49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Vera Regina Beltrão Marques

49 CONGRESSO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS

PROBLEMAS URBANOS E DE SAÚDE NO BRASIL

SECCIÓN MEDICINA Y SALUD

REMÉDIOS SECRETOS- saberes e poderes

Vera Regina Beltrão Marques

doutoranda em História Social -UNICAMP-BRASIL

RESUMO

Os remédios secretos foram amplamente utilizados tanto no Brasil colonial quanto no império. O presente trabalho, centrado na cidade de Campinas, pretende discutí-los sob o ponto de vista dos saberes que engendraram como também dos poderes que possibilitaram seu preparo e comercialização, uma vez que os remédios secretos encontravam-se proibidos desde a elaboração da primeira farmacopéia oficial portuguesa, em fins do século XVIII.

REMÉDIOS SECRETOS - saberes e poderes.

1. INTRODUÇÃO

"O Senhor de Mar e Guerra, Intendente da Marinha e Armazéns Reais mandará por em venda na Botica do Hospital Militar, as garrafas de uma preparação de quina, a que comumente dão o nome de Água de Inglaterra, que com a provisão da cópia inclusa me foram remetidas pela Junta da Fazenda da Marinha, no Correio Marítimo. Haviam pelos preços declarados na mesma provisão, e logo que se acharem vendidas arrecadar o seu produto para o remeter a mesma Junta da Fazenda da Marinha, em açúcar e algodão, na forma indicada, dando-me parte antes de fazer a remessa, para responder a dita provisão".1

Esta ordenação expedida pelo govenador Francisco da Cunha Menezes ao despontar do século XIX é bastante curiosa em se tratando da famosa "Água de Inglaterra", um medicamento secreto, que tantas polêmicas e disputas vinha causando desde a primeira formulação que chegara à Portugal, manipulada por Fernando Mendes, médico da corte inglesa em fins do século XVII. e início do século XVIII. A curiosidade deve-se ao fato de que fora declarada guerra aos medicamentos de segredo no reino com a elaboração da primeira farmacopéia oficial, e em 1799, um edital com denominação de "Aviso ao público" rezava que quando se receitasse Água de Inglaterra deveriam os farmacêuticos vender o vinho quinado composto, expresso na Farmacopéia Geral.2

Sim, mas tratava-se da "Água de Inglaterra", preparado que notabilizara-se sobremaneira em Portugal e suas colônias por sua ação anti-malárica devido à quinina, seu principal princípio ativo. Era utilizada nas "febres intermitentes, terçãs, quartãs, sezões ou maleitas"- em referência à terminologia em voga naqueles tempos- febres essas endêmicas na metrópole e nas colônias. Deve-se ter em conta que o sulfato de quinina é um medicamento altamente eficaz, sendo até hoje utilizado na prevenção e tratamento da malária.

Fernando Mendes não havia inventado a Água de Inglaterra pois ela já era usada pelos índios do Peru desde priscas eras. No entanto é somente no século XVII que a quina é introduzida na Espanha e passa a ser usada no tratamento das febres com as denominações de, "pós dos jesuítas", "pós do Cardeal" e outros.

Robert Talbot, um aprendiz de boticário que "virou" médico, obteve privilégios ao curar o rei Luís XIV da França e após Carlos II da Inglaterra utilizando a quina sob a forma de vinho. Foi então nomeado médico do rei inglês em 1678, ano em que Mendes prestava serviço a Dona Catarina e acompanhava de perto a utilização da quina naquela Corte.3

Segundo Sousa Dias, não se sabe ao certo como se introduziu o medicamento em Portugal, sendo a versão mais antiga , a de Curvo Semedo, na Polyanthea medicinal, editada em 1697, dizendo que o segredo fora comprado por D. Pedro II, para o bem de seus vassalos. Essa versão foi reafirmada posteriormente pelo boticário português Manuel Rodrigues Coelho na sua Pharmacopea tubalense, e negada pelo médico Jacob de Castro Sarmento que atesta ter D. Pedro II brindado o autor com uma generosa recompensa por este ter lhe revelado o segredo, embora o soberano tenha se comprometido em manter a fórmula em sigilo.4 D. Pedro sofria de "febres" desde muito jovem e o medicamento, revelado ou não, tornara-se certamente dádiva, tanto para seu próprio uso quanto para "a saúde de seus vassalos" em se tratando de doença tão endêmica no reino de Portugal.

Se Fernando Mendes foi o iniciador do comércio da água em terras lusitanas, no entanto, não foi seu comerciante mais notável, nem era de sua autoria essa água que chegava ao Brasil em 1802.

Em fins dos setecentos tanto a Água consumida em Portugal quanto a transportada para as colônias eram produzidas principalmente por André Lopes de Castro, sobrinho do eminente Dr. Jacob de Castro Sarmento5, que dizia ter herdado do tio a legítima fórmula do medicamento, sendo que André nem boticário era. Isto fazia com que os boticários pressionassem a Real Junta do Proto-Medicato a respeito de tal privilégio. Como poderia Castro ter aprovação e licença?

André Lopes de Castro vendia seu produto por preços inferiores aos cobrados por boticários e outros preparadores e entrava em qualquer contenda para expandir suas vendas. Assim disputou com João Antonio Pereira e Sousa, boticário do Conselho Ultramarino, o lugar de fornecedor do medicamento para a Armada Real ao provocar o embargo da preparação daquele, já que o produto de Sousa usava garrafas e marca idêntica às suas. Sousa comprovou a qualidade de sua água e manteve seu lugar6.

Por decreto do Príncipe Regente de 1799 o preparo da água de Inglaterra para as Armadas Reais e domínios ultramarinos deveria ser efetuado pela Junta de Proto-Medicato (...) " nos dispensatórios farmacêuticos dos melhores boticários de Lisboa, que escolher, e depois de posto em vigor o laboratório químico, e dispensatório farmacêutico do Hospital da Marinha as que no mesmo mandar preparar para os sobreditos fins" (...)7.

José Francisco Borralho, nomeado boticário do Hospital Militar da Corte e também fabricante do medicamento teria sido o responsável pelo preparo da água que chegava à Bahia em 1802, uma vez que manipulava esse remédio na botica do hospital e também tinha licença da Junta para prepará-la e vendê-la por sua conta.8 O mecanismo de troca empregado e a venda em instituição oficial viria reforçar essa hipótese.

Sabe-se entretanto que em agosto deste mesmo ano, André Lopes de Castro obtivera licença através de aviso real para que sua água pudesse ser vendida livremente nos domínios de além-mar.9

Em Aviso ao público a respeito da Agoa de I nglaterra da composição do Doutor Jacob de Castro Sarmento, por André Lopes de Castro, edição de 1799, o capitão esclarece que vem a público dizer que tanto sua mulher, quanto seu filho José Joaquim sabem preparar a verdadeira receita de sua água e assim procedem nos seus impedimentos. Utiliza-se também dessa nova impressão para solicitar cuidados com as águas vendidas na América pois seriam frequentemente falsificadas. Destaca o apoio recebido de vários médicos e cirurgiões, tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia, atestando os bons resultados obtidos com o uso de sua formulação. Dentre os do Rio de Janeiro, cita Manoel Joaquim Mascarenhas, Estácio Gularte Pereira e Antonio Francisco Leal. Na Bahia assinam: o médico do presídio, o Cirurgião Mór e Juiz Comissário da Real Junta, além de José Antonio da Costa Ferreira.10

Nas próprias boticas existentes nos navios da "Viagem Filosófica", primeira expedição naturalística enviada por Portugal às terras do Brasil, chefiada pelo ilustre baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, já se encontravam garrafas de Água de Inglaterra. Na "lista da botica" requisitada pelo Dr. Ferreira a João Pereira Caldas, em Barcelos, então capital da Capitania do Rio Negro, em 5 de fevereiro de 1788, constam doze garrafas do dito medicamento para uso da tripulação que percorreria o Rio Madeira11, o que indica o seu consumo do norte ao sul da colônia.

Se a Água de Inglaterra tornou-se famosa, fosse por sua eficácia ou pelas disputas e controvérsias que causou, não foi o único medicamento secreto importante a despertar a atenção dos historiadores da medicina e da farmácia. Vários estudos sobre esta temática têm sido realizados em Portugal, embora mantenha-se muito escassa a historiografia brasileira sobre esses medicamentos na época colonial, ou mesmo no Brasil-Império.

2. SABERES SECRETOS

João Curvo Semmedo, médico português, famoso por seus remédios de segredo, no panfleto "Advertencias dignas de serem sabidas" dizia: " Na Corte de Paris, e em muitas terras do mundo costumam os que sabem algum remédio singular, fixar vários papéis nas ruas mais públicas, dizendo neles que fulano morador em tal parte tem um remédio eficaz para tal doença; e para esse fim repartem os tais papéis com as pessoas que encontram pelas ruas, para que todos saibam onde acharão o tal remédio.

Este arbitrio tão proveitoso desejei se usasse em Portugal, e quiz dar notícias dos segredos medicinais que experimentei feliz no decurso de cinquenta e quatro anos , para que os doentes, que padecem , por não ter notícias deles, cobrassem saúde.12

Assim, Semmedo expressava o entendimento existente acerca dos remédios secretos em fins do século XVIII. Como ele mesmo relatava, tratava-se de medicamento "singular" cujos componentes não eram revelados. Ao invés da formulação, propagandeava-se os efeitos sempre acompanhados dos depoimentos daqueles que haviam-no experimentado. Ainda segundo o médico, a divulgação desses remédios era feita através de ampla propaganda escrita, afixada e distribuída nas ruas na qual indicava-se o local para aquisação. Os segredistas também publicavam reclames nos jornais da metrópole, prática que se tornou comum no Brasil, após a introdução da imprensa no século XIX.

Produziam medicamentos secretos médicos, cirurgiões, boticários, curandeiros e pessoas alheias as práticas de curar, num amplo leque que variava de soberanos a escravos.

Quando algum dos medicamentos de segredo notabilizava-se, como aconteceu com a "Água de Inglaterra", diferentes formulações recebiam a mesma denominação. Assim, nos cadernos de receitas dos colégios da Índia, da Companhia de Jesus, num só manuscrito há duas fórmulas para o preparado, a do Capucho Arrábido e daquela "que se fazia em Inglaterra".13

Muitos dos segredos utilizados encontravam divulgação nos livros escritos por médicos, cirurgiões e boticários. No livro Erário mineral , do cirurgião português Luís Gomes Ferreira, lê-se no tratado terceiro: "De uma miscelânia de vários remédios inventados e experimentados para muitas enfermidades", além "Dos segredos ou remédios particulares que o autor faz manifesto para a utilidade do bem comum" contidos no sexto tratado.

Gomes Ferreira permaneceu "nos povoados desta América" vinte anos, dez deles passados nas Minas. Conquistou fama de clínico competente e muito utilizou a flora local. Parece ter tido uma postura diferenciada de outros idealizadores de segredos pois revelava no " Erário " os componentes e formas de preparar seus medicamentos. Como frisa: " Se houver alguma pessoa (o que não creio) que note o ensinar este, e outros segredos, não terá razão porque a conveniência de muitos deve prevalecer a dos poucos ".14

Dentre os medicamentos usados pelo Cirurgião-Mor Manoel Fernandes Nabuco, o primeiro dos Nabucos a atracar na Bahia, em 1762, também figuram medicamentos secretos podendo citar-se o famoso óleo do Grão-Duque de Florença.15

Na listagem manuscrita dos medicamentos existentes na botica portátil do Ouvidor Geral- de uma capitania não especificada do Brasil- constam outros remédios de segredo tais como: Água da Rainha da Hungria, Bálsamo Católico e a Triaga de Veneza. Seguindo-se a lista encontra-se as "virtudes e modo de usar esses remédios".16

Mas a Triaga Brasílica era um dos medicamentos secretos que mais "alvoroço" causava na Terra de Santa Cruz. "Inventada" pelos religiosos da Companhia de Jesus mais tarde seria divulgada na " Coleção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa Companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil compostas e experimentadas pelos melhores médicos e boticários mais célebres que têm havido nestas partes". Depoimento de um religioso não identificado, a respeito da triaga: " E eu a confessar a verdade, pela experiência que tenho de todas as quatro partes do mundo e exercitando em todas elas a caridade de aplicar alguns remédios, digo que é das triagas a que entre todas as outras tem a primazia: pois é a que entre todas elas, obra mais prontamente e com mais eficácia ".17

Essa eficácia tornava a formulação tão cobiçada que aproveitou-se o episódio da expulsão dos jesuítas para se tentar obtê-la. Um dos desembargadores, atuante na Bahia, escrevia a um ministro da corte em 30 de julho de 1760: " Agora sou obrigado a dizer a V. Exa. para ser presente ao mesmo Senhor que tendo eu notícia que havia na Botica do mesmo Colégio algumas receitas particulares e entre elas a do Antídoto ou Triaga Brasílica, fiz a necessária diligência para que me viesse a mão antes que fossem de outrem vista pelo justo receio de que se transladasse ou se desencaminhasse por indústria de quem com eficácia a buscava: o que se não evitaria, faltando a predita cautela, que se ignora na inteligência de que poderiam os mesmos Padres ocultar a dita receita, como fizeram aos principais remédios que em lugar incompetente foram achados. Por essa receita me dizem haverá nesta cidade quem dê três ou quatro mil cruzados: e é certo que o fundo principal da dita Botica era este remédio, pelo grande gasto que tinha, por ser pronto o seu efeito. Também achei outros manuscritos de outras receitas, que poderão não ser vulgares, porquanto delas se vê mandarem os Prelados com pena de desobediência se não mostrassem à pessoa alguma ".18

A triaga, "celebérrima em todo aquele Novo Mundo da Botica do Colégio da Bahia", era preparada com vinte e uma raízes, extratos, gomas e substâncias químicas (óleos e sais). Havia variações na formulação pois poderia ser manipulada com ou sem substâncias químicas. Quando sais e óleos químicos eram incorporados tratava-se da Triaga Brasílica reformada, considerada mais eficaz por seus idealizadores.

" A Triaga brasílica é um antídoto ou panacéia composta, à imitação da Triaga de Roma e de Veneza, de várias plantas, raízes, ervas e drogas do Brasil, que a natureza dotou de tão excelentes virtudes, que cada uma por si só pode servir em lugar da triaga da Europa: pois com algumas das raízes, de que se compõe este Antídoto, se curam nos Brasis de qualquer peçonha e mordedura de animais venenosos, como também de outras várias enfermidades, só com mastigá-las (...). É esta triaga eficacíssima contra todo o veneno (exceto os corrosivos), como é o solimão e outros semelhantes caústicos, ainda que contra estes, dado o peso de uma até duas oitavas, ainda ajuda à expelir com vômitos; e depois com remédios anódinos, que se costuma aplicar a semelhantes venenos, faz a cura mais fácil e mais segura.

Serve contra qualquer bebida de veneno, ainda que seja de ervas frias e venenosas, e para mordeduras de qualquer qualidade de cobras e outros animais peconhentos, (...).

Serve também para qualquer dor interna como de estômago, vômitos, cólicas, flatos e pontadas, principalmente se forem causadas de frio; para lombrigas e qualquer humor corrupto que se gere nos intestinos. É remédio para estancar cursos (...).

Serve mais para qualquer achaque de cabeça causado de intemperança fria, como é a paralisia, epilepsia, apoplexia, melancolia, (...). É boa contra a peste e doenças epidêmicas. Nas febres malignas tem mostrado grande eficácia, (...). É potente contra as bexigas e sarampo, (...). Assim mesmo, tomando-a em tempo de bexigas, ou de outras doenças contagiosas e epidêmicas (...) serve para preservação (...).

É assim mesmo célebre e experimentado remédio para as enfermidades histéricas, como para a sufocação da madre, acidentes uterinos, convulsão, flatos, dores, retenção dos menstruos, para a opilação da madre, para corroborá-los depois do parto (...) e finalmente para quase todas as doenças das mulheres.

Serve também para as crianças que têm febres, cólicas, e outras enfermidades causadas de lombrigas ".19

A triaga teria como efeito curar esse vastíssimo e diverso leque de doenças à semelhança de um antídoto universal, formulada em imitação às triagas européias, porém enriquecida pelas plantas exóticas dos brasis.

Este segredo dos jesuítas, guardado a sete chaves, de tão alto custo e cobiça, tanto na colônia quanto na metrópole, constitui composição exemplar de terapêutica empregada nos setecentos, mas concebida no mundo antigo. As teriagas ou triagas continham ópio em sua formulação, droga essa usada em muitas receitas desde a antiguidade, tanto no Egito, como na Grécia ou em Roma.

" Asclepiades , e depois Tessalo foram os primeiros na Grécia, que fingiram ter segredos para prolongar a vida, e curar todas as moléstias (...). Segue-se Democrito com sua composição, de que fez tanto uso Mitridato Rei de Ponto , que dele recebeu a maior fama, e o próprio nome: depois Andromaco médico de Nero com a sua teriaga, que nada mais é do que aquela reformada por ele, e publicada de baixo do seu nome: ambas estas se conservaram em segredo, e só os reis, e imperadores o possuíram: por fim vem Galeno a quem o imperador encarregou do cuidado, e composição destes famigerados antídotos, sempre feitos com grande mistério nos palácios reais.

Este médico sábio e sobretudo de gênio pomposo cheio de honras pelo Imperador Antonino publica a teriaga composta, e adicionada por ele, como superior a todas as outras, e exagera suas virtudes " .20

A triaga brasílica vinha assim na esteira de outras triagas, algumas das quais elaboradas também por jesuítas, como as de Roma e Veneza, mas era da brasílica, a mais famosa delas, que tentavam "surrupiar" a fórmula na "última hora", demonstrando o alcance de seu sucesso.

Mas afora o "segredo" no quê se distinguiam esses medicamentos?

Esses remédios eram preparados à maneira do que hoje denominar-se-ia "produção em série", no limite poder-se-ia considerar um "incipiente processo industrial", diferente do modo usual de manipular medicamentos no século XVIII, quando cada doente tinha seu remédio próprio, formulado especialmente para seu caso e normalmente vendido na botica mais próxima de sua casa. Assim, seguiam um padrão próprio de preparação sendo depois distribuídos inclusive para outros países, como a "Água de Inglaterra", de Fernão Mendes. Como as fórmulas de segredo eram de exclusivo conhecimento de quem as idealizava não eram manipuladas em botica, mas na própria casa- um "laboratório privado"- e também nela eram vendidas localmente. Tornavam-se conhecidos pelo nome "comercial", nome "fantasia", dado pelos seus preparadores e, que devem ter inspirado a indústria farmacêutica atual. Vinham acompanhados do que modernamente chamou-se "bula", inaugurando a prática hoje conhecida por "auto-medicação".

Basicamente manipulados a partir de princípios ativos de plantas, foram muito utilizados também para impor o consumo de novas substâncias, ou mesmo daquelas que se encontravam desacreditadas pela população. Foi o que aconteceu com a quina. Jacob de Castro Sarmento, "inventor" da "Água de Inglaterra", diz que em decorrência do uso indevido desta substância, em febres nas quais não apresentava efeitos, esqueceu-se por mais de trinta anos as excelentes ações da quina-quina. " Mas com nome disfarçado pelo grande horror, e aversão, com que a ouvia nomear o povo: e como este, e os médicos viram frequentemente, e não podiam negar os seus admiráveis efeitos, quando vieram a saber, que era a quina-quina a causa daqueles sucessos, ficaram todos admirados, mas convencidos (.. . )" .21 No que diz respeito às novas substâncias, tratava-se da introdução de medicamentos químicos na terapêutica, até então dominada pelos princípios da farmácia galênica, a polifarmácia na qual abundavam preparações com muitos componentes.

Os remédios secretos podiam também conter em suas formulações toda a sorte de excreções biológicas. As "Pirolas" contra a gota coral, dores de cabeça e asma, por exemplo, para fazerem efeito em asmáticos o paciente deveria beber " em cima quatro onças de urina de menino, que fosse fresca ". Essa era a recomendação de Curvo Semmedo para aqueles que usassem suas pílulas.22

Se os medicamentos de segredo agradavam aos doentes e faziam a riqueza de seus idealizadores, não passavam desapercebidos das autoridades sanitárias. As ações da Junta do Proto-Medicato, em fins do século XVIII, mostram o empenho dessas autoridades em normatizar as práticas de cura, atribuindo à experimentação o lugar que lhe era devido com o advento da medicina científica.

No que dizia respeito aos remédios tratava-se da reorganização de seus saberes. Não bastava que curassem. Era necessário que se soubesse porque curavam suas ações e reações. E para isto os segredos precisavam ser revelados, testados e comprovados pela verdade da ciência.

3. PODEROSOS SEGREDOS.

José Henriques Ferreira23, no seu " Discurso Crítico ", tece uma interessante crítica às formulações secretas tão em voga nos séculos XVII e XVIII. Utilizando como eixo de sua análise o espírito das luzes, constrói seu argumento mostrando as incompatibilidades entre ciência médica e empirismo mágico.

Ferreira esmera-se em mostrar como a arte de curar foi revestida de mistério e magia e como as "coisas naturais e conhecidas foram tratadas secretamente". Não lhe faltaram exemplos, nem mesmo de médicos ilustres, para comprovar práticas pouco condizentes com a racionalidade norteadora dos espíritos esclarecidos do setecentos. Que embusteiros "fabricassem" medicamentos secretos na ânsia de enriquecer, poder-se-ia entender, afirmava Ferreira, mas o quê pensar de médicos como Sarmento ou Sachetti Barbosa?24

Os idealizadores desses segredos usavam dos mais variados argumentos na defesa de suas preparações. Como já mencionado, Sarmento apelava ao segredo para poder utilizar a quina; Sachetti por seu lado, defendia os secretos como monopólio dos médicos, os únicos aptos à prepará-los na sua ótica.

Mas, de onde provinha o poder medicinal do segredo?

" O Compêndio dos segredos medicinais, ou remédios curvianos ", é interessantíssimo para mostrar a "força" dos medicamentos secretos. Quando Semmedo enunciava as "virtudes" de seus preparados sempre fazia reverência a algum dom sobrenatural, celestial, que poderia ser: a) um favor divino -" esses meus pós por favor divino curam infalivelmente no prefixo termo de um mês "25, ou b) um milagre -" esse remédio se tomará quatro ou cinco vezes em dias sucessivos, e se fará um milagroso efeito ".26

Valia-se também das influências astrais associando-as à graça divina- " daremos, como digo, um dia depois da lua cheia a bebida que receitarei abaixo, com a qual se deve continuar não só todos os dias sucessivos, mas três vezes no dia até chegar o dia da lua nova, e então se deve parar com a dita bebida, até ao dia da lua cheia, e passado um dia depois dela tornaremos a continuar com a dita bebida, e no decurso de dois ou três meses confiem em Deus, que o doente fique são ".27 O médico tinha ainda o cuidado de ressaltar a falibilidade dos remédios usando como argumento o fato de serem preparados pelos homens,- " não digo que algumas vezes não tem faltado, porque os remédios humanos não podem ser infalíveis ".28

Essa associação "doença- remédio divino- milagrosa cura" cabia perfeitamente nas crenças populares da época. A arraigada cultura religiosa portuguesa possibilitava inclusive a publicação de " Botica preciosa, e Tesouro precioso da Lapa ", em pleno século das luzes, pelo Pe. Sequeira, natural de São Paulo.29 O livro salientava que as enfermidades do corpo e da alma somente poderiam ser verdadeiramente curadas por intervenção divina sendo a Virgem Maria a única botica preciosa. Se Maria tornara-se farmácia e as unções de óleo bento30 a terapêutica preconizada, o quê condenar nos medicamentos secretos?

Como impedir seus usos e a crença generalizada nas suas "virtudes"?

Porém as "virtudes" dos medicamentos secretos mantinham-se somente enquanto seus componentes não eram publicados. Perdia-se a "fé" no remédio assim que eram revelados. Como escreve Ferreira, " perdem toda a estimação logo que se publicam, e que se vê que são compostos de ingredientes triviais e conhecidos, dos quais se faz uso ordinário nas mesmas enfermidades ".31

Pois bem, de santos terapêutas aos esculápios segredistas tratara-se de dar um pequeno passo.

NOTAS

1-Biblioteca Nacional de Lisboa. Códice 4430. Correspondência do Governador da Bahia para o Intendente da Marinha, em 16 de setembro de 1802.

2-Edital da Junta do Proto-Medicato, acerca da chamada "Água de Inglaterra", in: História da farmácia portuguesa através da sua legislação, de Manuel das Dores Tello da Fonseca. Porto, Gráfica do Porto, 1935. A Junta de Proto-Medicato foi criada em 17 de Junho de 1782 em substituição `a Fisicatura-Mór.

3-Para maiores detalhes consultar: História da pharmacia portugueza desde os primeiros séculos da monarchia até o presente , 3 memórias de Pedro José da Silva. Lisboa, Tip. Franco-Portuguesa, 1866-8 e A "Água de Inglaterra" no Portugal das luzes, de José Pedro Felripa de Sousa Dias. Lisboa, Universidade de Lisboa, (mimeo), 1986.

4-Conferir em Idem, Ibdem.

5-Jacob de Castro Sarmento era português, filho de cristãos-novos, formado em artes e medicina. Transferiu-se para Londres em 1720, quando aumentou o cerco da Inquisição a médicos judeus. Notabilizou-se pertencendo às várias comunidades científicas de sua época, como Royal College of Physicians e Royal Society. Dentre suas obras destacam-se Materia médica, Farmacopéia contrata e Do uso e abuso das minhas Águas de Inglaterra. Sarmento supera, de longe o sucesso alcançado pela Água de Fernando Mendes. Para tal utilizou-se de vários expedientes, tais como: a)espalhar um folheto no qual dizia dos perigos da quina quando não devidamente extraída; b)dar credibilidade científica ao medicamento (repassa sua boa reputação à Água discutindo-a em suas obras); c)estabelecer uma importante rede de distribuidores do produto ( geralmente os boticários eram seus representantes) e d)valer-se de sua aproximação aos círculos do poder. Veja detalhes da trajetória de Sarmento em Augusto d'Esaguy e sobre seu anti-palúdico em Portugal, consultar: Silva e Sousa Dias, op. cit.

6-Informação de Silva, p. 144

7-Idem, p. 146-7.

8-José Francisco Boralho, Professo na Ordem de Santiago e Capitão das Ordenanças da Corte, foi nomeado por decreto de D. José I em 1760. Diz no folheto impresso acerca das Direções e advertências para o uso da "Agoa de Inglaterra" que em face do grande dispêndio que ocasionava à Fazenda Real a dita composição "se animou a fazê-la por conta da mesma Fazenda Real". Lisboa, Impressão Régia, 1810, p.12.

9-Os europeus residentes em Angola fizeram acirrada oposição à normatização da venda da água pela Junta, uma vez que o medicamento de Lopes era muito popular naquela colônia. Conferir em A Água de Inglaterra no Portugal das luzes , p. 96.

10-CASTRO, José Lopes de . Aviso ao público a respeito da "Ágoa de Inglaterra" . Lisboa, Off. de Simão Thaddeo Ferreira, 1799, p. 52-9.

11-"As boticas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira (fim do século XVIII)", de Américo Pires de Lima. Anais da Faculdade de Farmácia do Porto, vol. IX (separata) s.d., p. 5.

12-O texto de "Advertências dignas de serem sabidas" encontra-se estampado na obra de Semmedo, Polianteia medicinal, na parte que o autor trata do "Memorial de vários símplices". Lisboa, Off. de Antonio Pedrozo Galram, 1727.

13-Manuscrito vermelho, n. 586 da Academia de Ciências de Lisboa. Mémoria: " Virtudes de raízes e pedras dos colégios da Índia ". Século XVIII, f.52v a 53v.

14-FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral divididos em doze tratados. Lisboa, Off. de Miguel Rodrigues, 1734, p. 101-2.

15-NABUCO, José Thomaz. Um médico no Brasil Colônia : O Cirurgião-mor Manoel Fernandez Nabuco e sua gente. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p.101.

16- O manuscrito está assinado por Bento Vieira Gomes. Encontra-se em Papéis do Brasil. Avulsos 3, documento 3. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT), s. d.

17-Conferir em Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760), de Serafim Leite. Lisboa, Ed. Brotéria, 1953, p. 88.

18-Arquivo Histórico Ultramarino. Inventário Impresso, Bahia, 5018. Idem, p. 88.

19-Nos apêndices de Artes e ofícios no Brasil , Serafim Leite reproduz o índice do manuscrito "Coleção de Receitas", existente no Vaticano, Arquivo ARSI, Opera Nostrorum 17. Transcreve na íntegra a Triaga Brasílica, sua versão reformada, a notícia do antídoto e dos lugares onde se achavam alguns simples que a compunham.

20-Do livro: " Discurso crítico , em que se mostra o dano que tem feito aos doentes, e ao progresso da medicina em todos os tempos, a introdução, e uso de remédios de segredo, e composições ocultas, não só pelos charlatões, e vagamundos, mas também pelos médicos, que os têm imitado", de José Henriques Ferreira, publicado em Lisboa, Off. de Filippe da Silva Azevedo, 1785, p.11-3. Grifos no original.

21-Do uso e abuso das minhas "Águas de Inglaterra", ou diretório, e instrução para se saber seguramente, quando se deve, ou não, usar delas, assim nas enfermidades agudas; como em algumas crônicas; e em casos propriamente de cirurgia. Londres, Casa de Guilherme Strahan, 1756, Ver p.VI-VIII.

22-Compêndio dos segredos medicinais, ou remédios curvianos, que inventou e compôs o Dr. João Curvo Semmedo. Lisboa, Off. de José de Aquino Bulhões, 1783, p.102.

23-José Henriques Ferreira foi filósofo e médico, sócio das Reais Academias de Ciências da Suécia, Lisboa e Médica Matritense. Veio para o Brasil na qualidade de médico do Marquês de Lavradio.

24-O médico João Mendes Sachetti Barbosa preparava medicamentos secretos e temia que os segredos pudessem tornar a terapêutica independente da medicina. Ver A "Água de Inglaterra" no Portugal das luzes, p. 78.

25-Compêndio, p. 122.

26-Idem, p. 128.

27-Idem, p. 95.

28-Idem, p. 114.

29-A Botica preciosa, e tesouro precioso da Lapa. Em que como em botica, e tesouro se acham todos os remédios para o corpo, e para a alma, e para a vida, E uma receita das vocações dos santos para remédio de todas as enfermidades, e vários remédios, e milagres de Nossa Senhora da Lapa, e muitas novenas, devoções, e avisos importantes para os pais de famílias ensinarem a doutrina cristã a seus filhos e criados.

do Pe. Angelo de Sequeira. Lisboa, Off. de Miguel, Rodrigues, 1754.

30-As unções deveriam ser feitas acompanhadas de preces ao santo protetor do orgão afetado visando a cura da doença em questão. Os santos eram "advogados" contra as enfermidades. Assim, Santo André era invocado como remédio para virtude da castidade e constância nos tormentos. Conferir no capítulo: "Receita geral de vocação dos santos", p. 173-93.

31-Discurso , p. 13.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

4.1 Fontes manuscritas.

ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Manuscrito vermelho n. 586

ARQUIVOS NACIONAIS DA TORRE DO TOMBO. Papéis do Brasil, Avulsos 3, documento 3.

BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA. Códice 4430. Correspondência do Governador da Bahia para o Intendente da Marinha.

4.2 Fontes impressas.

BORRALHO, José Francisco. Direções e advertências para o uso da "Agoa de Inglaterra". Lisboa, Impressão Régia, 1810.

CASTRO, José Lopes de. Aviso ao público a respeito da "Agoa de Inglaterra". Lisboa, Off. de Simão Thaddeo Ferreira, 1799.

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