PONENCIAS

REFLEXÕES SOBRE O MUSEU E SUAS MEDIAÇÕES 1

 

Fanny Longa Romero 2

 Kapui2002@yahoo.com

 

RESUMO:

O museu, como espaço de representação social, é mediado por diversas ordens simbólicas que lhe dão sentido e aportam conteúdo. Noções como espaço, tempo e língua podem ser consideradas como mediações que se articulam em torno da categoria museu e que possibilitam pensar o museológico, não só enquanto processo de adquisição, preservação e exposição do patrimônio cultural mas, ao mesmo tempo, como um processo permeado por narrativas e discursos a partir da relação homem, patrimônio e espaço social.  O presente artigo pretende examinar a noção museu em relação com algumas mediações simbólicas que se tornam presentes na sua própria configuração social.

 

PALAVRAS-CHAVE: museu, representação, espaço, tempo, língua, patrimônio, mediação, narrativas, Nova Museologia.

 

ABSTRACT:

The museum, as space of social representation, it is mediated by several symbolic orders that they give their give sense and they contribute content. Notions as space, time and language can be considered as mediations that pronounce around the category museum and that their make possible to think the museológico, not only while adquisition process, preservation and exhibition of the cultural heritage but, at the same time, as a process permeated by narratives and speeches starting from the relationship man, patrimony and social space. The present article intends to examine the notion museum in relationship with some symbolic mediations that if they turn present in her own social configuration.

 

KEY-WORDS: museum, representation, space, time, language, patrimony, mediation, narratives, New Museologia.

 

INTRODUÇÃO

 

Este artigo consiste numa reflexão sobre o museu e sua relação com algumas categorias simbólicas que mediam sua existência. O objetivo da análise é mapear noções como espacialidade-temporalidade e língua consideradas aqui como mediações simbólicas que dotam de sentido o museu e, por outro lado, corresponder tais categorías com o museal.

Refletindo sobre a palavra museu lembramos com Bakhtin (1990: 95) que toda palavra está permeada de um conteúdo ideológico. A conceituação de museu está relacionada com o seu papel social e as representações simbólicas que lhe são atribuídas como instituição social. Nesse sentido, atende a uma multiplicidade de significados que são construídos e negociados na relação homem, patrimônio cultural e cenário social. Dessa forma, pensamos com Godoy que os museus “refletem, de um modo mais ou menos evidente, os interesses, as interpretações de determinados grupos, capazes num dado momento histórico, de fazer valer a suas concepções de mundo” (1997: 95).

As observações de Godoy mostram uma tendência de conceituar o museu num nível de análise crítico que difere da interpretação tradicional de defini-lo só como o espaço de exposição do utensílio cultural e da representação de valores do elitismo social. Uma análise crítica de museu deve diferir, necessariamente, daquela que entende-o  como um  cenário de grande templo de conservação e exposição de objetos intocáveis e portadores intrínsecos de sentidos. Na atualidade, os museus parecem ter perdido a imagem de um lugar a-histórico para transformar-se em um espaço de contestação e transformação do social. De fato, o que está hoje em questionamento, tal como referem autores como Araujo (1997) e Fortuna (1997), é o sentido que lhe atribuímos a tais instituições e não só o próprio fato  da sua  existência. No entanto, do ponto de vista de Araujo, o lugar que o museu ocupa socialmente, não tem garantido resolver as questões que ficam sem resposta em relação aos objetivos e sentidos que deve ter perante a sociedade.

Por outro lado, Fortuna relaciona os museus com uma crise de identidade devido a uma mudança de sentido quanto às suas funções que, segundo o autor, estão atualmente mais próximas da idéia de um espaço público e de lazer do que da noção de espaço elitista. Para Fortuna, além, a crise de identidade dos museus, abarca a própria desvalorização cultural do objeto sendo que a reflexão museológica, centra-se na valorização do discurso e da narrativa. (op.ci.,. p. 137).

    Entenda-se que os objetos e, em geral, o patrimônio cultural tangível e intangível não possuem conteúdos intrínsecos de caráter essencialista, ao contrário, qualquer sentido que possa ter uma peça, um artefato ou a memória social de um grupo cultural são elaborações simbólicas construídas na areia das relações sociais, culturais e políticas. As significações do patrimônio cultural são construídas com certa intencionalidade, haja vista as diversificadas forças de poder e conteúdo ideológico das quais se nutrem. Um aspecto importante, que permitiu romper com a deificação do patrimônio cultural dentro da instituição-museu, foi a consideração da realidade social na análise do museológico. Em termos de representação do real, os indivíduos e a rede de relações em que estão inseridos são as forças que dotam de significações o patrimônio cultural e o cenário social em que os artefatos de cultura tangíveis e intangíveis são representados.

Conforme nos relata Santos (2001/2002),  a partir da década de 70, deu-se início a uma nova perspectiva de reflexão do museu. A IX Conferência Geral do Comitê Internacional de  Museus (ICOM) foi um dos principais marcos para o entendimento do papel do museu na sociedade. 3 Destaca-se nesta Conferência o papel ativo que o museu deve desempenhar como instrumento transformador da realidade. Em 1972, realizaram-se, além, dois eventos importantes. Num primeiro momento destaca-se a Mesa-Redonda de Santiago de Chile onde a premissa principal do debate era a ação museal e sua relevância em termos de intervenção social. A Conferência da UNESCO realizada nesse mesmo ano no Estocolmo e, que tinha como tema norteador o Meio Ambiente Humano, expandia de forma significativa as preocupações decorrentes da relação museu-homem, centrando-se nas questões de sustentabilidade, ecodesenvolvimento e políticas ambientais.

Note-se que tais eventos trazem à tona uma nova discussão das práticas museológicas e sua relação com uma problemática social que vai mais além da simples representação museográfica do patrimônio cultural. Para Santos (op.cit.), a partir da Mesa-Redonda de Santiago, inicia-se uma mudança de perspectiva de uma museologia tradicional para a criação de um movimento chamado Nova Museologia. Entre os aspectos mais importantes desta mudança destaca-se a discussão sobre o caráter do sujeito que, de uma posição contemplativa e passiva, passa a uma posição de sujeito ativo e agente capaz de transformar a realidade social. Por outro lado, abre-se a possibilidade de transpor o conceito de preservação para o conceito de apropriação e reapropriação do patrimônio cultural com visas a construir uma nova prática social. (op.cit., p.  266).

É importante  frisar que as discussões realizadas a partir dos anos 70 resenhavam não só  uma mudança do conceito e do papel social do museu, mas também do papel e função do museólogo, do patrimônio cultural e do museal. 4 Nesse sentido, incorporam-se os conceitos de museu integral, patrimônio global e museologia ativa para  dar  maior ênfase ao homem e sua capacidade de semantizar a realidade do que ao artefato cultural propriamente dito.

MUSEU E  REPRESENTAÇÃO DA ESPACIALIDADE

A categoria museu está, intrinsecamente, ligada às noções de tempo e espaço, entendidas estas não como meras alusões ao cronológico e  ao geográfico (físico), mas sim como construções culturais que permeiam os processos conjunturais da enunciação, subjetivação  e produção de identidades sociais.

A noção de espaço contém um conteúdo semântico  muito vasto tendo um  domínio de  aplicação na própria espacialidade das representações sociais que se instauram num plano temporal específico, mas que podem ser repensadas continuamente, à luz das mudanças e transformações da  ordem social na qual se  inscrevem. Num sentido amplo, entende-se aqui a espacialidade como um lugar e – um não lugar- marcado pela heterogeneidade, as  discontinuidades e o  diálogo das identidades individuais e coletivas.5

Nesse sentido, entende-se com Elhajji (2002: 178) que “a produção do espaço passa pela secreção de um  habitar que serve, ao mesmo tempo, de instrumento e de meio para a nossa corporeidade espacial e espacialidade temporal”. No campo museal, a representação da espacialidade pode ver-se como uma espécie  de locus narrativo constituído e construído pelos diversos sujeitos atuantes no processo museológico. 6 Portanto, o museu como espaço vivo e transformador da realidade, mas - ao mesmo tempo transformando-se continuamente- configura-se nos interstícios do tempo  e do espaço. 7

Mentor do tempo, e por isso, constituindo, em parte,  a memória coletiva dos povos,  o museu  é partícipe do próprio  ‘devir’ da cotidianidade  e dos saberes diferenciados. De fato, a representação do real, contextualizada  a partir desses saberes, gera inúmeras enunciações  da relação tripartisse espaço-museu-tempo. A relevância dessa relação consiste, justamente, nas leituras e re-leituras que o público e a instituição-museu (ambos co-participes do museal) fazem a partir de um certo tipo de  discurso museológico.

Uma noção analítica interessante para explicar o caráter do museológico é a de instâncias espaciais de enunciação usada por Elhajji (op.cit., p. 184), no entendido de  espaços narrativos da subjetividade individual e coletiva. Para esse autor, há uma estreita relação entre a identidade (no sentido  étnico) e a configuração do espaço. Nos termos de Elhajji “é a partir da sua apreensão do espaço que o grupo formula seu desejo diferencial”. Tal apreensão pode dar-se, tal  como  informa o autor, por meio  da reorganização de elementos  identitários através de novas ordens sociais. É evidente, que a apreensão de tais instâncias analíticas se desenvolve  numa areia de participações, interesses e mediações sujeitas a conflitos e relações de poder.

Nesse sentido, o espaço museu, é também interpelado por várias vozes e narrativas que vão muito mais além dos usuários assíduos ou não desse lugar. O museu compreende o ‘devir’  das minorias, dos  excluídos, dos letrados, dos medianamente alfabetizados e, também, dos detentores do poder nas instâncias econômicas, políticas e sociais. Esse devir, significando o estar acontecendo das identidades, é metamorfoseado nas representações socioculturais configuradas nos interstícios do espaço museal. Nas palavras de Sodré:
“... é preciso valorizar também outras fontes de sabedoria, eu me refiro à esfera oral, à dimensão oral de pessoas que são lideranças de comunidade, de mais velhos, de  mães de santo, de gente antiga mas que tem sabedoria. Não tem  ciência, mas tem sabedoria. Por que a sabedoria é importante? Porque a sabedoria vem do território, vem da maneira  de lidar com o território” (2000: 27).

Entenda-se que, para esse autor, o conceito de território não se reduz só ao espaço físico e delimitado geometricamente, mas ao lugar simbólico marcado pelo humano (op. cit., p. 22). Nesse sentido, não pode distanciar-se da reflexão museológica no que diz respeito ao reconhecimento e respeito pela diversidade em termos de saberes, de configurações identitárias, da atividade educativa, de leituras do museográfico, em outros palavras, da ação cultural.

Como instância de mediação,  a especificidade  do museu se  concretiza  por meio da representação, configurando-se no seu espaço diversos fluxos de significação da  atividade  e  do  conhecimento  humano. Nesse sentido, A intencionalidade do representado atende a um amplo nível de reflexão enquanto à sua natureza social e o seu sentido epistemológico. Portanto,  para o Menezes (2002: 23), é preciso ampliar as  implicações desse conceito e  situá-lo  no plano da ambiguidade entre o  ausente e  o presente. Nesse sentido, “Representar, significa, ao  mesmo  tempo, tornar presente o que  está  ausente, mas pela própria  presença da  ausência,  acentuar a ausência. (Ibid:  24, grifado no original)
Pensamos que a importância dessa reflexão reside na  possibilidade de ampliar o nosso entendimento sobre o museu e suas diversas mediações. O museu é, pois, o espaço por excelência onde se representa a interface entre o  real  e o  representado,  entre o  presente  e o  vivido que torna-se parte  da nossa  memória social. Como espaço, o museu  não reproduz  a realidade, no entanto,  ele a  significa tornando-a compreensível. 

MUSEU E LÍNGUA: UMA APROXIMAÇÃO SEMÁNTICA.

Em termos analíticos, o museu,como espaço de significação pode aproxima-se à língua, na acepção mais teórica desse termo. Nesse sentido, pode-se relacionar a categoria museu com  alguns dos pressupostos estruturalistas de  Sauussure (1980) e com certos  fundamentos teóricos de  Bakhtin (op.cit.), na sua análise do processo dialógico.

Em termos saussureanos, a língua, como de um dos sistemas de signos mais completos, é um dos aspectos mais idôneos que permite compreender a natureza do problema semiológico. No contexto que desenvolve suas premissas teóricas, para Saussure, a língua não se tem abordado em função  de se mesma, mas a partir de outras configurações do real. Assim, esse autor,  assinala três fatores que têm entravado a análise do seu estudo. Em primeiro lugar coloca que, para o grande público, a língua não é mais do que uma simples nomenclatura que impossibilita a pesquisa sobre sua própria natureza. Em segundo plano, o autor refere o ponto de  vista psicológico, no entendido do estudo  do signo no indivíduo e não em termos do social e, como terceiro entrave, esse autor refere que , uma vez que se adverte o signo como configuração do social, o mesmo só se considera nos traços que o unem às demais instituições. (op.cit.: 43- 44)
É importante assinalar que, apesar das formulações teóricas de Saussure fazerem parte de um esquema de reflexões (algumas já superadas) que partem do estruturalismo  e do racionalismo abstrato, as mesmas ainda são muito pertinentes quando se tenta corresponde-las  com o campo do museológico. Desta forma, seguindo o autor, consideramos que poder-se-ia transpor, em termos gerais, a situacionalidade8 da categoria língua com a de museu, sublinhando alguns elementos em comum.

Em primeiro plano, a categoria museu é, geralmente, entendida para o grande público, como uma instituição de cunho meramente patrimonialista e de templo colecionador, descuidando-se  o seu caráter de  instituição social de produção e renovação. 9 Nesse sentido, se reduz, também a  uma simples nomenclatura  do fazer cultural e patrimonial. Em segundo plano, o acervo, parte constituinte do museu, é, por vezes visto só na sua relação com o espaço físico e não numa relação de maior amplitude onde se considere a espacialidade e a temporalidade das narrativas que lhe dão sentido. Em terceiro plano, a ligação do museu com outras instituições do saber, só se faz em termos de alguns traços característicos comuns, tais como: instituição que detenta conhecimento científico, coletor e preservador de coleções, entre outros,  descuidando-se um dos seus papeis centrais e que refere-se à sua capacidade de permear a realidade vivida e construída através do discurso museológico.

Ampliando a correspondência língua/museu a partir de Saussure, veja-se que, embora esse autor exclua a influência  externa do estudo da língua, no entanto, concebe a possibilidade de relaciona-la com outros fenômenos alheios ao sistema de signos. Nos termos de Saussure (op.cit.: 48-49), “Os costumes de uma nação têm repercussão na sua língua e, por outra parte, em grande medida é a língua que faz a nação” (Original em espanhol, tradução minha).

Quanto ao processo museológico pode-se dizer que os costumes de uma nação também têm repercussão nas representações museográficas e nas leituras museológicas. Na verdade, esses costumes são contextualizados, espacial e temporalmente, a partir de conceitos, modismos, saberes e da própria cotidianidade. Em termos de identidade étnica, há uma complexa  relativização de fatos que  explicam as conexões  simbólicas entre etnicidade e a  construção dos estados-nação. Ao respeito,  Anderson (1997: 21) refere que:
“... a nacionalidade, ou a “qualidade de nação” (...) ao igual que o nacionalismo, são artefatos culturais de uma classe particular. Ao fim de entendê-los adequadamente, necessitamos considerar com cuidado como têm chegado a ser na história, em que formas têm cambiado suas significações através do tempo e por quê, na atualidade, têm uma legitimidade emocional tão profunda”. (Original no espanhol, tradução minha).

Seguindo  Anderson, compreende-se que noções como nação, língua ou museu são, ante tudo, artefatos culturais no entendido de serem construções criadas sob circunstâncias históricas e sociais determinadas. Nesse sentido, tais artefatos são configurados na dinâmica das representações semióticas. De fato, as correspondëncias entre essas categorias podem também ser construídas  na areia das relações de poder como formas institucionalizadas no decurso da história. 10
Na sua análise, Saussure assinala, também, as relações da língua com instituições sociais como a escola e a igreja, entre outras, as quais são instituições detentoras de saberes e poderes  institucionalizados e, em alguns casos, deificados. Nesse aspecto, o museu se corresponde, igualmente, com a  língua devido ao seu caráter social diferenciado de lidar com as representações sociais em geral, contribuindo para o  estabelecimento de formações sociais mais harmônicas e justas.

Outro campo de análise, muito mais  produtivo e dinâmico do que o estruturalismo, que permite estabelecer correspondências entre museu e  língua, é  aquele que analisa o signo  em  termos dialógicos.  Tal  análise  é  feita por Bakhtin (op.cit.) e  se constitui  numa forma mais fluída e aberta de estabelecer  relações. Para Bakhtin, “tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de  si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo” (Ibid:  31). Há, portanto,  para  esse autor, uma relação dialógica entre o signo e a  realidade.

Segundo Bakhtin, (op.cit., p. 83) os  racionalistas não consideraram esse tipo de relação. Para eles, o interessante é a relação de signo para signo dentro de um sistema regido estruturalmente. Nesse  sentido, o autor critica essa linha de pensamento por considerá-la simplista e insuficiente para explicar a materialidade do signo. Nos termos de  Bakhtin, aos racionalistas “só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos, este é considerado, assim como na  lógica, independentemente das significações ideológicas que a ele se ligam” (Ibid).

Na base  da discussão bakhtiniana está a relação das representações simbólicas com a ideologia. Assim, um objeto só poderia considerar-se um símbolo quando o mesmo  adquire um valor social determinado, nesse sentido, será  um produto ideológico. Ora, se todo  objeto-símbolo pode adquirir uma valor ideológico, então “o domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos” (op. cit., p. 33) sendo “mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico” (Ibid).

É importante esclarecer aqui que o signo não pode confundir-se com um mero objeto material, quer dizer, com um artefato cultural ou elemento natural determinado. Em termos bakhtinianos, só é possível conceber o objeto como signo quando o mesmo vá muito além das suas particularidades de existência. É necessário, então, a incorporação de sentido, para que o objeto (sinal), converta-se  em  objeto (símbolo). Contudo,  as reflexões de Bakhtin vão muito além da materialidade do signo, esse autor, explica que o signo não existe só como  parte de uma realidade, mas também reflete e refrata outra. (op. cit., p. 33). Aproximando as idéias desse autor ao processo museológico, podem-se tecer algumas reflexões a partir da noção de  transposição didática usada por Chevallard (1991).

A transposição consiste mais do que num conceito de análise, numa teoria disciplinar do campo pedagógico. Em termos gerais, a transposição é uma espécie de deslocação, transformação e ampliação de conhecimentos, a partir da  ruptura de uma ordem previamente estabelecida. Num sentido museológico, a  transposição começa no nível de representação do museográfico, quer dizer, na mediação entre o acervo (tangível ou intangível) e a significação desse acervo. Em outros termos, a transposição no campo museal acontece no plano da representação semiótica onde figuram narrativas discursivas heterogêneas  e  permeáveis.

Poder-se-ia situar a transposição  museográfica na interface entre as representação dos saberes realizada no espaço museu e  as apreensões de sentido feitas pelos indivíduos conforme a intervenção da sua prática social. Nesse sentido, a produção do discurso museológico deve ser uma proposta dialógica que possibilite liberdade para a criação, a reflexão e a  transformação do que está sendo representado. Eis, justamente a partir de um discurso polifônico que o museu pode romper  com as estruturas estáticas e mortas do discurso essencialista das representações identitárias. De fato, o que está em questão aqui é problematizar o espaço museu “num momento de crise da memória, da tradução, da interpretação, da construção da alteridade, da compreensão do outro” (Junior 2003: s/d ).

Talvez seja na própria desconstrução da categoria museu onde possamos captar, nos termos de Bakhtin, a reflexão e refração de uma outra realidade sígnica. Acreditamos que no processo de refração de uma realidade dada,  atuem indivíduos ideologicamente situados como locutores e interlocutores de uma determinada prática social.

Construir a idéia de um museu dialógico, necessariamente, leva a rever de  que forma é concebido e apreendido o acervo museal, não só por parte do público visitante, mas também pelas pessoas que atuam nesse tipo de instituição. Sabemos que o objeto como tal não constitui um símbolo,  precisa-se assinar-lhe um valor social para que possa transfigurar-se como signo. Pensar o objeto só na sua materialidade (que, em outros termos, pode  ser também a  expressão de  um valor social) significa pensá-lo carente da sua interlocução, quer dizer, dos valores ideológicos e simbólicos que lhe dão sentido. Refletir a respeito do acervo indica, então, uma importante aproximação para o acontecer da transposição museográfica.  

 

BIBLIOGRAFIA

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SODRÉ, Muniz. 2000. Cultura, diversidade  cultural e educação. Entrevista com  o professor  Muniz Sodré. In: Trindade, Azoilda  Loretto da  e Rafael dos Santos. (Orgs.) Multiculturalismo mil  e  uma  faces da escola.  Coleção: o sentido  da escola. 2a ed. Rio de Janeiro:  DP&A editora. p. 17-23

 

NOTAS

1 Uma versao deste texto foi encaminhada ao IV Congreso Virtual de Antropokogía em:  www.equiponaya.com.ar

2 Antropóloga. Mestre em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

3 A ICOM é uma ONG ligada à  UNESCO.

4 Conforme  explica Chagas (2002), o termo museal está  associado ao museu propriamente  dito. Assim, esse autor estabelece uma certa diferença entre museal  e  museológico, situando este último termo na  área de conhecimento da museologia. É importante destacar que a  distinção feita por esse autor,  justifica-se  pelo fato de destacar o museológico no campo  das ciências  humanas onde ocupa um lugar relevante para o estudo, pesquisa e  conhecimento de um  campo específico  de conhecimento.  

5 Usasse  o termo não-lugar no sentido dado por Augè Marc (1994).

6 Entenda-se processo museológico  no  sentido dado por Santos  (op.cit.) que concebe-lo  na relação  da teoria e  da prática.  Na linguagem museal é decorrente da relação do  museológico e do museográfico  dentro de uma prática  social  determinada..

7 O tempo e o espaço intersticial sao entendidos aqui como o acontecimento da memória social e  o lugar onde opera a negociação e a representação das identidades individuais e coletivas codificadas no museu a partir do seu acervo material e imaterial.

8 Situacionalidade, no  entendido  do lugar simbólico que ocupam numa ordem discursiva determinada.

9 Entende-se por grande público aquele conglomerado de indivíduos que compartem o mesmo discurso social e que  conforme  certa ordem  construem uma prática social consonante com valorizações elitistas e hierarquizadas nas relações sociais.

10 Uma valiosa reflexão sobre a história do museu e suas relações com diversas  formações históricas e sociais de poder é feita por Santos (op.cit.)

 

 


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