CONGRESO VIRTUAL 2000

AIDS E DIVERSIDADE SÓCIO-CULTURAL

Edir Pina de Barros

...a epidemiologia social encontra seu limite no paradigma que institui apenas o corpo como o espaço da saúde/ doença. Seu desafio atual é encontrar na teoria e na prática a totalidade fundamental do ser humano (Minayo, 1996:196).

            O HIV/AIDS não respeita fronteiras sociais e étnicas. Invade, inexoravelmente, todas as sociedades, sem distinção e, do ponto de vista biológico, afirma a unidade da espécie humana. As propostas de educação em saúde, sustentadas na idéia de risco de determinadas práticas sexuais desprotegidas revelam-se insuficientes para o controle da pandemia e os resultados obtidos, até o momento, insatisfatórios. Subjecente a tais propostas está a idéia do entendimento público dos conceitos produzidos pela ciência epidemiológica (Castiel, 1998), o que não ocorre, definitivamente. Enfatizar, nas campanhas educativas, a letalidade da doença, igualmente não vem surtindo os efeitos almejados e questiona-se se seria esta uma estratégia efetiva.

            Tendo em vista a “singularidade do adoecer humano” (Castiel, 1994) nas diferentes sociedades, as campanhas educativas revelam-se etnocêntricas, incapazes, portanto, de se propor a um diálogo intercultural minimamente eficiente, seja com segmentos de nossa própria sociedade, seja com os grupos étnicos nela presentes.

            Se, por um lado, o HIV/AIDS afirma a unidade biológica da espécie humana, por outro, desvela, com imperiosa radicalidade, a sua diversidade, em termos sócio-culturais. Não há como estabelecer, a priori, como esta ou aquela sociedade ou grupo humano, vivencia, pensa e simboliza o processo saúde/doença relacionado ao HIV/ AIDS, que evoca temas tão sensíveis como o da corporalidade, da sexualidade e da morte. Isto somente o inquérito etnográfico pode elucidar, visto que vinculam-se a estruturas de significados histórica e culturalmente constituídas. Como coloca Maria Cecília de Souza Minayo:

A doença é uma realidade construída e o doente é um personagem social. Portanto, tratar o fenômeno saúde-doença unicamente com os instrumentos anátomo-fisiológicos da medicina ou apenas com as medidas quantitativas da epidemiologia clássica constitui uma miopia frente ao social e uma falha no recorte da realidade a ser estudada (Minayo, 1991:233).

Sendo a doença, para além de um fato clínico, um fato sociológico, afirmo com essa pesquisadora que qualquer ação de prevenção, tratamento ou de planejamento de saúde necessita levar em conta valores, atitudes e crenças de uma população (Minayo, 1991: 233).

Não levar em consideração as coordenadas culturais da população-alvo em campanhas educativas e preventivas, sobretudo em um país plural e pluriétnico como o Brasil, significa renunciar a qualquer possibilidade de sucesso. Não há como ignorar que, para além das profundadas desigualdades presentes na sociedade brasileira, das etnias afrobrasileiras e estrangeiras, das diferenças de gênero, de classes sociais, de credos religiosos, dentre outras, tem-se cerca de 206 etnias indígenas. Que neste país se fala cerca de 200 línguas diferentes entre si, correspondendo a cada uma delas uma ordem social e simbólica singular...

O objetivo deste texto é contribuir para se repensar a questão do HIV/ AIDS e a diversidade sócio-cultural tendo por referencial empírico a etnia indígena Bakairi (Karib), que soma cerca de 700 indivíduos e que vive na região de cerrado norte mato-grossense, ao sudoeste do Alto Xingu, em duas Terras Indígenas denominadas Santana (Município de Nobres) e Bakairí ( municípios de Planalto da Serra e Paranatinga). Eles são ribeirinhos, pescadores e agricultores, exercendo a caça e a coleta um papel complementar.

Antecedentes

            A experiência dos Bakairi com as doenças sexualmente transmissíveis é tão antiga quanto a sua história de contato. Tem-se registro escrito, todavia, apenas para uma parcela significativa de sua população que vivia no Alto Xingu em tempos pretéritos e que tornou-se conhecida através das expedições de Karl von den Steinen à essa região, nos idos de 1884 e 1887 ( Steinen, 1942 e 1940). Após esse primeiro contato, outras expedições se sucederam no tempo. Uma delas foi a de H. Meyer, em 1896. Karl E. Ranke, que o acompanhara nessa empresa, comentou, em um de seus escritos, que alguns índios Bakairi alto-xinguanos foram visitar “ um outro ramo dessa tribo” que desconheciam até então e que já mantinham relações mais antigas com os colonizadores. Nessa ocasião eles teriam ido a Rosário Oeste, antiga área de mineração,

...onde um deles adquiriu uma blenorragia oftálmica que depois de seu regresso à aldeia Bakairi do Curisevu deu origem a uma terrível epidemia; todos os habitantes adoeceram, alguns morreram, outros saíram da doença com a perda de um olho ou com um leucoma. As numerosas conjuntivites que eu próprio vi eram todas de natureza benigna, de tal maneira que o gonococcus desapareceu de novo do Xingu. E é extraordinário não ter eu encontrado nenhum sinal, nem sequer anamnésico, de que ele tenha tido qualquer conseqüência entre os índios, mesmo nos órgãos sexuais (Ranke, 1898:130, apud Ribeiro, 1970: 280)

            As doenças sexualmente transmissíveis estão incluídas no rol daquelas enfermidades rotuladas como “doenças de branco”, ou seja, que estão relacionadas ao contato interétnico. A AIDS também assim é classificada, valendo notar que não há casos de indivíduos soropositivos até agora registrado entre eles. Para o Brasil indígena haveria 31 casos diagnosticados até fevereiro de 1997, tendo ocorrido várias mortes (Costa, 1997).

            A AIDS assumia, antes do final da década de 80, um certo tom de virtualidade entre os Bakairi que não haviam estabelecido, até então, nenhuma relação objetiva com essa síndrome. Tinham notícias sobre a pandemia, pois muitos deles se faziam, como hoje ainda se fazem, presentes em cidades para estudar, adquirir bens que não produzem, defender seus interesses e direitos, enfim, por causas variadas. Dentre as cidades que vivem temporariamente ou freqüentam há mais de um século, destaca-se Cuiabá, a capital de Mato Grosso (Brasil). Nesta cidade, vários deles conheceram, no início da década de 80, um artista plástico que, mais tarde, tornou-se um soropositivo. Desde que se tornou consciente de sua situação, jamais ele a escamoteou: todas as pessoas do seu círculo de amizade e afeto participaram de seu drama, acompanharam sua saga ao longo do tempo...Muitos Bakairi amigos seus também vivenciaram o seu dilema. Alguns iam visitá-lo individualmente, outros em pequenos grupos de homens e outros com suas famílias. Ele também estivera, várias vezes, em suas aldeias. A Aids deixou de ser, a partir de então, para eles, algo abstrato, passando a estar presente, objetivamente, no horizonte de suas vidas, de suas reflexões e preocupações1. Naturalmente os Bakairi vêm elaborando teorias próprias acerca da AIDS, que se reordenaram após tal contato direto com o problema.

Tratar-se-á aqui de representações sociais do processo saúde e doença referenciado ao HIV/AIDS, entendendo-se representações como categorias de pensamento, de ação e de sentimento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a (Minayo, 1996: 158). Expressam formas de conhecimento elaborado e partilhado por grupos sociais.

Apresentar-se-á uma das reflexões que se teve oportunidade de conhecer, através de um agente de saúde, membro dessa etnia. Afirmara ele, na ocasião (junho de 1998), que prevalecia aí a concepção de que só se tornam “vulneráveis” ao virus da AIDS aquelas pessoas cujos pais não haviam observado, desde a gravidez até o momento em que atingissem a capacidade reprodutiva, todos os procedimentos corretos e regras de reclusão (alimentares, sociais, sexuais) para garantir a força física e a saúde de seus filhos. Tal afirmação só pode ser devidamente apreendida se referenciada à ordenação social e simbólica desse povo, sobretudo às relações que estabelecem entre o processo de construção do corpo, a noção de pessoa e o processo saúde/doença. Troquemos em miúdos essa afirmativa, “boa para pensar”, como diria Claude Lévi-Strauss.

A Construção do Corpo na Sociedade Bakairi

            O corpo, para além de uma realidade em si mesmo, é uma construção sócio-cultural: nada é mais inapreensível que ele, que nunca pode ser reduzido a um dado indiscutível2 , como colocou alhures David Le Breton (1995: 14), visto que as representações do corpo e os saberes acerca dele são tributários de um estado social, de uma visão de mundo e, dentro desta última, de uma definição de pessoa( idem: 13).

            A centralidade do corpo, território físico da saúde e da doença, deixa suas marcas na própria autodenominação desse povo: Kurâ. Trata-se de termo polissêmico que expressa, stricto sensu, nós, os Bakairi, gente verdadeira, o paradigma da humanidade, por excelência. Neste campo semântico específico, quer dizer ainda o que é nosso. E, ao mesmo tempo, como registrou Steinen, bom, enquanto que kurâpa quer dizer não nós, não nosso, como também ruim, sovina, prejudicial à saúde (1940 : 428). O significado do termo, como observou Jaime Wheatley é ampliado para abranger saúde e ordem. O verbo cura idale, que é glosado como curar, significa literalmente tornar-se cura de novo (s/d : 9 e 10).

            Iwâkuru é o termo usado para se referir às pessoas socialmente aprovadas, saudáveis, enquanto que inakai  expressa o seu contrário, ou seja, “pessoas estragadas”, física e/ou socialmente. Tornar-se um ou outro depende, segundo a sua singular teoria, de todo um processo de construção bio-cultural. Há aí uma historicidade a ser, portanto, considerada!

            Segundo a cosmovisão desse povo, um novo ser resulta de relações sexuais consecutivas, com o concurso de substâncias vitais do homem e da mulher. Coerentemente, o sistema de parentesco é cognático, ou seja, considera, em seus cálculos, tanto a linha paterna quanto a materna. A vida, para os Bakairi, está associada ao ciclo de uma substância vital denominada ekuru. Presente em todos os seres vivos, inanimados e animados, é obtida através de alimentos, fazendo-se presente no sangue. Sem ela o sangue - yunu - coagula, sobrevindo a morte. Tal substância é eliminada através de líquidos, resíduos, secreções e excrementos corporais que, em contato com a terra, é reprocessada pelos vegetais. Na sua forma livre e pura, somente os vegetais a contêm. Os Bakairi são basicamente vegetarianos e só ingerem carne de animais essencialmente vegetarianos.

Cuidados especiais devem ser tomados no período que envolve a formação de um novo ser. A partir do momento em que a gravidez é identificada, os genitores devem anunciá-la aos seus parentes (bilaterais) próximos e passam a observar uma série de prescrições alimentares e comportamentais para garantir a saúde e a vida do futuro filho. Fazer um filho no útero da mãe é uma atividade que requer muita ekuru dos genitores, por isso deve-se evitar perdê-la em outras atividades. O casal não deve andar longe, nem cansar-se ( o cansaço é decorrente da perda de ekuru). O homem deve permanecer sempre próximo à sua casa, não podendo caçar, derrubar mata, pescar e fazer coivara, nada que exija muito esforço, pois isso poderia resultar em um filho defeituoso, predisposto às doenças ou natimorto. Não deve participar de rituais, mas manter-se longe dos locais onde são realizados. Não deve também manter relações sexuais com outra mulher, ainda que cesse de praticá-las com a própria esposa já mais ao fim da gravidez.

          A mulher grávida deve manter-se igualmente nos arredores de sua casa ou dentro dela, evitando sair à noite, reino dos sobrenaturais, e demorar-se no rio banhando ou lavando roupas. Não deve, durante toda a sua gravidez - e depois, como se verá - cortar os seus cabelos. Fica, enfim, em estado de semi-reclusão.

          Os genitores devem evitar os alimentos que contenham ekuru inapropriado à formação do frágil ser por gerar problemas de várias ordens, tais como: pimenta e coisas que amargam (o feto pode morrer); anta (a criança nasce morta ou fica muda); peixe agulha (a criança morre3), veado mateiro (quando nasce não dorme, fica só chorando e pode morrer; desmaios consecutivos); capivara (gagueira); tucano (fica boba, com pescoço mole); quelônios (os ossos não endurecem); piraíva (preguiça, custa para nascer)4. Deve-se evitar, terminantemente a ingestão de bebidas alcoólicas, conhecidas a partir do contato com os colonizadores da região, porque podem, no seu entender, gerar crianças frágeis, doentias ou resultar na sua morte, antes mesmo do nascimento.

          Durante toda a gravidez, os pais de ambos os genitores e seus irmãos germanos devem garantir as condições para a observação dessas restrições alimentares, suprindo-os de alimentos adequados - portanto de ekuru - zelando não só por suas vidas, mas também da do novo ser em formação. Assim eles, indiretamente, ajudam a “fabricar” o bebê, que não é uma questão restrita aos genitores. Se for tempo de pequi, devem coletá-lo e ofertá-lo à gestante para que a pele do bebê nasça bem limpa e bonita. Esses cuidados concorrem para o nascimento de uma criança sadia, para um bom e rápido parto, momento a partir do qual os genitores entram em reclusão.

          Enquanto não cair o cordão umbilical, ambos devem alimentar-se basicamente de pogo – bebidas não alcoólicas feitas de milho, mandioca, arroz e que são conhecidas na literatura etnológica como “chichas” - especialmente uma delas denominada xunupy, feita de beiju seco (malomalo), de algumas aves como o papa-goiaba (panra), o papagaio (toro), a galinha (aukumã), das quais não se deve ingerir carnes e cartilagens das asas, pés e cabeças, pelos defeitos que podem provocar no bebê, especialmente na estrutura óssea. Veado de qualquer tipo é proibido, porque faz cair cabelos, mas o mateiro é pior, porque, se ingerido, acarretará nele desmaios consecutivos. Desmaiar é extremamente perigoso porque a alma escapa momentaneamente do corpo e pode, em um ataque mais prolongado, não retornar a ele.

          Depois que o umbigo cai são introduzidos o arroz, o milho e a mandioca cozida. Peixe, de qualquer espécie, é vetado. Dizem que causa nos pais inchaço na barriga (“barriga d’água”) e nos pés, além de efeitos nefastos no bebê.

          O pai, depois de quinze ou vinte dias retoma a sua alimentação normal, já anda mais longe e começa a assumir as suas atividades normais. A mãe, acabado o sangue do puerpério, aos poucos vai assumindo as atividades diárias. Mas ambos, quando o bebê apresenta o menor problema, voltam à reclusão e às prescrições alimentares. Todo cuidado é pouco porque ele tem a pele, o corpo e os ossos ainda “moles” e frágeis e sua alma pode fugir com facilidade.

          A mãe, sobretudo, deve ser zelosa, pois se entende que tudo o que se ingere é canalizado para o bebê através do leite materno, tajiwaryekuru, que é, por excelência, a fonte de ekuru para ele até cerca de dois ou três anos. Pimenta, cebola, alho, quelônios, manga, peixes de maior porte e outros tantos alimentos devem ser evitados até que a criança deixe de amamentar no seio. O leite materno é responsável pelo acréscimo de carne e sangue, assim como a água ingerida. Ela só pode cortar os cabelos depois da primeira menarca pós-parto, ocasião em que também se cortam pela primeira vez os do bebê. Cortar cabelos de ambos é uma tarefa que cabe à mãe ou a uma irmã mais velha da genitora.

          Cuidados especiais de outra natureza devem também ser tomados para que a criança cresça saudável, bonita, iwâkuru: sarjar a sua pele com o escarificador banhá-la com preparados de ervas medicinais, esfregar as suas juntas com carvão de certas madeiras para que fiquem fortes, favorecendo o seus crescimento, protegê-la dos iamyra – espíritos dos seus mortos - e dos feiticeiros. Deve-se evitar que o bebê chore, mimando-o, tomando-o ao colo, para que ele não perca ekuru através das lágrimas (enoguru). Se chora, a mãe logo oferece-lhe o seio para acalmá-lo.

          Ao menor sintoma de doença pai e mãe, juntamente com a criança, retornam ao estado de reclusão total - que implica na retomada das prescrições alimentares - até que ela se recupere integralmente.

          É a ekuru advinda dos alimentos que permitirá – após a suspensão do amamentação - o acréscimo da carne e sangue no qual ela circula, até que o indivíduo atinja a capacidade reprodutiva, marcada na mulher pela menarca e no homem, pelo ritual de perfuração de orelhas.

          A reclusão dos adolescentes do sexo masculino é feita também dentro de casa, durando cerca de 10 dias, tempo em que os homens realizam caçadas e pescarias coletivas. O sadyry, rito coletivo de “perfuração de orelhas”, executado de tempos em tempos é, todavia, realizado no pátio, em frente ao kadoêti ( casa de kado ou “casa dos homens”) contando com a participação exclusiva das pessoas de sexo masculino. Tal ritual exige o concurso de um especialista, “dono” do “furador de orelhas”, como dizem, instrumento feito de osso aninal com o qual perfura os lóbulos das orelhas de todos reclusos. Mais elaborado, o sadyry compõe o complexo do kado, ritos pancomunitários, de natureza sagrada.

          A reclusão pubertária feminina hoje se resume aos dias em que a jovem fica menstruada pela primeira vez, período em que ela fica “presa” em seu próprio “quarto”. Somente a mãe e irmãs têm acesso a ela, que alimenta-se de pogo (“chichas”) , e suas pernas, ancas e costas são sarjadas, recebendo a pele, logo após, aplicação de ervas medicinais. Dizem que tal tratamento deixa a jovem mais bela, saudável e calma. A escarificação assim concorre também para a construção da pessoa, em termos físicos e emocionais. Seja qual for a razão, a aplicação de preparados de ervas medicinais sempre acompanha a escarificação.

            A escarificação é feita com o pain-hó, pedaço triangular de cuia, onde são incrustados dentes de peixe-cachorro próximos à borda superior e fixados atrás por meio de um rolete de cera (Ribeiro, 1988: 170).

            O escarificador é um elemento da cultura que não é bem distribuído entre os Bakairi, ou seja, nem todas as parentelas o possuem e aquelas que são “donas” de pain-hó têm prestígio. Nas parentelas que são “donas” de escarificador, cabe, via de regra, às pessoas mais idosas a escarificação, quando não à uma pessoa mais especializada.

            Entre os Kuikuro, igualmente Karíb, habitante do Alto Xingu, Cibele Verani registrou que a escarificação é

realizada com mais freqüência durante a reclusão pubertária, masculina e feminina, é aplicada diferencialmente em partes do corpo feminino para “engordar” as ancas, as coxas e as pernas. Para os rapazes, serve para “fazer crescer” os músculos do tórax, braços e coxas. Após o período de reclusão, é aplicada nos jovens lutadores para mantê-los fortes, principalmente antes dos rituais intertribais que culminam em grandes lutas que consagram campeões (1991: 84).

          Ou seja, a escarificação é um recurso, uma tecnologia de elaboração do corpo que se exerce por meio de intervenções sobre os canais de contato entre o corpo e o mundo, como bem expressou Viveiros de Castro, em seu estudo sobre os Yawalapíti (1987:37).

          Entre os Bakairi, tanto na reclusão feminina quanto na masculina, os demais membros da família dos jovens púberes observam restrições alimentares e sexuais, para que os resultados dos tratamentos que se voltam para a fabricação do corpo e construção da pessoa tenham efeitos positivos. A não observância dessas restrições pode resultar em transformação dos reclusos em pessoas inakai, “estragadas”, feias, anti-sociais, feiticeiras em potencial.

           Tais idéias também se fazem presentes entre os Yawalapití – povo de cultura alto xinguana, como os Bakairi e os Kuikuro – como registrou Viveiros de Castro (1987:33):

Toda reclusão é sempre concebida, para os Ywalapití, como uma mudança substantiva do corpo. Fica-se recluso, dizem, para ‘trocar o corpo’. Não apenas para isso, é certo: para formar, também, ou reformar a personalidade ideal adulta, sobretudo na reclusão pubertária, a mais importante. Vale notar, porém, que a personificação do homem depende de uma adesão correta às regras ditadas pela tecnologia do corpo na reclusão. Aqueles que não seguiram as regras alimentares e sexuais da reclusão tornam-se ipoñoñori-malú, ‘ gente imprestável’ e são candidatos ideais à acusação de feitiçaria, além de sofrerem ‘defeitos’ típicos dos feiticeiros: ‘barriga inchada’ (por acúmulo de sangue, resultado da incontinência sexual do adolescente recluso), fraqueza, etc. A feiúra e a avareza refletem, assim, reclusões mal sucedidas; não por acaso os chefes (amulaw) são idealmente belos, fortes e generosos e devem ficar reclusos por períodos maiores na adolescência.

          Na sociedade Bakairi o feiticeiro - omeodo, o “senhor do veneno” - não é um xamã pervertido que usa seus poderes para fazer mal a outrem. Desconfia-se de pessoas consideradas inakai, anti-sociais, “estragadas”. Manchas na pele, como as geradas pelo pênfigo, associadas a comportamentos estranhos, levam à suspeita de que a pessoa seja feiticeira. Segundo a teoria Kurâ-Bakairi o omeodo ingere formigas tocandiras , marimbondos e cobras venenosas que resultam ou podem resultar em tais manchas. As feridas e as erupções cutâneas, inclusive as que perfuram a pele, resultariam também disso. Diz-se que os feitiçeiros, para fortalecer seu poder, passam sobre a pele escarificada venenos de animais peçonhentos.            Quando alguém é colocado sob suspeita de ser feiticeiro, esse alguém é sempre o “outro”, alguém de outra parentela, de outra facção, de outro grupo local ou um estrangeiro que viva entre eles, o que é o mais comum, ao menos em tempo de paz. Em vários casos de doença o acusado foi um Nambikwara que viveu entre os eles, que chegaram mesmo a pensar em eliminá-lo, mas ele conseguiu sair da Área antes de ser morto.

            Ofensas públicas podem resultar em atos de feitiçaria por parte do ofendido ou de alguém de sua parentela. Os Kurâ-Bakairi evitam o descontrole emocional e sempre orientam seus filhos no sentido de manter o equilíbrio mesmo nas situações mais difíceis. Mas pode-se, mesmo em silêncio, provocar-se a ira de alguém, como por exemplo, não atender a uma solicitação sua. Daí ser o controle emocional um dos comportamentos mais valorizados nessa sociedade (vide Taukane, 1997: 120), assim como a generosidade.

           Durante toda a vida os membros da família elementar, de orientação e depois de procriação, devem, no caso de doenças, por feitiço ou não, se abster de alimentos e sexo em favor da saúde de um dos seus. Há assim, no decorrer do ciclo da vida dos seus membros, uma comunicação corporal que só se rompe com a morte.

            Além de seu importante papel na construção do corpo em si, a escarificação é uma das práticas terapêuticas mais bem difundidas entre os Bakairi.  Aqui se aplica o que escreveu alhures Cibele Verani sobre os Kuikúro: a escarificação é realizada como opção terapêutica - no caso de “canseira”, por exemplo - quanto preventiva e refere-se à lógica do excesso de sangue no corpo (VERANI, 1993: 33). Só que, em termos da lógica Bakairi, o excesso não seria de “sangue”, mas de ekuru.

A mãe costuma “arranhar” seus filhos quando estes se encontram irrequietos, danados. A danadice é interpretada como excesso de ekuru, que leva a desequilíbrios emocionais, à teimosia e à ira.

Acidentes ofídicos , inchaços no corpo (perna, mão, braço, etc.) também são tratados com a escarificação. Os Bakairi dizem que as mulheres karaíwa (não-indígenas) têm muitas varizes exatamente porque não sarjam seus corpos.

Enfim, importante faz-se sublinhar que a escarificação, seja por uma razão ou por outra, sempre está associada à fitoterapia, através de aplicações sobre a pele sarjada e, algumas vezes, através de tratamentos complementares, como os eméticos que são ingeridos em várias situações de reclusão, sobretudo pelas pessoas do sexo masculino.

          Se a ekuru é continuamente perdida no processo da vida, ela deve ser reposta em quantidades e qualidades suficientes para se ter saúde. Cuidados também devem ser tomados com relação a ingestão de alimentos ,já que se pode utilizá-los como veículos para se lançar feitiços contra aqueles em relação aos quais se tenha cismas e desejos de vingança. Deve-se, por essa razão, só aceitar alimentos de parentes, sejam eles putativos ou não, mas parentes. Os alimentos, que são fontes de ekuru, a qual se mistura com o sangue, podem ser igualmente, fontes de saúde ou de doenças. Zelos devem ser observados tanto no preparo quanto a sua conservação. Além de se ter modos especiais de preparo de acordo com a natureza da ekuru que cada um deles contém, eles jamais devem tocar o chão porque são candidatos a reprocessamento e porque podem ser contaminados com a ekuru ainda não reprocessada, fonte de perigo e de doenças.

            A reclusão - uanki5 -é praticada por toda pessoa que se encontra em estado liminar e, não raro, todos os que com ela tenham laços de substância (consaguinidade). Nessa situação o consumo de alimentos, como se viu, é regulamentado por uma série de restrições e proibições rituais.

Reconsiderando

            O corpo é, como afirmou com propriedade Jaqueline Ferreira, um texto passível de diversas leituras em busca de significados, tanto para o doente, no processo de desencadear sintomas, como para o clínico, quando persegue sinais, indícios, ao examinar o corpo do outro, o doente...(Ferreira, 1994: 101-102).

            Há aqui um terceiro olhar, daquele que, não sendo nem o doente, nem o clínico, vivencia o processo da doença como observador atento, e o pensa e repensa, a partir de seus referenciais sócio-culturais, de suas categorias de pensamento, como no caso dos Bakairi, aqui enfocado. Fazendo, a partir dessa experiência concreta, uma retrospectiva, alguns deles chegaram a levantar a possibilidade de já haver ocorrido duas mortes por AIDS entre eles. Em sua reflexão analógica, pode-se registrar pontos de comunicação, assim como divergências entre a teoria biomédica e a cosmovisão indígena. Com relação aos pontos de comunicação tem-se:

a) ambas admitem a existência de um agente externo específico transmissor da doença; como se viu, os Bakairi classificam a AIDS como “doença de branco” - tal como a tuberculose, o sarampo, dentre outras - portanto resultante de relações interétnicas;

b) os sintomas observados, as marcas, os “estragos” que deixam no corpo, em ambos os casos, foram os mesmos: perda de peso, úlcerações na pele, queda de cabelos, fraqueza em geral, dentre outras;

c) em ambos os casos registra-se uma certa invisibilidade do “problema” durante um tempo relativamente longo, até que ele se manifeste concretamente; é na vida adulta que, via de regra, eles identificam uma pessoa como inakai, antisocial, “estragada”, feiticeira, ainda que tal quadro resulte de um longo processo de construção social do corpo, uma das dimensões da pessoa;

d) em pauta, tanto no pensar biomédico quanto no desse povo indígena, com relação ao HIV/AIDS a questão primordial de fluidos corporais: sangue, líquidos seminais e leite materno se destacam na teoria da construção social do corpo e do processo saúde e doença entre os Bakairi, como já se viu. O sangue contém ekuru, que lhe garante a fluidez, a vida, enfim. Líquidos seminais e leite materno são, por excelência, ekuru  em circulação.

Mas, para além desses pontos de comunicação, registram-se divergências, hiatos profundos entre a teoria biomédica e a cosmovisão Bakairi, quais sejam:

a)para a biomedicina a AIDS resulta da contaminação pelo agente específico da doença, o HIV; de acordo com a lógica Bakairi, isso não seria o suficiente, pois os determinantes do processo saúde-doença, incluindo o da AIDS, aqui especialmente enfocada, vinculam-se à uma deterioração das relações entre corpo, pessoa e sociedade, e não à contaminação pelo virus em si. Tal imputação etiológica diverge radicalmente da interpretação biologicista da medicina ocidental, ao separar as idéias de transmissão e causação;

b) a lógica ocidental reduz os fluidos vitais , acima especificados, a veículos de transmissão do HIV, enquanto que, na lógica Bakairi, tendo em vista o colocado no item anterior, isso não se aplica. Nas sociedades indígenas, fazendo minhas as palavras de Daniela Knauth (1998: 139), mais do que responsáveis pela vida, estes fluidos corporais são definidores de identidade individual e de relações sociais – relações de filiação, consagüinidade, parentesco.

c) enquanto o conhecimento biomédico permite afirmar que a vulnerabilidade ao virus da AIDS, no que se refere ao campo da sexualidade, depende estritamente de comportamentos pessoais, a teoria Bakairi, como se viu, a situa fora do indivíduo e de suas práticas.

            Como estabelecer programas e projetos preventivos sem a compreensão de tal multiplicidade de sentidos? Como orientar os jovens para o uso de preservativos se situam a vulnerabilidade como resultante não de práticas sexuais desprotegidas, em si, mas de comportamentos inadequados, no passado, dos parentes primários, na não observação de regras de sociabilidade que levam a uma ruptura entre o corpo, a pessoa e a sociedade?

            Como pensar em campanhas educativas culturalmente coerentes sem levar em consideração a diversidade sócio-cultural? Do ponto de vista das estratégias, deve-se observar que não cabem, em sociedades dessa natureza, abordagens individuais – tal como é a prática em todos os níveis do sistema de saúde brasileiro – tendo em vista que a doença é pensada e vivida enquanto algo coletivo, a merecer, por essa razão, estratégias preventivas e práticas terapêuticas da mesma ordem.

            Por fim, vale ressaltar ainda alguns pontos que considero importantes: (1) a necessidade de se pensar a escarificação – prática registrada em muitas sociedades indígenas brasileiras – como uma fonte possível de dessiminação da AIDS pois cada “dono” de escarificador o utiliza para sarjar todos os indivíduos de sua parentela; e mais, um só escarificador, via de regra, é utilizado em ritos pancomunitários, para sarjar todos os indivíduos neles envolvidos, incluindo-se aí visitantes não-indígenas; (2) o mesmo pode-se dizer com relação ao ritual de “furação de orelha”, pois um único instrumento é utilizado para perfurar os lóbulos das orelhas de todos os reclusos e (3) a questão do alcoolismo, que dentre as drogas da sociedade ocidental, é a mais utilizada entre os povos indígenas, à exemplo dos Bororo. A ingestão de álcool, nas aldeias, está relacionada diretamente à exacerbação da sexualidade e às trocas de parceiros sexuais. Nas cidades, articula-se a uma maior freqüencia às áreas de prostituição, aumentando os riscos de contaminação pelo virus do HIV. No caso Bakairi o alcoolismo ainda não assume proporções preocupantes, mas os contatos com as cidades tem aumentado de maneira virtiginosa

Como se viu, há pontos de comunicação entre os dois sistemas explicativos relacionadas a AIDS, o biomédica e o indígena. Partindo-se deles é possível estabelecer um fértil diálogo intercultural tão necessário às ações educativas e preventivas. Resta saber se há predisposição para tal diálogo, sobretudo por parte dos profissionais da área da saúde direta ou indiretamente envolvidos com a questão.

Os dados aqui colocados também atestam a necessidade de produção de mais conhecimento sobre a diversidade sócio-cultural referenciada ao campo da Antropologia da Saúde, para que se possa, a partir dele, estabelecer estratégias mais efetivas para o controle dessa pandemia.



Notas

1 A Associação Kurâ-Bakairi, através do Ministério da Saúde, desenvolveu ações educativas para a prevenção da AIDS.

2 Traduções livres espanhol-português feitas pela autora

3 Alguns afirmam que, caso tenha que se comer, tem que se chorar antes de ingerir tal peixe.

4 Altenfelder Silva registrou apenas que quando a barriga da grávida começava a atingir proporções visíveis, iniciava-se uma dieta alimentar à base de vegetais e carne de peixes (1950: 263). O que apresento neste texto é apenas uma pequena amostra, diante da riqueza da ética alimentar desse povo.

5 Darlene Yaminalo Taukane, Bakairi, em sua dissertação de mestrado em Educação grafou wanke.

Referências Bibliográficas

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