deste experimento, de onde 4, dos 5 sujeitos participantes, alcançaram tal desenvolvimento de autonomia e cooperação. Piaget (1973) já salientara a dificuldade em encontrarmos comportamentos realmente cooperativos: "E é porque a cooperação é tão frágil e tão rara no estado social dividido entre os interesses e as submissões, assim como a razão permanece tão frágil e tão rara em relação às ilusões subjetivas e aos pesos das tradições. " (Piaget, 1973, p.111)

            Assim, a autonomia implica em uma dupla atividade: decentração em relação ao egocentrismo intelectual e moral; liberação em relação às coações sociais que o egocentrismo intelectual e moral podem provocar ou manter.

            A respeito da primeira atividade, ou seja, sobre a decentração do egocentrismo intelectual e moral, percebemos com clareza, alguns aspectos influentes advindos da formação da subjetividade. Os sujeitos somente conseguiam coordenar um ponto de vista próprio com o de outro parceiro, à medida que ambas as partes interativas conseguiam respeitar-se mutuamente. Piaget (1973) considerou o respeito mútuo às proposições intelectuais de um e de outro parceiro, como um dos ingredientes fundamentais na equilibração sócio-cognitiva. Ramos e Fagundes (1996) já ressaltavam em seu trabalho, a implicação que o genuíno respeito mútuo indica: além de respeitar o ponto de vista de seu parceiro, o sujeito autônomo respeita o seu próprio ponto de vista. O respeito a si próprio, neste sentido, trilha o caminho que remeterá o sujeito a conservação de suas próprias proposições.

            A abordagem gestáltica nos ofereceu o suporte necessário para compreendermos como este respeito por si próprio foi elaborado pelos sujeitos durante o processo de pesquisa.  De maneira geral, todos os sujeitos passaram por um processo de re-construção de auto-imagem, de auto-confiança e por fim, de aprimoramento de auto-estima.  A tomada de consciência dos sujeitos, durante o processo de avanços cognitivos, modificava o processo existencial de cada um, consistindo em uma transformação subjetiva conforme o modelo dialético (tese, antítese e síntese), e que em Gestalt,  Perls (1977) chamou de: existência, anti-existência e existência sintética.

            Poderíamos dizer que a existência sintética é a resultante de um processo de conflito, no qual as polaridades de personalidade dos sujeitos entram em contato. Durante os avanços cognitivos, tais conflitos são invariavelmente inevitáveis. Assim, ao contatar com uma experiência nova, e sem caráter coercitivo como era a proposta de uso do Sistema hiperNet, os sujeitos foram colocados em um  novo campo existencial: não haviam regras, não havia um script, e portanto, nenhum papel definido a ser cumprido. Poderiam decidir pela anti-existência, e evitar qualquer contato com esta nova experiência, entretanto, nenhum dos sujeitos desistiu das atividades de pesquisa. REN paralisou seu avanço durante o segundo nível, permanecendo como a maioria dos terrenos, em um período de existência confortável, sem alcançar a síntese do conflito existencial que lhe ocorrera.

            Portanto, possibilitar o desenvolvimento cognitivo e subjetivo, como foi realizado nesta experiência, é permitir que o fluxo de consciência e atenção estejam presentes no contato, ou seja, presentes no aqui e agora. Os comportamentos autônomos somente ocorreram  neste ínterim, quando os sujeitos podiam estabelecer contatos reais e responsáveis, alcançando sua síntese existencial.

Referências Bibliográficas

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Zurba, M. C. (1995) Cognitive development of homeless children using computers. [Desenvolvimento cognitivo de crianças sem lar no uso de computadores] (Resumo) The International Conference on Research and Practice in Attention Deficit Disorders, p. 12, Jerusalem.

            Zurba, M. C. ; Hoepers, C. & Moura, M. R. (1996)  "O hiperMOO: Um Ambiente de Interações Cooperativas"  (Artigo) InfoEducar, Fortaleza, Ceará.

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