PONENCIAS

Da academia à TV: os Agudás no Carnaval

Produtos midiáticos e o mundo do samba

Haydée Dourado de Faria Cardoso e Lílian Sagio Cezar**

Resumo:

Os processos de preparação de desfiles de escola de samba e sua transmissão pela televisão ocorrem em uma mútua relação que alimenta a elaboração de considerável número de produtos midiáticos. Teria o mundo do samba realizado tais concessões aos produtores midiáticos a ponto de abrir mão de suas características e “tradições”? Empreende-se aqui um entrecruzar de perspectivas distintas relativas ao campo de estudo que se atém, por um lado, sobre os meios e processos comunicacionais e, por outro, ao saber antropológico que, especialmente nas últimas décadas, vem se desenvolvendo, a partir de experiências de campo em situações de rápida mudança.   

O texto a seguir realiza reflexões sobre o processo de transposição entre ”linguagens” distintas, a partir de um estudo de caso: as transmissões televisivas do desfile da Escola de Samba Unidos da Tijuca, realizado com base no livro “Agudás, os ‘brasileiros’de Benim”.

“Agudás, os ‘brasileiros’ de Benim” (2000) é fruto da tese de doutorado em antropologia defendida por Milton Guran junto a École des Hautes Etudes en Sciences Sociales na França, em 1996, financiada por meio de bolsa de estudos Capes-MEC. Para sua realização, o autor optou por utilizar a fotografia como instrumento de pesquisa em ciências sociais, principalmente no tocante ao seu uso no estudo e investigação da formação da identidade cultural dos agudás.

A designação Agudás nas línguas iorubá, fon ou mina, refere-se aos benineses que possuem sobrenome de origem  portuguesa. Em sua maioria trata-se de descendentes de traficantes de escravos, de comerciantes brasileiros ou de portugueses estabelecidos naquela costa africana, ou ainda de descendentes de antigos escravos retornados do Brasil. Existem também aqueles cujos ancestrais nunca tiveram ligação com o Brasil, embora estejam social e economicamente ligados aos ‘brasileiros’ do Benim, e foram  absorvidos pela dinâmica cultural destes. “Entre os aspectos mais notáveis da contribuição cultural dos agudás podemos citar: a família patriarcal mononuclear e o uso de sobrenome; o catolicismo e as festas religiosas, como a do Senhor do Bonfim e de São Cosme e São Damião; novas técnicas agrícolas e novos hábitos alimentares, como a mandioca, a feijoada, o cozido, a cocada, etc.; a utilização de talheres e outros utensílios da vida doméstica; técnicas de construção  e um novo estilo arquitetônico e de ocupação do espaço doméstico; técnicas de carpintaria, marcenaria, etc.”(Guran, 2000, p. 17).

            Dentre os diversos brasileiros, provenientes em sua maioria da Bahia, estabelecidos em Benim por conta de interesses comerciais diretamente ligados ao tráfico de escravos, Francisco Félix de Souza merece consideração especial devido ao seu imenso poder, exercido sobre toda a Costa dos Escravos na primeira metade do século XIX (Souza, 1992,  e Turner, 1975,  in Guran, 2000, p.22). Após ter sido preso pelo rei daomeano Adandozan, Francisco fez um pacto de sangue com o príncipe Gakpé, irmão mais jovem do rei, a fim de fugir e ajudar o príncipe a destronar seu algoz. Após um bem sucedido golpe de estado, Gakpé assumiu a coroa com o nome de Guêzo e consagrou seu irmão de sangue Francisco Félix de Souza vice-rei de Uidá, com o título de Chachá e o direito de monopólio sobre todo o tráfico de escravos de Daomé. O pacto de sangue entre o rei e o negreiro era, segundo Guran (2000), antes de tudo um pacto político e comercial que possibilitou aos brancos traficantes de escravos deixarem de ser estrangeiros para se integrarem ao pacto social e político do reino de Guêzo, com um papel de primeira grandeza na estratégia de poder por representar a abertura da negra etnia fon ao mundo ocidental e sua concomitante afirmação enquanto potência hegemônica da região.

Somente a partir do pacto social entre o rei, representando a aristocracia local e o traficante de escravos na figura do Chachá,  que encarnava o poder econômico em ascensão, criaram-se condições mínimas de segurança econômica indispensáveis à manutenção dos agudás naquela região: brancos traficantes de escravos; ex-escravos negros ali retornados seja por ocasião da deportação do Brasil dos escravos da etnia malê devido à revolta ocorrida na Bahia em 1835; seja de outros, libertos no Brasil via aquisição da liberdade com a compra da carta de alforria ou da abolição da escravatura. A partir de 1989, o processo de democratização do Benim proporcionou a revalorização das chefias  ditas tradicionais, dos cultos vodus e das demais manifestações religiosas. Paradoxalmente, tal valorização das chefias tradicionais, no caso específico dos agudá, permite, ainda segundo Guran, compreender “como eles se inscreveram entre os principais atores da transição entre as sociedades tradicionais e a construção de um Estado moderno” (...) O principal aspecto a  se destacar é que a bricolagem de uma nova identidade étnica permitiu a inserção social dos antigos escravos retornados, agora na qualidade de cidadãos de plenos direitos. Na verdade, essa inserção foi possível de uma parte porque a sociedade no seu conjunto estava em processo de evolução no sentido da própria cultura trazida por eles, e, de outra, porque a admissão destes excluídos era absolutamente necessária para tornar possível e mais efetiva esta evolução. Os agudás primeiramente foram os intermediários entre as sociedades tradicionais e a cultura ocidental, para tornarem-se logo os intérpretes dos autóctones junto ao poder colonial e inversamente. Misturados e imbricados com as sociedades tradicionais por meio do casamento, “sempre o cavaleiro entre várias culturas, eles têm desempenhado ainda o papel de intermediários no interior dos diferentes grupos étnicos autóctones, inscrevendo-se sempre como um dos principais atores do processo de construção de um Benim moderno” (2000, p. 276).

No desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro de 2003, a Unidos da Tijuca escolheu como idéia condutora do samba-enredo a realização de uma adaptação do livro acima delineado: “Agudás, os ‘brasileiros’ do Benim”. Para tanto, o carnavalesco Milton Cunha utilizou o livro de Guran como fonte primária para o planejamento do desfile. Consultas em outras fontes bibliográficas citadas por Guran; reuniões com o autor da pesquisa acadêmica; trocas de telefonemas e e-mails intercontinentais com os “brasileiros” do Benim somaram-se às muitas negociações entabuladas entre a equipe do carnavalesco e a comunidade que produziu o desfile (definição de comunidade numa escola de samba e discussão do papel do canavalesco: Cardoso, 2003). Dezenas de compositores da Escola de Samba debruçaram-se sobre o tema propondo mais de dez sambas-enredo. Afinal, depois de sucessivas apresentações eliminatórias na quadra da escola, foi escolhida como finalista do concurso para a escolha de samba-enredo a composição de: Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria, intitulada: "Agudás: Os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África, o Brasil”.

A análise da transmissão televisiva do desfile da Unidos da Tijuca procurou entender como idéias, selecionadas a partir do livro, foram representadas por meio das alegorias, fantasias e samba-enredo, sendo filmadas e divulgadas pela TV. Verificamos se essas mensagens se inscreveriam no tradicional âmbito de padrões simbólicos historicamente comuns aos sambas-enredo.

 Os processos de produção e de transmissão televisiva dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro engendram elaboração de toda uma gama de produtos midiáticos de repercussão mundial, a ponto da expressão Escola de Samba tornar-se uma grande marca com ramificações várias. Escolas de Samba foram criadas na Europa, Estados Unidos, Japão. Com o desfile das Escolas no carnaval, a renda revertida para a cidade do Rio de Janeiro, por meio do turismo e de contratos milionários de lanchonetes, camarotes, propagandas, somaram cerca de 500 milhões de reais em 2003. Cachaças especiais e camisetas com as marcas das Escolas são vendidas nos aeroportos por loja de grife. As vendas dos CDs dos sambas-enredo do ano de 2003 e dos direitos de imagem para TV somaram  mais de 10 milhões de reais (Carta Capital, 12/03/2003). O desfile é transmitido em tempo real para televisões de dezenas de países.

Vale ressaltar que os desfiles são planejados de maneira a comunicar ao público presente e, mais recentemente, aos telespectadores, mensagens relacionadas ao samba-enredo escolhido para a composição da apresentação na avenida, onde cada ala, fantasia, alegoria, coreografia, carro-alegórico, etc., constitui-se em peça do esquema narrativo proposto pela Escola. A compreensão das relações estabelecidas entre o mundo do samba, a comunidade dos sambistas, e a mídia implica que lancemos mão de algumas considerações teóricas que nos permitam analisar como o conjunto de significados é transmitido e desenvolvido, e como a ação humana é mediada por diferentes projetos culturais que se desenrolam nos complexos contextos dos processos sociais. Assim, partindo da ênfase na observação de comportamentos concretos e práticas cotidianas das diversas instâncias que se situam nesses dois mundos, focalizamos a atuação de grupos sociais, possibilitando dessa maneira, análises que consideram conjuntamente ação e representação  no contexto específico em que se desenvolvem através do tempo. A tarefa do intelectual aqui é realizar um trabalho de reconstrução de códigos empregados em ambos os mundos, tendo a noção de que os espectadores utilizam em sua compreensão esquemas práticos que não afloram enquanto tais à consciência (Bourdieu, 1996). Essa reconstrução deve levar em consideração o fato de que pessoas têm seus processos de percepção, imaginação, recordação, etc., de acordo com suas condições  e locais onde vivem (Geertz, 1998).

Apresentamos a seguir uma breve análise das imagens do desfile da Escola de Samba Unidos da Tijuca no carnaval de  2003. Antecipando a apresentação do carro Abre Alas, que geralmente anuncia o enredo e traz as insígnias da Escola, apresentou-se a Comissão de Frente composta de doze negros altos e vistosos, que segundo o comentário realizado durante a exibição das imagens, ensaiaram exaustivamente a coreografia dirigida pelo profissional da dança Nino Giovanetti. A comissão de frente trajava fantasia de pregoeiros, “negros de ganho”, os escravos vendedores de roletes de cana, doces e comida que percorriam as grandes cidades do Brasil colonial e ganhavam porcentagem do que vendiam de seus senhores. Economizando, muitos dos negros de ganho compraram sua alforria, tornaram-se libertos e voltaram para o Golfo do Benin. A fantasia, visivelmente inspirada em Debret e Rugendas, traz calças brancas, blusas de amarelo ouro com enfeites em azul (as cores da Escola), babados, turbantes e os componentes carregam grandes cestas de palha decoradas e cachos de bananas estilizados. Dois desses componentes trajam saias, como a vestimenta tradicional africana, e têm em seus torsos as escarificações características dos fiéis do candomblé.

O carro Abre-alas trouxe o nome da Escola em destaque: “Unidos da Tijuca” ladeando um grande globo terrestre em tons de azul e prata. Grandes esculturas de pavões cercavam os mapas do Brasil e da África que se moviam ora se aproximando, ora se afastando, sugerindo tempos anteriores à divisão dos continentes pelos mares. Na parte inferior do carro estavam dispostas grandes caveiras feitas em isopor, pintadas de dourado escuro, de olhos luminosos, escondendo a armação que sustentou o carro alegórico. Esse carro simbolizou a translação do oceano feita pelos africanos traficados como escravos para o Brasil e o posterior regresso dos mesmos, agora livres, para Benim.

 O próximo carro alegórico se intitulava Temor e Proteção ao Anel de Dagoun, referência ao mito protetor constituído em torno do dragão por Francisco Felix de Souza, o primeiro Chachá. Um dragão de longo pescoço suspenso movia-se de um lado para outro, onde um destaque feminino se apresentou sentado como se o estivesse cavalgando, esse carro trouxe na sua parte inferior dragões em espuma colorida como um arco-íris. Os efeitos especiais concentraram-se nas fortes luzes que iluminaram todo o carro dando destaque especial à cabeça do dragão.

Atravessando o Mar de Yemanjá foi o carro apresentado a seguir, composto por vários planos onde se apresentaram ao alto os destaques vestindo as fantasias especiais ricamente ornadas com plumas e brilhos, e à frente a personagem principal do carro, uma linda mulata vestida de verde claro, descalça, sendo sua calça constituída de pano  transpassado no meio das pernas, referência que  remete às roupas usadas pelos escravos na lida diária. Yemanjá é a rainha do mar na tradição yorubá/brasileira, e testemunha do exílio forçado para o Brasil e da travessia de volta dos agudás. Isso justifica que a base deste carro se referisse ao mar por meio da estrutura encoberta por panos esvoaçantes, que  davam  ilusão de que os adereços estavam flutuando.

Os dois outros carros que vinham acoplados a seguir chamavam-se Quem Chega a Porto Novo – Malês e a Grande Mesquita. Por problemas operacionais foi necessário desacoplar os carros, que não fizeram a curva da rua para entrar no Sambódromo. Posicionado à frente, o primeiro desses carros representou um grande navio que mostrava os dançantes caracterizados de escravos, trazendo no casco da embarcação a seguinte inscrição: Deportação Malê, numa referência aos revoltosos escravos malês da Bahia que foram deportados para África após a repressão a tal revolta. O outro carro representa uma mesquita em referência à religião muçulmana dos negros mandês, chamados no Brasil de malês.

O desfile prosseguiu com o carro A Irmandade dos Descendentes do Senhor do Bonfim, que apresentou grandes cabeças prateadas com figuras de homens africanos com tranças no que hoje se conhece como estilo rastafari, e máscaras de carnaval, encimadas por destaques vestidos com ricas fantasias emplumadas, nas quais se destacavam  as cores: azul, palha, abóbora e preto.

O sétimo carro da Unidos da Tijuca chamava-se A Herança Agudá é  Mistura de Raças e Povos e trouxe esculpida a cabeça de um grande leão de pedra azul encimado por destaques fantasiados com plumas marrons, vermelhas e laranjas, ladeados por torres que representavam bananeiras estilizadas, também coroadas por destaques ricamente ornados. Canas-de-açúcar serviram de apoio aos destaques que desfilavam em cima do carro.

Ainda na concentração quebrou o último carro da escola, denominado Carro do Cachá VIII. O pessoal da organização tentou guinchá-lo para que desfilasse fechando a apresentação, porém, os esforços não solucionaram o problema, o carro foi abandonado e seus destaques passaram a desfilar no chão. A proposta inicial dessa alegoria era representar o Chachá e a confraternização de diversas etnias em África, festa que ocorreu no Benim em 1996 e contou com a participação de diversos músicos brasileiros.

            Uma característica da edição realizada pela TV Globo das imagens dos desfiles das Escolas de Samba em 2003 dificultou o trabalho do pesquisador: a transmissão televisiva não seguiu a ordem cronológica da apresentação da escola no que diz respeito à relação alas/carros. Assim, passamos a verificar como os diversos elementos alegóricos e coreográficos usados pela escola foram usados para comunicar os diversos aspectos e elementos que compuseram o tema central do desfile. 
Diversas alas apresentaram-se na opção de figurinos econômicos, com muita palha e tecidos leves, máscaras em isopor, detalhes em espuma esculpida, em conjuntos compostos com criatividade e leveza e freqüentes referências a símbolos da cultura afro-brasileira.

A ala denominada Atravessando o Mar de Yemanjá trouxe baianinhas vestidas em azul claro e prata, com o característico laço do orixá Oxum no peito. Saias com tons de verde para as meninas que representaram as brasileiras, saias com tons de vermelho para as que representaram as africanas. A ala de componentes intitulada Navio Negreiro (nome de célebre poema do abolicionista Castro Alves), também com fantasias leves e vistosas, trouxe representações de caravelas nos chapéus. A ala Cozidou e Muquecah, nomeada desta forma para remeter às palavras em português afrancesado faladas pelos agudás ainda hoje no Benin, apresentou fantasias que enunciaram a presença da cozinha baiana no cotidiano daqueles descendentes em África, com frutas e o côco do dendê estilizados.

A ala Foi Acarajé e Voltou Feijoada apresentou feijões em resplendores e chapéus com pequenas esculturas de cabeças de porco, com colares de acarajés. A ala Arlequim no Carnaval Africano mostrou uma grande máscara africana estilizada no torso dos componentes e a pintura branca no rosto, maquiagem esta que tanto pode ser referência à figura do arlequim clássico da Commedia Dell’ Arte, como citação à tradicional pintura branca que fazem muitas etnias africanas daquela região em seus rituais. Ala Obatalá, Lissá, Oxalá, Bonfim desfilou fantasia  fluida em prata, com três esculturas em cada resplendor representando a famosa Igreja do Senhor do Bonfim. A ala Leão Brasileiro apresenta esse animal totêmico da África, com Leões esculpidos nos chapéus.  A ala Antílopes do Trono do Rei representa, por meio das esculturas nos chapéus, esses animais, simbolizando os antigos nagôs de Ketu, aqui posteriormente denominados Yorubás. A ala Fons e o Machado de Eviossô evoluiu com coreografia previamente ensaiada, os componentes portavam alegorias de mão na forma de grandes machados duplos característicos de Xangô, na cor de fogo deste orixá.

À bateria, segundo a comentarista do desfile, foram oferecidas quatro opções de figurinos, e os músicos optaram pela fantasia de felinos, de grande efeito visual apesar de serem bastante leves. Ritmistas apresentaram-se com movimentos da  makossa, dança africana. Do total de 250 músicos, 120 tocavam caixas, e o fato dos tocadores de caixa não trazerem os talabartes, faixa de couro que se põe a tiracolo para apoiar os instrumentos no corpo, rememora um antigo costume entre os sambistas brasileiros que, diz a tradição, carregavam as caixas na frente de seus rostos, dispensando o auxilio dos talabartes, para evitar que a policia reconhecesse os foliões na época em que o samba era oficialmente proibido.

A tradicional ala das Baianas trouxe a fantasia O Pavão Tijucano e o Destino Africano, onde estavam simbolizadas quatro formas de adivinhação de tradição africana: o cordão de Kelê, o jogo de búzios na peneira, o jogo de noz de cola, a tábua de Ifá. O pavão aparecia estilizado no chapéu e num dos braços da fantasia, sendo ainda a saia encoberta por penas que remetiam à mesma ave. A velha-guarda estava vestindo terno ou tailleur azuis com enfeites de cabeça amarelos.  Como é habito na maioria das Escolas, a ala da velha-guarda desfilou encerrando a apresentação da escola.

O primeiro casal de porta-bandeiras e mestre-sala vestia as cores palha, preto, abóbora e vermelho. Ambas as fantasias bordadas foram elaboradas com enfoque original que foge ao tradicional peso barroco deste tipo de fantasia e remete para os tons e sofisticação da simplicidade que normalmente são atribuídos ao estilo “étnico africano”.  Traziam resplendor nos quais leves plumas pretas e de cor palha acompanhavam os passos do casal de maneira a dar fluidez aos movimentos. A saia reta da porta bandeira era da cor palha com detalhes em preto e tinha o amplo diâmetro da barra revestido por camadas de plumas de cor abóbora e vermelha. Desfraldaram a bandeira principal com as cores da Escola: azul e amarelo.

   O segundo casal de porta-bandeira e mestre-sala vestia as cores tradicionais da Unidos da Tijuca em tons pastéis, usando modelos realizados no tradicional estilo rainha da antiga aristocracia européia. A saia da porta-bandeira era feita com largos gomos trabalhados nos tons dourado e azul-claro. Da mesma maneira a roupa do mestre-sala era rebuscadamente composta com esses mesmos tons. Desfraldavam a tradicional bandeira da Escola em Azul e Amarelo.

O presente trabalho possibilitou a identificação de relações estabelecidas entre os meios de comunicação como a TV, e meios de comunicação constituídos pela prática ritual organizada através de comunidades específicas (no caso as comunidades do samba) que se evidenciam durante a apresentação pública do desfile (Cannadine, 1984).

 Às comunidades de sambistas interessa o jogo com as empresas que elaboram produtos midiáticos, e com estas interagem reformulando seus espetáculos, devolvendo novos e originais desfiles a cada ano, que alimentam a elaboração de novos produtos midiáticos, numa espiral crescente: um lado da equação sustenta o outro.

As relações que a Liesa, as Escolas, o mundo do samba tecem com as diversas instâncias da mídia asseguram-lhes a ampliação do espaço público. Como discute Canclini, o crescimento vertiginoso das tecnologias audiovisuais de comunicação tornou patentes as mudanças no desenvolvimento do público e no exercício da cidadania. Atualmente, ressalta o autor, o novo cenário de mudanças sócio-culturais aponta para uma redefinição do “espaço público”. A importância que os meios de comunicação assumiram na vida das sociedades “põe em evidência uma reestruturação geral das articulações entre o público e o privado” (1997, p.26-27). Estas articulações ocorrem também no campo de relações entre a circulação dos produtos fabricados pelas grandes empresas da mídia e os produtores do que se poderia denominar uma cultura local, regional ou popular. O antes chamado “espaço público” vai lentamente se redefinindo na direção do espaço de comunicação que as grandes empresas da mídia empenham-se em estabelecer. Citando Alejandro, Canclini nota que a esfera pública é “um campo de tradições em concorrência”, “um espaço de heteroglossia” em que “certos significados e tradições são fortalecidos” (1997, p. 253).

O processo de construção simbólica que acontece por meio dos desfiles das escolas de samba sofre também influências e pressões por parte de empresas diversas, órgãos públicos e empresas midiáticas que representam grandes interesses comerciais. Estabelecem-se então, uma série de articulações, marchas e contra-marchas entre as comunidades do samba e tais empresas, onde se verifica a reelaboração de mensagens essenciais à comunidade através de sua tradução e retradução nas mais diversas formas de “linguagens”: dança, música, adereços, etc.. Os sambistas têm na criatividade do uso dessas “linguagens” modos de recriar e produzir sua tradição sem deixar de corresponder aos interesses econômicos diversos aos quais estão constantemente expostos.

As imagens das transmissões televisivas dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro em 2003 foram exibidas por uma única rede de TV aberta e seguem uma estrutura que simultaneamente organiza e conduz o olhar do espectador pelas diversas alas e carros alegóricos que compõem essas apresentações carnavalescas. Esse fato implica numa hegemonia exercida por esta rede na maneira de mostrar o carnaval, que vai desde a obtenção de imagens, gravação, edição, locução até aos  comentários das imagens por ela veiculada. Analisando em estudo de caso o desfile da Unidos da Tijuca de 2003, verificamos que tais imagens nem sempre são apresentadas de maneira linear, seguindo a organização original da Escola na passarela. A edição da imagem faz com que grandes cortes entre diversas alas e carros alegóricos distintos e não continuados sejam apresentados numa mesma seqüência, o que muitas vezes pode alterar os sentidos e significados propostos pelo enredo e alegorias. Percebemos também que ora são veiculadas legendas com o nome das alas e dos carros, ora as legendas são suprimidas, bem como alas inteiras aparecem somente de relance nas imagens. Ocorre freqüentemente falta de sincronia entre o áudio, que traz comentários sobre um carro ou elemento que já não está em foco na imagem.

A transposição das “linguagens” usadas no desfile através da representação do samba-enredo, composta de dança, batuques, carros, fantasias e adereços para narrativas imagéticas já é complexa por definição. Soma-se a isso o fato das transmissões televisivas, ao vivo, não seguirem os esquemas narrativos elaborados pelas Escolas de Samba, que desenvolvem uma opera épica seriada. Nesta, a ordem dos carros e das alas é minuciosamente planejada para contar uma história. Como se diz no mundo do samba, o desfile transcorre de forma que “cego veja e surdo entenda”, isto é, ambos possam acompanhar a seqüência de música e imagem (Araújo, 2000). Na transmissão do desfile, monopolizada por uma rede de televisão, é o olhar do editor que conta principalmente. Os cortes que o editor determina, por exemplo, para inserções de entrevistas, flashes de passistas ou celebridades “artísticas” por coincidência pertencentes ao elenco da mesma emissora, podem fazer com que o telespectador perca a referência seqüencial dos ocorridos na proposta da Escola.

A reflexão sobre as inter-relações que ocorrem no âmbito de interesses exógenos e endógenos que circulam entre Escolas de Samba e mídia, destaca alguns elementos do processo através do qual as comunidades de sambistas interagem com empresas do universo midiático. Os sambistas renovam criativamente suas apresentações a cada ano e assim fomentam a elaboração de novos e diversificados produtos midiáticos. Num jogo de dupla mão de direção, a mídia influencia a elaboração dos espetáculos carnavalescos, e estes, também respondendo às necessidades mercadológicas, ampliam o âmbito da divulgação de suas mensagens.

Os processos culturais são dinâmicos, tanto no universo da mídia como no desenvolver das culturas de elite e das culturas populares. A observação do desfile da Unidos da Tijuca, que desenrolou em 2003 um enredo descrevendo o tráfico dos escravos africanos para o Brasil e o regresso de negros libertos para o Benim, no coração da África, onde construíram uma cultura própria com fortes características brasileiras, é exemplo contundente de troca entre culturas, culminando na interpenetração e hibridismo do qual também somos, enquanto brasileiros, um dos resultados. Não são necessários malabarismos interpretativos para perceber que o bem resolvido texto do samba-enredo exalta costumes das culturas africanas, pois 14 de seus termos são expressos em línguas de África, como agudás, Orunmilá, axé, Yemanjá, Obatalá. Espumas flutuantes, título de poema de Castro Alves, consta do samba como a descrever o mar. Implícita, a referência, metafórica como se faz nos sambas, às lutas abolicionistas. O texto destaca também a união entre africanos e brasileiros, afirma que “a união é bonita, a gente acredita na força do irmão” e canta “é raça, é povo e se mistura”. Os meneios dos componentes, com suas fantasias e alegorias, deram ginga às palavras e enfatizaram, por entre cores e esculturas,  a celebração alegre da mistura de povos. Processos de percepção da comunidade dos sambistas, que funcionam de acordo com as condições e locais onde vivem, como quer Geertz, certamente têm papel central na ênfase com que a Escola celebra a mãe África
As mensagens trazidas pela Escola na apresentação sobre os Agudás, utilizando-se   da sofisticação tecnológica existente no mercado, como efeitos especiais de luzes e comunicação eletrônica de ultima geração, e mesmo empregando bailarinos profissionais para coreografar duas alas, são as mesmas mensagens que seus antepassados congadeiros dançavam nas ruas nordestinas desde  os idos dos anos 1600: homenageiam sua própria cultura,  lembram seus deuses, constróem sua visão de mundo, projetam futuros fraternos e abundantes (Cardoso, 2001).

Carros alegóricos e fantasias concretizam, sob os holofotes da mídia, mensagens ancestrais onde não faltam búzios, noz de cola e conchas para adivinhação do destino. Exibem também, orgulhosos, esculturas de felinos e antílopes, animais símbolos das dinastias ancestrais. As alegorias transmitem mensagens tão decodificáveis quanto os Lodokans, espécie de tapeçaria bordada com os animais estilizados, símbolos de longas dinastias, que os antigos governantes do Benin enviavam como embaixadas de um reino a outro.

Assim como os padrões culturais brasileiros foram atualizados em Benim através da vida dos agudás e da exibição da novela Escrava Isaura (Guran,2000, p. 274), o livro de Guran permitiu que a Unidos da Tijuca realizasse, com toda sua competência, uma releitura dos padrões de ascendência africana. Agora amplificados pela mídia, padrões culturais afro-brasileiros foram recriados e enaltecidos aqui, como sempre os sambas o fizeram, desde que o gênero se estabeleceu com este nome por meio da nascente indústria fonográfica brasileira, que principiava a divulgar este modo de cantar vivificado nos morros  e favelas do Rio de Janeiro em princípios do século XX.

“Sou negro e venci tantas correntes, a glória de quebrar todos grilhões”, canta o samba tijucano. Os desfiles carnavalescos não permitem que a lembrança da escravidão, página infeliz da nossa história, se faça tão desbotada na memória das nossas novas gerações: para isso mobilizam conhecimento, criatividade, luxo, ginga. Invadem com Espumas Flutuantes a Sapucaí e, concomitantemente, as telas de televisão pelo mundo afora.

Referências  Bibliográficas

ARAUJO, H. Carnaval, seis milênios de história. Rio de Janeiro, Gryphus, 2000

BOURDIEU, P. A Gênese Social do Olho.  As regras da arte gênese e estrutura do campo literário. São Paulo. Companhia das Letras, 1996
CANCLINI, N.G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 3a. ed.,1997.

CANNADINE, D. “Contexto, execução e significado do ritual: a monarquia britânica e a invenção da tradição”. In HOBSBAWN, E. e  RANGER, T. (orgs.).  A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984
CARDOSO, H. D. de F. "O Gesto, o canto, o riso: história viva na memória". Tese de Doutorado.1990. ECA/ USP.São Paulo.

______________. “Comunicação popular: samba-enredo e mídia” in Cadernos da Pós-Graduação. Instituto de Artes, ano 5, vol. 5. Campinas, UNICAMP, 2001
­­­______________. Produtos Midiáticos e o Mundo do samba. Relatório de Pesquisa. Vice-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. Unip. 34p. São Paulo, 2003
“Como ser rei no Rio de Janeiro”. In: Carta Capital. Ano IX, 12/03/2003, n. 231, pp.32-35.

GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis. Vozes, 1998.

GURAN, M. Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro. Nova Fronteira/Gama Filho, 2000.

NOTAS

  • Este artigo é fruto da pesquisa “Produtos midiáticos e o mundo do samba”, realizada por Haydée Dourado de Faria Cardoso  em 2003 e financiada pela Vice-reitoria de Pós-graduação da Universidade Paulista (UNIP).

** Haydée Dourado de Faria Cardoso é doutora pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, professora titular do Mestrado em Comunicação da UNIP e professora colaboradora da Pós-graduação em Multimeios no Instituto de Artes da Unicamp.

Lílian Sagio Cezar é mestranda em Multimeios na Unicamp.

 

 


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