Memória e conflitos: um estudo sobre a ação pública e o patrimônio histórico-cultural em João Pessoa

Anna Maria de Lira Pontes 1

Carla Mary S. Oliveira 2

RESUMO

O presente trabalho pretende discutir as políticas públicas relativas à proteção do patrimônio histórico-cultural da Paraíba, mais especificamente em sua capital, João Pessoa, e sua influência na caracterização da memória coletiva e da identidade local. A preservação do patrimônio histórico-cultural é, inicialmente, uma escolha do que vale ser mantido como representante de uma história local, por isso é relevante não só a existência dessas políticas públicas como também a sua junção com os interesses da comunidade como um todo. As políticas referentes ao patrimônio presenciadas em João Pessoa refletem a priorização de uma memória coletiva dominante e, como o patrimônio histórico-cultural interfere, e muito, em sua memória coletiva, dá-se aí uma ruptura em relação à identidade local pessoense, em que se percebe a existência de um "estranhamento" entre os moradores das áreas próximas aos monumentos e a história local que esses prédios representam.

Palavras-Chave: Patrimônio Histórico; Memória; Identidade; Preservação; Políticas Públicas; Paraíba.


É de conhecimento de todos que a razão essencial da existência de órgãos e gestão pública se remete à necessidade de uma nação se organizar e se legitimar perante seus próprios cidadãos e as outras nações. Dentre as funções da gestão pública cabe o trato do que é público e, por isso, "de todos", mas dentro de um conceito de memória coletiva percebemos que aquilo que é importante para uma determinada classe pode vir a ser um motivo de vergonha ou indiferença para outras, culminando assim numa priorização de memórias a se preservar. No que se refere ao Brasil, essa é uma escolha perante o que é testemunho de uma classe dominante. Essa priorização pode ser obtida através da negociação ou da imposição, como afirma Michael Pollak (1989).

Um bom exemplo para evidenciar o apreço ao que é símbolo de dominação é a predominância, nos anos iniciais do IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do tombamento de edifícios coloniais: um símbolo de dominação uníssona e européia. É claro que aqueles eram, geralmente, os edifícios mais suscetíveis à degradação pela ação do tempo, mas por que não, por exemplo, mostrar uma preocupação inicial com as manifestações culturais que demonstravam a resistência dos escravos negros no Brasil, ou dos povos indígenas? A discussão acerca do patrimônio imaterial no Brasil se desenvolve apenas a partir dos anos 70 do século passado: é ainda muito recente.

De acordo com Françoise Choay (2001: 11-29), a noção de patrimônio, assim como a de monumento, veio se modificando ao longo dos séculos e passou do status de antiguidade, no século XV, para sofrer o "complexo de Noé", nos dias atuais. Afinal, tudo tem ou obtém algum motivo para ser preservado para as populações vindouras. Os órgãos responsáveis pelo tombamento, um dos principais meios de preservação da atualidade, relacionam vários tópicos com a memória local. E, por isso mesmo, não se tornam exigentes o suficiente na catalogação de seu patrimônio tombado, tornando-se tudo precioso para a História local, correndo-se o grave risco de, como alertado por vários autores, tornarem-se as cidades grandes museus inertes e sem vida.

É comum o pensamento de que quanto maior o número de bens patrimoniais tombados, maior o status da cidade, tanto em nível nacional quanto internacional. Contudo, seria a relação da população local com seus monumentos uma relação sustentável? É importante ressaltar que de nada vale um monumento que não se presta enquanto tal para a comunidade.

O monumento, de acordo com Jacques Le Goff (1994: 535-536), é tanto uma herança do passado como também uma escolha do historiador, justamente por representar um testemunho das sociedades históricas. Assim como um documento é um monumento, por expressar muito além de apenas seu conteúdo superficial, por conter implicações e expressões de uma determinada época e local, o inverso também é verdadeiro. Um monumento é mantido através do esforço da sociedade em passar para as gerações futuras parte de sua memória, mesmo que essa seja seletiva, já que é feita, por parte dessa sociedade, uma escolha no sentido do que deve ou não ser registrado, de qual seria a melhor história para se contar.

Nas políticas de preservação atuais se percebe, principalmente, várias tentativas de dar a edifícios tombados novos usos, utilizando-os para fins culturais, turísticos e mesmo administrativos. Contudo, a própria reutilização do patrimônio edificado é uma problemática a ser pensada e bem questionada não só em relação a seu uso e público destinado como também para a re-significação que este prédio obterá perante a comunidade local que o utiliza ou que o identifica de acordo com sua função atual 3.

Choay (2001: 15) também adverte para os efeitos nocivos dessa indústria, profundamente ligada à atividade turística, que se faz emergente e ao nome de indústria patrimonial, no qual o sentido de patrimônio enquanto bem público deve ser de fato revisto. Para Choay, o bem patrimonial ganha um forte valor ao ser visto como uma oportunidade para o turismo; além da valorização estatal do patrimônio por motivos econômicos (com a possível exclusão da população com uma especulação imobiliária e, conseqüentemente, a exclusão de um modus vivendi que seria justamente a parte humana dos edifícios tombados); a valorização histórica e a valorização artística, que remete o usufruto do patrimônio a uma mera fotografia e/ ou uma contemplação artificial, entre outros.

Esta valorização patrimonial é percebida como algo positivo entre os altos escalões do planejamento urbano e perante os órgãos públicos que buscam status , mas a população local permanece, na maioria dos casos, alijada do processo de tombamento e de reutilização do bem patrimonial ou, usando um termo que teve seu uso banalizado na cidade de João Pessoa, da "revitalização" 4. A ironia é que é justamente essa população local que deveria ser a mais beneficiada e ativa no processo valorativo. Afinal, até o dia do tombamento oficial, o bem ficou nas mãos da população - que optou ou não por sua preservação.

De acordo com Almir Oliveira, "o controle do passado é, por excelência, o controle do presente" (2002: 25), e realmente essa afirmação é feliz no que se refere ao patrimônio histórico-cultural, pois sua escolha e manutenção é um processo de "fazer" a História que se quer preservar e passar adiante. As gerações recebem as informações que seus antepassados desejam deixarem registradas, selecionadas e estruturadas para que delas se apreenda uma determinada mensagem. É por isso que Le Goff afirma sobre os efeitos negativos do tombamento, que interfere especialmente na pesquisa feita pelas gerações seguintes de historiadores, que terão de discernir bem o papel de cada monumento em relação ao todo construído.

De acordo com Halbwachs, há vários pontos que estruturam a memória e a inserem na memória coletiva. São eles: os monumentos, lugares de memória, patrimônio arquitetônico e seu estilo, paisagens, datas, folclores, entre outros. Ele ainda explica que a memória é um meio de coesão social, sendo a memória nacional sua expressão mais completa. Pollak já discorda dessa opinião, trazendo à tona que o que se interessa estudar sobre os fatos sociais é como eles se tornam coisas, ou seja, como um monumento veio, na atualidade, a se tornar o que ele é, "(...) como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade" (Pollak, 1989: 4).

Concordo com Pollak, pois uma memória nacional não pode ser uma expressão mais completa da memória coletiva, já que geralmente o que ocorre é uma deturpação dessa memória, que é sempre parcial. A memória nacional, como afirma Pollak, possui seu aspecto destruidor, no qual as minorias obtêm espaço em momentos de crise e, com isso, conseguem se aproveitar da máquina de dominação em seu estado fraco para, enfim, emergir. Estas minorias não deveriam ser reprimidas pelo Governo enquanto representante de um povo, mas sim tratadas como memórias constitutivas da nação pela entidade administrativa nacional. Uma boa gestão pública sabe valorizar o coletivo. A memória não é um meio de conflitos, mas sim, como afirmado por Halbwachs, um meio de coesão e identificação nacional.

Memória, algo suscetível tanto à lembrança como ao esquecimento, é algo vivo e acompanhada de mudanças e novas interpretações da realidade. De acordo com Pollak, a memória tem como característica ser seletiva 5: é um fenômeno construído; é um elemento constituinte do sentido de identidade, continuidade e unidade; além de ser, junto com a identidade, um valor muito disputado e negociado 6. Pollak também afirma que a memória é constituída de acontecimentos (referentes ao indivíduo), dos acontecimentos indiretos, de pessoas e personagens (pessoas do cotidiano do indivíduo, além de personagens indiretos, conhecidos através de pessoas ou por serem importantes para o individuo ou o grupo) e, por fim, de lugares (que recordem lembranças pessoais, de comemoração, etc.).

A aceleração do tempo histórico através do capitalismo, de acordo com Oliveira (2002: 23), proporcionou um forte contraste com o passado, que se encontra morto. O passado não vê, assim, possibilidade de existir em paralelo com o tempo atual e convive num processo oscilatório com o mesmo. É nesta problemática que os bens tombados deveriam ser centralizados, não porque tudo o que é referente ao passado deveria ser destruído, mas sim para se discutir como se implementar sua junção ao presente, de maneira que tal processo não seja um "fardo" para a coletividade carregar sob o status de troféu e/ ou símbolo do passado. Foi a partir desse tipo de discussão que se estabeleceram as noções de "centro histórico" e "conjunto histórico", entre outras, porque estes conceitos implicam, de certa maneira, na separação da maioria dos bens tombados da vida cotidiana da cidade que os abriga, que pode ser movimentada e estar em constante evolução e inovação. Um exemplo claro disto é a cidade de João Pessoa no que se refere à área delimitada como centro histórico, que aparenta mais ser um grande museu inerte no tempo, ao ar livre, enquanto o resto da cidade cresce e evolui. O próprio centro da cidade, que contém a área "histórica" que marca o nascimento da cidade, evolui constantemente, e ainda representa um pólo de comércio na cidade 7.

Como memória coletiva se entende aquela que está viva no cotidiano de um determinado grupo e que é um importante fator de sua identificação perante as gerações seguintes e ao convívio grupal. Quando se afirma que um imóvel não pertence mais a uma comunidade, significa que ele deixou de possuir sentido para o grupo por sua distância temporal em relação ao mesmo. Isso ocorre muito no Brasil: quanto mais antigo o imóvel, mais rápido deseja-se tombá-lo, sem ao menos uma consulta a esse respeito à população de seu entorno.

De acordo com Jeudy, a preocupação com a memória coletiva vem, cada vez mais, obtendo espaço através da multiplicação de museus e do maior destaque para a conservação do legado cultural. Nesse universo, os termos patrimônio, memória coletiva e identidade cultural tornaram-se conceitos freqüentes em inúmeros trabalhos comunitários e no próprio cotidiano (Jeudy, 1990: 02-03). Afinal, esses termos passaram a conotar algo intrinsecamente valoroso e, de acordo com Françoise Choay, são pilares da tribo midiática atual (Choay, 2001: 11). Esse contexto faz com que cada vez mais nações busquem valorizar seu patrimônio histórico-cultural, como um meio próprio de emergir perante o cenário internacional. Afinal, como explicado por Jeudy, a ruína se apresenta como algo necessário para que o homem possua o imaginário histórico (Jeudy, 1990: 03), sendo, desta maneira, um meio de afirmação desse homem perante os outros ou, numa visão macro, de uma nação ou estado perante seus pares.

O micro, ou seja, o homem é, muitas vezes, esquecido do processo de criação da história no que se refere aos órgãos públicos, que por representarem "o todo", o "conjunto", possuem um maior poder em relação a esse processo.

Um grande exemplo do erro da ação pública na gestão do patrimônio histórico-cultural é o processo de restauração/ revitalização do Centro Histórico de João Pessoa. Para Almir Oliveira, as ações falharam pela falta de participação da população local - incluindo-se aí os moradores e comerciantes da área em questão. Sobre a memória que foi priorizada no processo geral de tombamento em João Pessoa e na Paraíba, Oliveira afirma ainda que:

"A memória utilizada como pano de fundo foi a memória que sempre prevaleceu nos processos de preservação/ conservação do nosso patrimônio histórico, uma memória unitário/ centralizadora cujo objetivo foi privilegiar (...) a fundação/construção da cidade por uma elite branca/ católica/ culta sem a participação de mais ninguém." (Oliveira, 2002: 15)

Scocuglia (2004: 73-122) confirma o que foi dito acima ao mostrar, em sua pesquisa, o processo de monumentalização do centro histórico com o atropelamento da comunidade local existente na área, bem como seu processo de despovoamento. Segundo a autora, a priorização ao que é símbolo da elite vem desde o processo haussmaniano 8 de reformulação do centro, com a construção de prédios mais modernos e que conferiam, nos anos 20 e 30 do século passado, um maior status àquela área. Hoje em dia tanto os prédios remanescentes do período colonial como os mais "modernos" se encontram tombados e bem visíveis numa das praças da capital paraibana que é ponto obrigatório para os city tourslocais: a Praça Anthenor Navarro. Quanto ao processo de despovoamento, este veio com a utilização cada vez maior do centro para o comércio, pequenas indústrias, bancos, entre outras atividades terciárias, como também pela significativa diminuição de estabelecimentos como escolas, áreas de lazer e postos de assistência e serviços de saúde. Scocuglia destaca, a respeito do fenômeno:

"O número de habitantes do Centro Histórico (...), em 1987, era de 3.366 (excluídas as favelas e áreas de invasão), com uma densidade média líquida de 52,5 hab/ ha e uma densidade média bruta de 28,8 hab/ ha, em contraste com o crescimento da população total da cidade que, em 1991, atingira 497.600 habitantes e em 2000 cerca de 597.934 hab." (Scocuglia, 2004: 109-110)

Segundo Oliveira, os momentos essenciais do processo de construção dos lugares de memória e exaltação no Brasil foram: a criação do IHGB - Instituto Histórico Geográfico do Brasil, onde havia um maior interesse pela construção de fatos, lugares e datas que viriam a exaltar o país; a criação da Academia Nacional de Belas Artes, que se responsabilizaria pela emergência da nacionalidade através da arte; e, por fim, o Colégio Pedro II, que seria incumbido de repassar a História construída pelo IHGB.

O SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi criado em 1937 para justamente tratar do patrimônio histórico-cultural nacional. E, já em suas primeiras idealizações, percebe-se claramente o ideal de valorização da identidade nacional, como na definição de patrimônio histórico concebida por Capanema, que relegava ao patrimônio a função de entidade valorizadora da nação. Ao longo dos anos a dominação do poder público em relação ao patrimônio ficou clara em fatos como a construção da sede modernista do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, e a preservação e conservação de imóveis coloniais 9.

Oliveira afirma que além da valorização imobiliária, o turismo passou a ser visto como um meio de preservar o patrimônio histórico nacional a partir das décadas de 50 e 60 do século passado. Como conseqüência desse processo, foram criadas a Embratur, Empresa Nacional de Turismo e o CNTUR, Conselho Nacional do Turismo, em 1966; além do fato de que os monumentos e conjuntos históricos receberam a alcunha de "equipamentos históricos". Outro novo órgão foi criado, o Centro Nacional de Referência Cultural, onde se desenvolveram maiores discussões acerca da definição de patrimônio. Contudo, essas se encerraram com o fim do órgão, em 1980, e sua substituição pela Fundação Pró-Memória, mais tarde absorvida pelo IPHAN 10 e as discussões vieram à tona novamente, com o alargamento do conceito de bem cultural 11.

Na década de 90, o presidente Fernando Collor transformou o IPHAN em Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural. Naquele período também surgiu a Lei Rouanet, que atualizou a Lei Sarney (desconto no Imposto de Renda para investimentos na área cultural) e criou o Programa Nacional de Apoio à Cultura, Pronac. Mais tarde o órgão voltaria a se denominar IPHAN, nomenclatura que mantém até os dias atuais.

Ao longo dos anos, novas leis e medidas foram instituídas pelo governo brasileiro em relação ao patrimônio nacional. Um grande avanço nesse sentido foi o Decreto n° 3531, de 04 de agosto de 2000, que regulamentou o registro de bens culturais de natureza imaterial. Sobre a ação do IPHAN e suas parcerias, Oliveira afirma:

"O papel desenvolvido pelo IPHAN (...) desde sua fundação teve caráter unilateral, em que os técnicos do Instituto, suas delegacias/ diretorias, agiam de forma solitária (...). As parcerias com instituições se davam em casos isolados e raros, só passaram a ter uma forma efetiva já em fins da década de 30 e meados da década de 70." (Oliveira, 2002: 67)

De fato esta ação "solitária" mostra claramente as ações centralizadas deste órgão, que recebeu tantas conotações ao longo dos anos e atualmente se apresenta amadurecido, principalmente no que se refere às discussões conceituais.

Em apresentação oral no XXII Simpósio Nacional de História, realizado entre os dias 27 de julho a 01 de agosto de 2003, na cidade de João Pessoa, Márcia Chuva, técnica do IPHAN, afirmou que a ação do órgão mais presente e eficaz se refere ao tombamento, haja vista que ele não conta com recursos suficientes para a fiscalização.

No que se refere ao patrimônio imaterial, a documentação do mesmo é de fato o recurso mais eficaz a ser implementado, porque como a cultura é viva não há porque se preocupar em mantê-la inerte. Entretanto, o patrimônio edificado no Brasil passa por situações alarmantes no que tange a sua conservação e manutenção, quer seja pelos gastos onerosos de conservação, que inibem os órgãos públicos a agir de maneira maximizada, e/ ou pela falta de apego por parte da própria população, que é o ente mais próximo do bem.

No caso da Paraíba, e mais especificamente em João Pessoa , são comuns as notícias sobre prédios históricos e já tombados que se encontram em fase terminal de desmoronamento, como mostra matéria veiculada no jornal O Norte On Line em 5 de dezembro de 2004, tratando daqueles prédios mais recentemente ameaçados de desabamento no centro da cidade:

"Após o desabamento de parte de um prédio na rua Maciel Pinheiro e da desativação do Paraíba Palace Hotel, a sociedade pessoense voltou a atenção para a situação dos prédios históricos de João Pessoa. Em agosto passado, a Comissão do Centro Histórico, uma coordenadoria adjunta do Iphaep, realizou um levantamento de todos os prédios existentes na área. O resultado foi que 65 imóveis, localizados entre as Praças Álvaro Machado e Monsenhor Walfredo Leal, estão em situação de risco.

Esta é apenas uma das mais recentes notícias, dentre uma série já conhecida pela população pessoense, no qual donos de imóveis tombados não se interessam por sua conservação, pelo fato desses bens não se situarem em locais valorizados em termos imobiliários e em relação ao turismo ou outras atividades econômicas e, conseqüentemente, não serem vistos como bons investimentos. O IPHAEP, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba, vem tentando despertar a consciência para a preservação em debates públicos, mas o medo de prédios históricos desabarem ainda é grande.

É claro que essa situação não é completamente generalizada: há também prédios que foram restaurados e inclusive proporcionaram certa publicidade para seus proprietários, como no caso mostrado pelo jornal O Norte On Line , em matéria de 13 de fevereiro de 2005, em que o empresário João Batista Monteiro Xavier, da Gráfica JB, restaurou um casarão em Tambiá, construindo um anexo para a sede da empresa, com o propósito de transformá-lo num espaço direcionado para eventos culturais.

A solução encampada pelo Governo para o Centro Histórico de João Pessoa, que é a de promover sua preservação através do Turismo, ainda não deslanchou, principalmente pelo que há anos já é muito escutado pelos profissionais e estudantes de Turismo da cidade: os próprios visitantes reclamam constantemente que não há o que fazer no centro histórico - não há guias para fornecer informações sobre os monumentos que lá se encontram, não há população residente para fazer contato, não há equipamentos de apoio -, enfim, o centro histórico não possui uma significação própria.

O contexto da criação do IPHAEP na Paraíba veio de um movimento nacional de cobrança de medidas por parte do Governo Federal para com os Estados, através do I e do II Encontro de Governadores para a Preservação do Patrimônio Histórico Artístico, Arqueológico e Natural do Brasil, conhecidos respectivamente como Compromisso de Brasília e de Salvador. De acordo com Oliveira, à amplitude nacional caberia a política cultural via desenvolvimento do mercado turístico, com o privilégio ao patrimônio arquitetônico conhecido como pedra e cal, e ao âmbito estadual, seria cabível a constituição de

"(...) nosso órgão selecionador/ sacralizador/ preservador/ conservador dos bens patrimoniais dignos de serem guardados por se reportarem a fatos, momentos e personagens importantes para a memória e história paraibana." (Oliveira, 2002: 73)

O Decreto-Lei que criou o IPHAEP data de 31 de março de 1971, mas de acordo com Almir Oliveira o órgão só passou a funcionar em 1974, com os incentivos do Fundo Estadual de Cultura. Como evidenciado em Oliveira, em seus primeiros anos de atuação, o Instituto privilegiou os bens imóveis, como também ficou claro o direcionamento para um único tipo de memória, a dominante. Um alargamento da atuação dos tombamentos para o imaterial iniciou-se com a gestão de Francisco Sales Gaudêncio, em 1999 - sendo a questão imaterial uma discussão mais do que recente para a Paraíba e que recebe maiores proporções com o desejo, de boa parte da população, para tombar o Pôr-do-Sol do Jacaré, conhecido ponto turístico de Cabedelo e altamente freqüentado pela população da Grande João Pessoa.

Com o privilégio de um único tipo de memória, como já debatido, é fácil mostrar a falta de interesse do pessoense em relação à sua história. É dever dos órgãos públicos a preocupação com o que é público e, por isso, com os vários tipos de memória que compõem o cotidiano de um determinado local. Como expresso por Jeudy:

"O reconhecimento de uma herança cultural e sua transmissão não se relacionam somente com preocupações políticas, elas supõem a continuidade de uma representação da história, tanto das idéias quanto dos acontecimentos." (Jeudy, 1990: 05)

Desta maneira, percebemos com clareza que este privilégio a uma única memória, como bem defendido por Almir Oliveira, é um dos pilares para a falta do sentimento de paraibanidade por parte do pessoense. Este desconhece sua História e não se identifica com os monumentos tombados e que deveriam ser a descrição física dessa História. O centro histórico não possui significado algum para grande parte da população da cidade, mas aquela que ainda vive no local, especialmente na comunidade do Porto do Capim e que se auto-define como a única que de fato representa e possui apego pelo local, sofre a pobreza e falta de condições de uma vida saudável. Trata-se de uma comunidade que sempre se mostrou disponível não só quanto às discussões acerca da revitalização do Centro Histórico, como também se mostra disposta a receber bem aqueles que passam por lá. Há relatos, inclusive, de residentes que convidam o visitante para comer em sua casa, fator extremo de receptividade e que deveria ser utilizado pelos órgãos públicos da cidade e do Estado como um importante atrativo. Mas, como isto é descartado, a área da comunidade não foi restaurada e um dos prédios mais importantes do local, a antiga Alfândega, desmoronou recentemente, por não resistir às chuvas. Em pesquisa desenvolvida em 2003 sobre o turismo no local, Juliana Coelho (apud Bezerra, Kiyotani, Brito & Feliciano, 2004) apurou que 93% da população do Porto do Capim aceitavam a atividade turística no local, e 20% destes 93% aprovavam a inserção da área nos projetos de revitalização turística definidos pela Comissão do Centro Histórico.

A preservação da memória coletiva remete-se a manutenção de uma identidade de grupo, no qual Pollak já havia mostrado vários meios para isto, como as datas, folclore, entre outros. A área referente ao centro histórico na cidade é propícia às ações de restauração e revitalização, mas não inclui a população do Porto do Capim, porque a mesma, com toda sua identidade local, se encontra fora das discussões e do planejamento em si acerca do local. E, como importante informação para o turismo, esta população de baixa renda vive, em parte, ainda da pesca, atividade implementada no local desde a colônia, valendo frisar, ainda, que o Porto do Capim foi o primeiro porto da cidade e o local onde a mesma nasceu. O turismo cultural no local, tendo o apoio da comunidade, que já se mostrou, como dito, bem aberta às discussões sobre o turismo, seria uma ótima medida para revitalizar o centro histórico que atualmente se encontra sem significação própria.

Numa recente pesquisa implementada pela TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo de Televisão, sobre qual seria o cartão postal de João Pessoa, havia seis locais para se escolher, e, o Centro Cultural São Francisco ficou em último lugar na enquete, evidenciando uma falta de identificação da maioria da população do município com o monumento barroco. O vencedor foi o Parque Sólon de Lucena, mais conhecido como a Lagoa 12. A Lagoa é tombada e está situada no centro, sendo paisagem obrigatória de vários cidadãos por sua posição. A identificação da população com o local é indiscutível. Os órgãos públicos responsáveis pela memória local deveriam repensar suas ações de acordo com esta ótica. É conhecimento de todos que um dos grandes fatores pelo qual o turismo não evolui na capital da Paraíba é por esta falta de apego do cidadão local, a falta de paraibanidade .

Vários fatores históricos podem ser enumerados para esta falta de paraibanidade, não é pretensão deste trabalho elencá-las em sua complexidade, mas apenas comentar um deles: a ação de órgãos públicos sobre a memória local, que por anos vem desprezando e esmagando uma rica memória coletiva. O despertar para a cultura e memória local é antes de tudo uma valorização da mesma.

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Notas

1) Graduanda dos cursos de Turismo e História da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora bolsista PIBIC-UFPB/ CNPq no projeto Aldeamento, Igreja, Ruína: uma arqueologia histórica de Nossa Senhora de Nazaré do Almagre (1589-2004) , sob orientação da Profª Dra. Carla Mary S. Oliveira. E-mail: <annamaria.lira@gmail.com>.

2) Orientadora da pesquisa. Historiadora e Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail: <cms-oliveira@uol.com.br>.

3) Para maiores informações sobre a reutilização de prédios históricos, ver Françoise Choay (2001: 219-225). Nessa discussão a autora enumera vários problemas referentes a reutilização de prédios históricos como a desfiguração advinda de reformas e restaurações mal realizadas como também a mudança da função do edifício.

4) A discussão sobre revitalização turística de bens patrimoniais em João Pessoa ocorre principalmente em relação ao Centro Histórico da cidade, que passou por processos de restauração, mas não desperta apego ou motivação por parte da maioria da sociedade pessoense para freqüentar o local, o que se reflete também em seus visitantes.

5) É comum pensar na memória apenas como lembrança, contudo a mesma é seletiva e também implica em esquecimento, até porque é impossível ao ser humano lembrar-se de tudo.

6) Esta negociação é advinda de memórias diferenciadas que vão, aos poucos, construindo um ambiente de atuação em comum e escolhendo-o de acordo com seus interesses.

7) Em aula no curso de extensão "História e Patrimônio Histórico-Cultural para o Turismo" (ministrado por docentes do Departamento de História da UFPB para jovens de baixa renda, através de uma parceria com o Governo do Estado da Paraíba), a professora Regina Behar colocou bem a situação da área central de João Pessoa, que inclusive é uma característica que conferiria uma grande atratividade turística ao local: ela informou que como o centro de João Pessoa não foi tombado pelos órgãos responsáveis como um conjunto urbano, mas apenas uma pequena área, este pôde com o tempo se estabelecer de modo que todos os tempos históricos da cidade são encontrados, por exemplo, na Praça Venâncio Neiva, com prédios do período colonial e requintados sobrados do início do século XX.

8) O termo se refere à Georges Eugène Haussmann (1809-91), urbanista francês que redesenhou Paris sob ordens de Napoleão III (1852-70), com a construção de largas avenidas e parques espaçosos, destruindo grandes setores da cidade medieval em benefício da modernização da metrópole das luzes. Suas inovações tiveram grande influência em muitos projetos de reurbanização do início do século XX desenvolvidos na Europa, na América Latina (especialmente Brasil e Argentina) e em muitas das colônias francesas então espalhadas pelo mundo.

9) Para maiores informações ver a dissertação de mestrado de Almir Félix Batista de Oliveira (2002).

10) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nova nomenclatura do antigo SPHAN.

11) Infelizmente este movimento foi encerrado com a morte do diretor do IPHAN, Aluísio Magalhães (que também havia sido diretor do Conselho Nacional de Referência Cultural) e volta à cena novamente em 1985, com a redemocratização do país, de acordo com Oliveira (2002).

12) De acordo com o Jornal da Paraíba, a campanha de escolha do cartão postal de João Pessoa ocorreu do dia 23 de julho à 04 de agosto, com a Lagoa do Parque Sólon de Lucena saindo vitoriosa com cerca de 14 mil votos de um total de aproximadamente 32,3 mil votos. Os outros quatro candidatos a cartão postal foram: Centro Cultural de São Francisco, orla do Cabo Branco, Farol do Cabo Branco, Hotel Tambaú.


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