PONENCIAS

PATRIMÓNIO, TURISMO E POLÍTICAS CULTURAIS AUTÁRQUICAS. CONFLITUALIDADE OU CONVERGÊNCIA DE INTERESSES?

MARTA ANICO
Assistente
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Universidade Técnica de Lisboa
manico@iscsp.utl.pt

Resumo:


Património e turismo são duas realidades que convergem no quotidiano de vários actores responsáveis pela elaboração e veiculação de discursos relacionados com uma pretensa necessidade de preservar a “autenticidade” de rituais, festas, tradições e demais referentes culturais que, mediante um processo de valorização e activação, se transformam em recursos turístico-patrimoniais. Com este artigo pretende-se analisar quais os interesses e finalidades subjacentes a estes processos, fazendo referência às origens do processo de patrimonialização, à forma como o passado é conceptualizado e às relações que se estabelecem entre actores sociais e objectos culturais.

Palavras Chave: Património, identidade, políticas culturais, turismo

Introdução


Património e turismo são duas realidades que convergem no quotidiano de vários actores entre os quais se incluem os turistas, as populações dos lugares seleccionados como destinos, agentes económicos, associações locais e a administração pública local, regional responsável pela elaboração e veiculação de discursos relacionados com uma pretensa necessidade de preservar a “autenticidade” dos seus rituais, festas, tradições e demais referentes culturais que, mediante um processo de valorização e activação, se transformam em recursos turístico-patrimoniais.

Num contexto de globalização, as condições económicas, sociais, políticas e culturais são parte integrante de um sistema-mundo no qual estado e indivíduo perdem grande parte da sua autonomia para um sistema de conexões mundiais. Assim, e ao mesmo tempo que se verifica uma tendência para a universalização ou “mundialização da cultura” (Warnier, 2000), subsistem modalidades de identificação particulares (Hall, 2002), que articulam os referentes culturais locais com aqueles que são importados. Com efeito, face às tendências de homogeneização cultural assiste-se frequentemente, por parte do poder local, a um resgate do passado, (re)construído pelo presente mediante a patrimonialização dos elementos culturais locais. Neste contexto, muitos autores notaram que as sociedades contemporâneas carecem de uma ligação afectiva às referências do passado, padecendo do que designam como “amnésia colectiva” (Assmann, 1995; Hervieu-Leger, 2000 Huyssen, 1995), em virtude do seu distanciamento e alheamento em relação ao passado. Lowenthal (1985) fornece uma explicação para este fenómeno ao considerar que o passado se encontra de tal forma encenado e afastado do momento presente, que é, para as sociedades contemporâneas, “um país estrangeiro”, consumido e vivido como uma imagem idealizada, romantizada e neutralizada da história.

Assim sendo, não só o passado é recuperado, como também são exaltadas todas as actividades e expressões que se possam converter num instrumento ao serviço do fortalecimento da identidade de uma comunidade. Estas iniciativas, protagonizadas por vários actores, com particular destaque para os agentes políticos locais, assumem para além de uma vertente identitária, um carácter instrumental, pois permitem contribuir para a legitimação dos poderes instituídos, uma vez que a oferta de bens e actividades culturais responde aos anseios de uma população carente de vínculos de identificação, para com o território, com o passado e com os restantes membros do colectivo promovendo, deste modo, o consenso social.

Cultura, identidade e património


Na acepção clássica do conceito, o património reportava a uma herança, um legado que era recebido dos nossos antepassados, e que deveria ser transmitido às gerações futuras (Garcia, 1998). Desta forma, a herança cultural contribuía para uma certa estabilidade, permanência e continuidade dos referentes culturais que, ao mesmo tempo que permitem estabelecer uma ponte simbólica entre o passado, o presente e o futuro, promovem um sentimento de filiação e pertença por parte dos membros do colectivo social.

No entanto, esta é uma abordagem reduccionista, no sentido em que não permite captar toda a complexidade inerente a este conceito. O património resulta, em primeiro lugar, de um processo de reconhecimento e selecção de determinados referentes, projectando-se e encontrando a sua justificação numa valorização que remete para o seu carácter simbólico, isto é, com a sua necessidade de preservação em virtude do significado que encerra para o colectivo, bem como para a sua rentabilidade social, ou seja, a sua utilidade e funcionalidade no plano social e económico. Assim, e para além da sua ligação ao passado histórico, o património funciona como uma ferramenta de formação identitária, um instrumento de afirmação e legitimação de grupos sociais e, ainda, como estratégia para a captação de recursos.

Com o advento das sociedades modernas, industrializadas e seculares, e com o consequente afastamento relativamente às anteriores modalidades de filiação, o património surge como um artifício criado no sentido do fortalecimento de uma pertença a um mesmo espaço simbólico, no âmbito dos processos de construção dos Estados-Nação. Com efeito, o património surge como uma invenção, uma construção da modernidade. Ao mesmo tempo que se atribui uma transcendência a determinados símbolos culturais que atestam do carácter singular de uma determinada comunidade, conferindo uma ilusão de permanência e continuidade em relação a um passado, constrói-se um ideal colectivo para o futuro. Neste sentido, o vínculo social básico necessário à construção de um sentimento de pertença colectiva, passa a assentar no princípio da semelhança cultural (Gellner, 1998) tendo por base uma cultura e uma história comuns, que unem e identificam uma população.

Os novos modelos de governação vieram, deste modo, conferir um novo significado aos testemunhos do passado como consequência da necessidade de demonstrar as especificidades de um povo, recorrendo para tal à busca incessante das suas raízes históricas e culturais no território que servia de suporte à nação, que conduzindo à patrimonialização dos referentes culturais que melhor demonstrassem esta continuidade, esta sensação de permanência e este sentimento de pertença, numa estratégia de representação nacional idealizada, face a uma ameaça de ruptura e desordem provocada pela heterogeneidade dos estados recém formados. Nestes contextos, era importante produzir discursos sobre o passado que salientassem, não só a singularidade e grandeza dos referentes culturais patrimonializados, mas também as suas origens remotas e a sua continuidade ao longo do tempo, promovendo um sentimento nostálgico em relação ao passado (Robertson, 1992), ao mesmo tempo que se apresentava como um recurso inestimável para a construção de um futuro.

O património é, portanto, uma construção social (Prats, 1997), um processo simbólico de legitimação social e cultural, baseado na selecção e activação de determinados referentes, que permite representar uma determinada identidade. Esta representação processa-se através do resgate de alguns referentes culturais, retirados de um conjunto mais alargado, que cumprem uma finalidade de identificação colectiva mediante a veiculação dos valores culturais próprios de cada sociedade, isto é, por ela seleccionados e construídos, em cada momento. Falar de património pressupõe, por isso, falar de identidades, na medida em que pode ser definido como uma síntese simbólica de valores identitários (Santana, 1998), que contribuem para um sentimento de pertença e de identificação de um colectivo social. Com efeito, esta capacidade de representação simbólica das identidades constitui um elemento central na actuaç definição do conceito de património.

Não obstante, e ainda que possa ser caracterizado como um processo de representação cultural baseado no passado e nas especificidades culturais locais, o património não deve ser confundido com a história ou com os testemunhos materiais e tangíveis do processo histórico, mas antes como uma interpretação ou recriação da história, uma história ficcionada que transmite mitos de origem e de continuidade, que para além de dotar um grupo de um sentimento de pertença comum (Lowenthal, 1998), contribui para a legitimação de das instituições sociais responsáveis pela sua activação.

Tendo em consideração a natureza construída e representacional do património, importa ainda destacar que, sempre que utilizamos os conceitos de património ou de identidade, estamos a referir-nos a construções ideológicas que não podem ser desvinculadas do momento histórico em que foram, ou são, construídas, bem como dos seus regimes de significação. O património é, assim, uma construção social, historicamente determinada, e em permanente reconfiguração.

 

Património, turismo e políticas culturais


As mudanças produzidas na segunda metade do século XX, relacionadas com o crescente desenvolvimento tecnológico e as suas repercussões ao nível dos meios de comunicação e de transporte de massas, juntamente com o êxodo rural, o crescimento das cidades e os grandes fluxos populacionais, provocaram uma transformação ao nível da relação que se estabelecia entre passado e presente, provocando um discurso de crise que conduziu a uma histeria do património e a uma incessante procura do espírito de lugar (Peixoto, 2002). Estes factores fizeram com que os processos de patrimonialização, frequentemente associados a expressões como “reinvenção do património” (Bourdin, 1984), “alegoria do património” (Choay, 1992), “paixão patrimonial” (Guillaume, 1980), “loucura patrimonial” (Jeudy, 1990) ou patrimomania” (Martin-Granel, 1999), se confundissem, frequentemente, com os processos de reterritorialização da cultura.

O passado é assim, e em função das circunstâncias e necessidades do presente, resgatado, interpretado, recriado, inventado e processado através da mitologia, das ideologias, dos nacionalismos, do romanticismo, do orgulho local e, mais recentemente, do marketing (Hobsbawm e Ranger, 1983; Lowenthal, 1998; Schouten, 1995). Como tal, o significado conferido ao património vai depender de uma multiplicidade de interesses e de circunstâncias, associados a processos sociais complexos, que incluem outros fenómenos para além da construção de identidades, como sejam o poder político vigente, as características do sistema educativo ou modo como as populações utilizam o seu tempo livre, factores que, em conjunto, contribuem para um novo relacionamento entre os actores sociais e os objectos culturais.

Esta valorização social do património fez com que, um pouco por todo o lado, se desenvolvessem acções no sentido do resgate e activação do património cultural, protagonizadas por vários agentes locais, em particular, pelos poderes instituídos. Estes vêm aqui uma oportunidade de rentabilidade simbólica, através da legitimação das suas opções políticas, bem como de rentabilidade económica, mediante a utilização do património como factor de promoção local e captação de fluxos turísticos e, como consequência, de desenvolvimento local. Em ambos os casos, esta aposta no património irá ao encontro de interesses político-eleitorais, destinados à legitimação social do poder vigente.

Obviamente que, no contexto da sociedade plural em que vivemos, a activação patrimonial resulta de um processo complexo de negociação entre variados actores sociais, que incluem os técnicos, os académicos, a população local e os políticos, ainda que consideremos que esta activação depende, fundamentalmente, da acção dos poderes políticos, pois são estes que detêm os meios necessários para a elaboração e veiculação de um repertório discursivo, que tem por base a selecção de determinados elementos culturais, a sua ordenação e posterior interpretação.

No que se refere a esta selecção de elementos culturais, as políticas culturais autárquicas, responsáveis pela maior parte dos processos de patrimonialização de carácter local formulam, com frequência, os seus discursos patrimoniais com base na sobrevalorização pré-existente dos elementos culturais fortemente vivenciados pelas respectivas populações, na medida em que são estes elementos que permitem delimitar simbolicamente as suas fronteiras relativamente às localidades envolventes.

Esta valorização faz com que as populações reclamem a constituição de elementos patrimoniais percepcionados como símbolos das suas vivências singulares. O mesmo é dizer que os elementos culturais, patrimonializados pelo poder político, remetem para a existência de uma hierarquia de valor que é fruto de processos identitários. Assim sendo, poder político e sociedade participam num processo de negociação, constante e permanente, com a finalidade de alcançar o maior grau de consenso possível em torno do discurso patrimonial, procurando estabelecer uma correspondência entre o mesmo e a realidade social conforme é percepcionada pela comunidade.

Mas para além da valorização do património resultante da sua dimensão identitária, verifica-se um outro tipo de valorização produzida na sequência da associação quase mecânica, embora frequentemente infundada, entre património e desenvolvimento, que conduz a reflexões em torno de um desenvolvimento local que é mais imaginário do que real, baseado em práticas de sustentabilidade que são, muitas vezes incoerentes. Raramente se realizam estudos de viabilidade que permitam sustentar a relação directa entre património→turismo→desenvolvimento, não se prevendo os recursos económicos necessários para a manutenção dos bens patrimoniais activados ficando, deste modo, por concretizar o tão apregoado desenvolvimento. Em grande parte dos projectos turístico-culturais é possível encontrar lacunas no que se refere aos seus fundamentos teóricos e metodológicos, que são frequentemente suplantados pela adopção de pressupostos infundados relacionados com os benefícios que são esperados, e que são veiculados nos discursos dos vários actores sociais, económicos e políticos.

Num contexto de competição crescente entre cidades e localidades pela captação de investimentos exteriores, as culturas locais, regionais e nacionais, bem como o seu respectivo património são explorados para a publicitação das suas características distintivas no novo contexto global. A sua função simbólica e de representação adquire, neste domínio, uma importância significativa no que se refere aos processos de criação de imagens ao serviço da promoção local, assumindo-se cada vez mais como uma variável estratégica,  ao nível do desenvolvimento e da promoção local.

Assim sendo, em zonas já de si turísticas, o património transforma-se numa mais-valia para a oferta, sendo que a sua rentabilidade política será avaliada em função da sua capacidade para criar ou aumentar os fluxos turísticos, bem como pela criação do designado “turismo de qualidade”, enquanto que em zonas não turísticas, o património cumpre com finalidades simbólicas, identitárias e de melhoria da qualidade de vida da população local, sendo que nestes casos torna-se mais complicado efectuar uma avaliação dos resultados alcançados pelos projectos turístico-patrimoniais.

No que se refere à activação de recursos patrimoniais e à sua transformação num produto turístico, como seja o “turismo cultural”, as autarquias locais são guiadas, fundamentalmente, por objectivos políticos. Com efeito, o investimento nas intervenções patrimoniais é relativamente baixo, quando comparado com os elevados dividendos eleitorais que daí podem resultar. É por esta razão que a activação patrimonial é quase sempre eficaz, face ao elevado nível de consenso social gerado em seu redor, da sua notoriedade, visibilidade e prestígio. Neste sentido, sempre que os critérios de valorização do património legitimam algum objecto, lugar ou manifestação, o elemento patrimonial passa a ser considerado como um bem de interesse público, e a sua recuperação, conservação e activação acaba por se transformar num imperativo para o poder político local (Prats, 2003).

Muitos dos projectos turístico-patrimoniais tendem, por isso, a sobrevalorizar o património, perspectivado como uma panaceia para o desenvolvimento local, prevendo uma procura turística muito superior aquela que efectivamente se irá produzir, sem contudo desenvolver estratégias no sentido da criação de um produto turístico integrado, baseado na realização de um diagnóstico sistemático e aprofundado das suas potencialidades e debilidades, na avaliação da sua viabilidade, e da exequibilidade dos seus objectivos.

Conclusões


O património, enquanto operação simbólica, não deve ser confundido com a cultura, constituída pela acumulação da experiência cultural humana em toda a sua profundidade e diversidade. Porém, enquanto síntese simbólica, o património fornece elementos de significação cultural, particularmente relevantes num contexto de globalização onde coexistem leituras diferenciadas, permitindo situar-nos em relação ao passado quando, muitas vezes, já nada resta dele.

Através do património, os poderes políticos fazem uso de uma linguagem, baseada na utilização de um repertório simbólico, que pela sua capacidade de penetração no tecido social, permite exprimir e legitimar a sua autoridade, ao mesmo tempo que fornece os referentes identitários necessários à construção de uma ilusão de permanência no espaço e no tempo globais. Por outro lado, as acções de patrimonialização e a criação de produtos turístico-patrimoniais, assumem ainda um carácter instrumental, de legitimação dos poderes instituídos, ao mesmo tempo que permitem configurar as opções estratégicas em torno de uma suposta política de desenvolvimento e afirmar o respectivo território simbólico nas escalas de prestígio dos destinos turísticos.

Não obstante, o desenvolvimento local só será efectivo com a participação de todos os agentes, e não só os poderes políticos e económicos, de forma a criar um produto turístico integrado, baseado na realização de um diagnóstico sistemático e aprofundado das suas potencialidades e debilidades, na avaliação da sua viabilidade, e da exequibilidade dos seus objectivos.

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