1er Congreso Internacional "Pobres y Pobreza en la Sociedad Argentina"

Universidad Nacional de Quilmes - Argentina

Noviembre 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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A CONSTRUÇÃO DO "TRABALHADOR NACIONAL": ESTADO E POBREZA RURAL NO BRASIL DE INICIOS DO SECULO XX 1

Sonia Regina de Mendonça - Depto. História (Universidade Federal Fluminense).

Apresentação.

Repensar a questão agrária brasileira significa, de meu ponto de vista, repensar, sobretudo, as relações entre Estado e Sociedade no Brasil em perspectiva histórica, uma vez que, face ao progressivo aprofundamento da intervenção estatal em todos os domínios do econômico-social, a agricultura foi a primeira a vivenciar esse processo, cujas raízes datam da própria Abolição da escravidão no país.

De um enfoque sócio-histórico é possível afirmar que, a despeito do localismo e do privatismo tão característico da sociedade brasileira de inícios do século atual, a construção do capitalismo no Brasil contou, desde seus primórdios, com uma considerável interferência do Estado junto à agricultura, bem anterior àquela que realizaria em prol da industrialização, visando, sobretudo, impedir a evasão dos homens do campo - tornados "livres" em 1888 - do circuito mercantil. Por isso mesmo, creio ser pertinente resgatar a trajetória histórica desta intervenção, visando consolidar, sem o recurso a interpretações genéricas ou diacrônicas, um conhecimento mais aprofundado acerca das relações entre Estado, Agricultura e Pobreza no país.

particularmente no tocante aos constrangimentos impostos ao homem do campo no Brasil do pós-Abolição que acredito ser relevante analisar essa precoce interferência estatal junto à agricultura em inícios do século XX, uma vez residir aí, segundo minha ótica de análise, o marco do processo de construção do dito capitalismo autoritário no Brasil 2 , mediante a redefinição das formas de trabalho compulsório imediatamente subsequentes ao fim da escravidão no país, cerne de uma indissolúvel, ainda que contraditória, aliança entre proprietários agrários e Estado.

Nesse ponto, é importante delimitar os parãmetros a partir dos quais estarei me referindo à pobreza neste trabalho.

Considerando-se que em 1919, 75% da população economicamente ativa brasileira trabalhava na agricultura 3 e que, ademais, inexiste qualquer material censitário que opere com a variável renda até anos bem recentes no país, fica patente que o maior contingente da pobreza no Brasil concentrava-se, forçosamente, na área rural, ao menos até 1960 4 . Além disso, dadas as características peculiares da construção do capitalismo no Brasil no período, sobretudo aquela que diz respeito à superexploração do campo enquanto condição necessária para a acumulação urbano-industrial, através da permanente recriação de uma periferia de relações de trabalho não capitalistas que produzissem, a baixos custos, a cesta de gêneros necessários à reprodução da força de trabalho urbana 5 , fica evidente que os homens livres e pobres rurais - cujo acesso à propriedade da terra lhes foi brutalmente vedado 6 - só podem ser aqui apreendidos enquanto mão-de-obra, tornando-se pobreza e mão-de-obra rural termos praticamente intercambiáveis.O específico da conjuntura histórica aqui abordada reside, quanto à temática proposta, na tentativa, empreendida pelo Estado, de arregimentar/fixar e disciplinarizar essa força de trabalho, configurando as bases autoritárias da formação do mercado de trabalho no Brasil a partir do próprio campo.Para tanto, optei por focalizar a atuação de uma das agências do aparelho de Estado brasileiro, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), no período compreendido entre 1909 (quando de sua fundação) e 1930 (quando se inauguraria a chamada "era Vargas"), cuja política de arregimentação/fixação de mão-de-obra no campo - executada enquanto um programa de difusão do ensino agrícola -, comportou instrumentos os mais variados. Todos eles, diga-se de passagem, integravam-se à pauta das reivindicações de um certo conjunto de grandes proprietários, organizado pela Sociedade Nacional de Agricultura, aparelho privado de hegemonia encarregado da articulação frações dominadas da classe dominante agrária e que logrou aparelha-lhas junto ao órgão público em questão 7 . esta política pública arregimentadora e disciplinarizadora da mão-de-obra rural e suas respectivas estratégias, o objeto deste trabalho, que pretende demonstrar o caráter autoritário inerente à construção do mercado de trabalho no Brasil, a partir do estudo dos mecanismos de enquadramento e subordinação do homem rural brasileiro - representado enquanto pobre, indolente e ocioso - desenvolvidos por essa agência do aparelho de Estado republicano ao longo das três primeiras décadas do século.

Estado e agricultura na Primeira República: considerações preliminares.

Tomando como pressuposto teórico que o Estado é uma relação social e, enquanto tal, em permanente processo de construção/transformação, numa interação cambiante com outras dimensões que com ele integram uma dada configuração social, julgo oportuno discutir a relação Agricultura/Estado no Brasil do período, partindo do estudo da constituição e atuação de uma agência do poder público especialmente voltada para as questões do campo. Sob tal perspectiva, é possível dar conta não somente de políticas públicas agrícolas, em si mesmas, mas também do simultãneo processo de institucionalização material do próprio Estado, de acordo com as pressões e contrapressões de grupos ou segmentos sociais que nela buscavam inscrever seus interesses particulares.

Uma vez que as práticas político-institucionais que sustentam a chamada modernização da agricultura, permanentemente recorrente, expressam sempre tentativas de reorientação da atividade para o atendimento dos interesses de certos setores de produtores a ela ligados, temos que os sucessivos processos para intentá-la, ao longo do tempo, fundaram-se, no mais das vezes, em "modelos" que se colocaram enquanto superadores do ex-novo, logo tornado tradicional. Dessa feita, os mecanismos recomendados ao longo da Primeira República como capazes de dinamizar e "regenerar a agricultura" - representada enquanto em estado de crise -, se conformaram, a partir da atribuição de qualificações negativas ao trabalhador rural, forçosamente vinculado, direta ou indiretamente, à recém-abolida escravidão - tais como negros, mulatos e caboclos - o que conferia ao discurso da "modernização agrícola" um caráter perenemente domesticador e civilizatório.

Assim, todas as propostas de uma "nova" agricultura - racional, científica e progressista - capaz de superar o "atraso" e a "rotina" que lhe eram atribuídas 8 , acabavam por imputar aos "estreitos horizontes" do homem do campo a condição de obstáculo à modernidade, face à sua suposta "resistência às inovações e baixo nível de escolaridade", donde resultava sua suposta incapacidade de operar com cálculos e procedimentos racionais.Com base nesses pressupostos, distintos segmentos de grandes proprietários rurais advogaram a maior intervenção do Estado em matéria de agricultura, não apenas no tocante à criação de melhores condições para a circulação de seus produtos, como também para sua própria produção, ainda que nas fímbrias de um discurso liberal já desgastado, sobretudo após a 1a.

Guerra.

A recriação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio em 1909 foi um dos marcos desta tentativa, vindo ele a constituir-se num organismo responsável pela articulação dos interesses do que denomino frações dominadas da classe dominante rural brasileira 9 .Veículo e veiculador das pretensões e propostas "modernizantes" de frações da burguesia agrária brasileira secundarizadas no bloco no poder e abrangendo um vasto leque de atribuições face à agricultura nacional, o MAIC pouco cuidaria das demandas específicas da grande burguesia paulista, viabilizando prioritariamente políticas agrícolas em prol das frações acima mencionadas, prefigurando, em muitos aspectos, práticas institucionais que somente seriam ratificadas no pós-30 10 . Devido a seu caráter de espaço político-institucional articulador das demandas de segmentos de grandes proprietários oriundos dos complexos agrários menos dinãmicos do país, o MAIC contribuiria para uma relativa estabilidade do sistema político oligárquico então vigente, perpetrando práticas que minimizassem a desigualdade de seu funcionamento. Deste ponto de vista, a constituição, expansão e atuação deste órgão revela-se bastante esclarecedora tanto da existência de um eixo alternativo de poder na 1a. República, quanto de um projeto contra-hegemônico de "modernização da agricultura" em muito distinto daquele proposto pela grande burguesia cafeeira paulista 11 .Este foi o caso de sua política de arregimentação/disciplinarização de mão-de-obra rural, legitimada pelo discurso de superação da pobreza vigente no campo, porém levada a efeito através de instituições que se constituíram numa resposta às demandas dos grandes proprietários agremiados em torno da Sociedade Nacional de Agricultura incapacitados, por exemplo, de adotar a solução imigrantista. Autoritarismo e controle social resumiriam o escopo central da ação do Ministério no que tange à formação do mercado de trabalho no país, inaugurando práticas que, para além de perpetuarem-se no tempo, através de sucessivas redefinições, em muito contribuíram tanto para o fortalecimento político das frações agrárias nele representadas, quanto para a perpetuação, no imaginário social brasileiro, de uma representação do homem do campo até hoje vigente no país.

Pobreza rural e política de arregimentação da mão-de-obra.

Na medida em que a Abolição abriu caminho para a configuração de um mercado de trabalho no país, produzindo homens juridicamente livres e teoricamente dotados de mobilidade, o fundamento das tradicionais representações acerca do "atraso" da agricultura brasileira deslocou-se das condições naturais, para o tipo de trabalhador rural egresso da escravidão, corroborando a segmentação do binômio homem versus natureza, que daria respaldo às ações sobre o primeiro, no sentido de adequá-lo às potencialidades, quase infinitas, da segunda. Por intermédio dessa leitura da nova realidade, buscava-se preservar a estrutura da propriedade agrária, sem ameaças ao ritmo da produção mercantil. Simultaneamente, buscava-se legitimar várias modalidades de intervenção "pedagógica" sobre os homens livres e pobres do campo, de modo a evitar sua fuga ao mercado. Concluindo, por exemplo, que "Nossos campônios são baldos até dos conhecimentos mais comezinhos e o único meio de combater este problema é fornecer-lhes escola primária e aprendizado agrícola para seus filhos...Só assim será possível reunir essa grande massa anônima que se vai degradando pela miséria, fazendo com que ela longe de ser uma ameaça contra a vida rural, seja um elemento útil ao país e à lavoura" (Relatório do Ministério da Agricultura, doravante RMA, 1909-10, vol. I, pp.57-8. Grifos do autor), a fala ministerial introduziria os parãmetros a partir dos quais seria pensado o objeto de sua atuação: a arregimentação da mão-de-obra rural, apropriada enquanto uma questão populacional. Neste viés, a temática da pobreza tornava-se alvo explícito da governamentalidade, i.e., da vigilãncia e do controle exercidos a partir de aparelhos de Estado, na medida em que tal conceito imbricava-se às noções de segurança e soberania, particularmente caras numa formação social onde o processo de mercantilização da terra ainda não atingira sua plenitude 12 .Em nome da segurança/soberania legitimar-se-ia todo um conjunto de saberes e práticas - donde emergiram as primeiras escolas de Agronomia no país - que impedissem a difusão do acesso à terra e o desenvolvimento de atividades produtivas fora do circuito mercantil. Em seu nome também se fundaria um discurso jurisdicista e institucionalizante, destinado a dar substrato à Nação, mediante a incorporação de todos os elementos tidos como marginais a ela, mormente aqueles identificados à recém-abolida escravidão. Estes seriam o objeto da noção - construída por contraposição à de "massa rural" - de "trabalhador nacional".

Diante disso, as práticas oficiais definidas como de "qualificação" de trabalhadores ou de "resgate da pobreza", revelavam seu cunho autoritário e repressivo, materializando-se em instituições que eram tão somente arregimentadoras e imobilizadoras da mão-de-obra rural, embora tidas como capazes de, simultaneamente, controlar sua distribuição espacial, satisfazendo aos interesses de grupos agrários distintos, e. impedir o avanço dos males do urbanismo - sobretudo o êxodo rural.

No ãmbito dessa problemática geral, a atuação do MAIC pode ser apreendida em duas direções: a) construindo, distribuindo e fixando o "trabalhador nacional" e b) assistindo e incorporando as comunidades indígenas, de modo a elevá-las a esta última condição. Suas expressões institucionais consistiram, respectivamente, no Serviço de Ensino Agronômico e no Serviço de Proteção aos ãndios e Localização de Trabalhadores Nacionais, cada um deles atuando através de agências específicas, porém voltadas para igual fim: a construção do "espaço nacional" enquanto representação simbólica do mercado de trabalho e a elaboração de uma "ética do trabalho" para os homens do campo, ambos sob a tutela do Estado. Ao fim e ao cabo, foi a noção de "trabalhador nacional" que presidiu o ordenamento e a hierarquização das relações de trabalho no campo, sempre em nome da eliminação da pobreza As instituições de "ensino agrícola".

Dentre os instrumentos da ação pública supostamente referidos à problemática da mão-de-obra rural destacaram-se aqueles relativos à educação agrícola, subordinados ao aparatoso Serviço de Ensino Agronômico, implantado a partir do sofisticado modelo norte-americano, com o objetivo de conferir ao ensino o papel de mola propulsora da "modernização agrícola" pretendida. Sob sua alçada estaria uma série de agências difusoras do chamado ensino agrícola em todos os seus níveis - do superior até o elementar, passando pelo ensino ambulante - tidas como imprescindíveis à construção do "trabalhador nacional", que corresponderia ao resgate da mão-de-obra rural do estágio de "improdutividade" e "pobreza" que lhe era atribuído, face ao "caráter eminentemente experimental que deverá ter em todas essas modalidades" (RMAIC, 1909-10, p.65).

Sob este ponto de vista, enquanto a Escola Superior de Agricultura de Medicina Veterinária (ESAMV/RJ) responsabilizava-se pela difusão do ensino agronômico - qualificando os novos gestores da agricultura brasileira - os demais níveis ficariam a cargo de instituições especiais - sobretudo os aprendizados agrícolas (AAs) e os patronatos agrícolas - anexos ou próximos das estações experimentais, campos de demonstração e postos zootécnicos do Ministério, visando facilitar seu objetivo de "produzir trabalhadores aptos ao manejo de máquinas e técnicas modernas de cultivo, ensinando-lhes sobretudo seu valor econômico" (RMAIC, Ibid., p.67).

Começando pelos Aprendizados Agrícolas, importa destacar que estariam encarregados de ministrar um curso único e regular, com duração de dois anos, objetivando fornecer "a aprendizagem dos métodos racionais do trato do solo, bem como noções de higiene e criação animal, além de instruções para o uso de máquinas e implementos agrícolas" (RMAIC, 1910, p.57). Paralelamente a tais noções, e supondo substituir-se à escola primária rural, os AAs manteriam um curso de primeiras letras, cujos rudimentos contribuíssem para o aprimoramento da "qualificação técnica" de seu público-alvo: jovens entre 14 e 18 anos, comprovadamente filhos de pequenos agricultores.

Funcionando sob o regime do internato, o que revela seu caráter até certo ponto segregacionista, os AAs eram obrigados a possuir organização similar à de uma grande propriedade agrícola, com todas as instalações tidas como necessárias aos fins colimados, incluindo desde cocheiras, silos ou pomares, até instalações para o beneficiamento da produção, etc., o que asseguraria o caráter eminentemente pragmático de seu "ensino", baseado na pedagogia pelo exemplo.

ã guisa de remuneração pelos serviços prestados, atribuía- se uma diária a cada interno, mantida sob a guarda da direção de cada estabelecimento, juntamente com o produto da renda obtida através da venda dos gêneros aí produzidos às comunidades vizinhas. O Ministério recomendava, entretanto, que parte dela deveria ser distribuída entre os alunos "sob a forma de prêmios à produtividade e ao desempenho de cada um", consistindo, tal expediente, numa estratégia de divulgação dos padrões de competitividade próprios à organização mercantil da produção (RMAIC, 1910, pp.59-60).

No período compreendido entre 1911 e 1928, o MAIC manteve entre 8 e 5 aprendizados, onde matricularam-se entre 150 e 300 menores/ano, distribuídos pelos diversos estados federação, particularmente os do Nordeste, privilegiados com 50% desses totais, em consonãncia com as principais demandas veiculadas pela Sociedade Nacional de Agricultura 13 . Dotados da faculdade de estabelecer seus próprios regulamentos, os AAs difeririam entre si: enquanto alguns permaneceriam voltados para a formação de "operários agrícolas" propriamente ditos (como os da Bahia e Rio Grande do Sul), outros formariam "trabalhadores aptos aos serviços da pequena propriedade rural, principalmente no que se referem à fruticultura, horticultura e às indústrias delas derivadas", como o de Barbacena, em Minas Gerais 14 .Malgrado seu pequeno impacto quantitativo, a importãncia de tais instituições residiu no fato de difundir-se o ensino agrícola enquanto uma estratégia da dominação simbólica exercida pela classe dominante sobre o produtor rural, visando assegurar sua integração à dita "agricultura moderna", mediante a extensão da idéia de progresso ao campo. Uma vez colocado o saber agrícola à porta do trabalhador, a oposição entre uma agricultura "moderna" e outra "arcaica" explicitava-se, naturalizando a subordinação da segunda à primeira, ambas despidas de seu conteúdo de classe. Como se vê, o "ensino elementar agrícola", de cunho moralizante e específico, viabilizado por instituições isoladas e isoladoras, apontava sempre numa direção civilizadora, em cujo nome justificava-se a manutenção dos que eram seu objeto, numa condição de imobilidade, própria a viveiros de mão-de-obra.

Ademais, vulgarizando uma imagem idealizada de "produtor rural moderno", os AAs contribuíram para a negação da própria realidade social do campo, neutralizando qualquer possibilidade de questionamento da estrutura agrária vigente, mediante seu fim último de construir uma "nata" de futuros "cultivadores esclarecidos" - os "trabalhadores nacionais", não mais pobres ou "massa" - que, perpassados pelos princípios da racionalidade econômica, poderiam transformar-se em guardiães da nova "ética" do trabalho destinada a precipitar os produtores rurais, para e pelo consumo, no jogo da economia de mercado.

A educação agrícola instituir-se-ia em princípio ordenador e hierarquizador da ordem social rural, dando suporte ao mito da "democracia rural", ao ensejar a crença de que o pobre e "semi-ilustrado" produtor teria em comum, tanto com o grande proprietário, quanto com seus professores, a possibilidade do acesso à terra e à instrução.

Em certas circunstãncias, contudo, a criação de agências de ensino prático agrícola serviu como instrumento de atuação sobre outras categorias da pobreza, não diretamente vinculadas à agricultura, funcionando como paliativo, por exemplo, à questão social urbana, bastante agudizada durante a conjuntura da Primeira Grande Guerra. A criação pelo Ministério dos patronatos agrícolas (PAs), no ano de 1918, seria uma resposta a esta circunstãncia. Rurais por necessidade e agrícolas, mais por conveniência do que por vocação - uma vez que o trabalho no campo era considerado o único meio de preservar a auto-subsistência e manutenção dessas categorias 15 -, os patronatos supostamente destinavam-se a prestar assistência à infãncia desvalida das cidades, uma vez que "Em todos os centros populosos cresce, dia a dia, o sombrio exército de meninos abandonados e pobres, criminosos e malfeitores de amanhã, pejando os tribunais, enchendo as cadeias, em vez de constituírem elementos computáveis da economia...Dar a mão a essas crianças impelidas à ociosidade e ao vício, assegurar-lhes uma atmosfera oxigenada de bons sentimentos, prendê-las à fecundidade da terra ou habilitá-las à tenda da oficina ou de uma profissão é transformar cada uma delas em fator de engrandecimento coletivo" (RMAIC, 1918, p.141. Grifos do autor).

Associando as noções de ensino popular e defesa militar - mais uma vez a questão da segurança - o texto da lei que criou os PAs deixava claro o escopo de sua atuação, a despeito da retórica filantrópica com que se os justificava: os patronatos seriam uma alternativa às tradicionais instituições presidiárias urbanas, tidas por degradantes e infames. No entanto, por seu próprio caráter, acabariam produzindo um outro tipo de detentos, terapeuticamente adestráveis por essas "escolas de trabalho", tidas por adequadas a "servirem de freio às tendências anárquicas intoleráveis", a partir das quais se representava um novo ator presente na cena do social: o proletariado 16 . No cumprimento de suas finalidades, os patronatos agrícolas eram definidos como núcleos de ensino profissional destinados a habilitarem seus internos em horticultura, jardinagem, pomicultura, pecuária e cultivo de plantas industriais, através de cursos simultãneos de primeiras letras e profissionalizante, cuja clientela era composta por menores órfãos, na faixa entre 10 e 16 anos.

Corroborando sua faceta de instituição repressiva e autoritária, importa mencionar os únicos tipos de agentes legalmente habilitados a aliciar esses jovens: justamente os chefes de polícia e os magistrados, "guardiães" da ordem social.

Entre 1918 e 1928, o número desses patronatos se elevaria de 5 para 16, com um total de internos ampliado de 708 para 2.579 menores (RMAIC, 1928, p.136), sendo digno de nota o fato de alguns deles localizarem-se no próprio interior de fazendas pertencentes a grandes proprietários de prestígio político local 17 . A par das noções de agrotecnia e veterinária, o ensino aí ministrado incluía, diversamente dos AAs, disciplinas como educação cívica, ginástica e exercícios militares, de modo a "inspirar e arraigar o amor à pátria e à república e o sentimento dos direitos e deveres praticados na vida social" (RMAIC, 1918, p.139), ratificando a afinidade estabelecida entre progresso e segurança.

Por tudo isso, seriam essas instituições talhadas para o exercício da função arregimentadora de uma mão-de-obra rural disciplinada, espacialmente concentrada e apta ao trabalho agrícola semi-especializado tão necessário numa conjuntura como aquela marcada pelo "esforço produtivo" incentivado pelo Comitê da Produção Nacional, durante a 1a Grande Guerra 18 . A função desempenhada pelos patronatos - mistos de reformatórios e centros de qualificação de trabalhadores - no fornecimento de mão-de-obra barata e adestrada para a grande lavoura destaca-se quando atentamos para a abrangência nacional que lhe foi conferida pelo Ministério 19 .Mais do que os próprios AAs, os patronatos deveriam ser auto-sustentados, mediante a produção de uma renda, oriunda da venda, às populações vizinhas, dos produtos aí cultivados. Face a tal imposição, a maioria dos PAs iria especializar-se na produção de gêneros da chamada "lavoura branca", integrada por espécies como feijão, arroz ou milho, por exemplo. Além disso, em determinados patronatos, os internos seriam adestrados para o "trato científico" de determinadas espécies de amplo grau de comercialização no mercado interno local, tal como o algodão - nas instituições de Pernambuco -, ou mesmo a cana-de-açúcar - no caso dos demais patronatos localizados no Nordeste do país.

A renda total produzida pelos patronatos era recolhida - após separado o necessário para os gastos com a manutenção da instituição - às Inspetorias do Ministério, transformando-se, dessa feita, em fontes subsidiárias do orçamento da Pasta. Isto significa afirmar que, além de consistirem em núcleos adestradores e imobilizadores de trabalhadores rurais, relativamente qualificados e tangenciados pelo "saber científico" inculcado pelos agrônomos, os patronatos produziam igualmente um contingente social que pagava por sua própria vigilãncia e disciplinarização, sob a forma de uma produção agrícola mercantilizada, sem ônus para o Estado.

Para dar visibilidade ao impacto produzido por ambas as instituições disciplinarizadoras da mão-de-obra rural, elaborou-se o Quadro I, a seguir.

QUADRO I - MAIC: NUMERO TOTAL DE INSCRITOS EM PATRONATOS E APRENDIZADOS AGRãCOLAS.

O Quadro dá a perceber, de imediato, o maior sucesso da iniciativa ministerial no tocante aos patronatos, cujo número global de internos, entre 1918 e 1930, correspondeu a mais de seis vezes o total de inscritos nos aprendizados.

Tal fato pode ser explicado em função de inúmeros fatores, dentre os quais se destaca a menor preocupação ministerial com a efetiva qualificação dos filhos de agricultores, em detrimento da arregimentação de menores órfãos de extração urbana, numa tentativa de lavrar dois tentos simultãneos: eliminar excedentes desses "indesejáveis" das grandes "vitrines" em que se constituíam as capitais dos principais estados da Federação brasileira e transformar esses pobres em "trabalhadores nacionais", disponibilizando-os ao trabalho nos latifúndios dos complexos agrários menos dinãmicos do país 20 .Tal fato pode ser corroborado pelas visitas que, periodicamente eram realizadas por fazendeiros aos Patronatos, com o objetivo de selecionar internos - i.e., "melhores alunos" - para agregarem o contingente de trabalhadores de suas unidades produtivas (RMAIC, 1920, p. 324).

Instrumentos de fixação dos nacionais.

A ingerência do MAIC no processo de formação do mercado de trabalho também pode ser analisada a partir da atuação do Serviço de Proteção aos ãndios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Justificada sua implantação, em 1910, por intermédio de uma retórica integracionista, o principal objetivo desta agência consistiria no alargamento das fronteiras - a um só tempo simbólicas e econômicas - da Nação, mediante a implementação de práticas militarizantes, destinadas a transformar meros contingentes da população pobre em produtores mercantis ("trabalhadores nacionais").

Neste sentido, destacaram-se, dentre as atribuições do órgão, as tarefas ligadas à fixação do "trabalhador nacional", ganhando relevo a ideologização da identidade estabelecida pelo discurso oficial entre os processos de formação do povo e construção do mercado de trabalho, uma vez abolida a escravidão. Segundo o ministro Rodolfo de Miranda, quando do estabelecimento do órgão:

"A escravidão foi a morte do estímulo da iniciativa dignificadora e da expansão econômica...O trabalho nada produzia para o trabalhador. E é relembrando esse quadro de miséria que sinto o valor da obra que incumbe realizar com a localização de trabalhadores nacionais. Estes são, estou convencido, os descendentes dos mártires da escravidão e da espoliação indígena, agora, em parte, argamassados com os herdeiros dos usurpadores. uma obra de reparação e fraternidade...Na atualidade o Brasil não é constituído por um só povo; há no seio da própria Pátria duas populações que se desconhecem, que não se entendem...E é para operar a auspiciosa aliança e fusão dessas duas populações que se dividiu o vasto território nacional em circunscrições que são as Inspetorias, porque a elas está confiada a missão de, por um lado, entrar em contato com o índio, protegê-lo e por outro, cuidar do trabalhador nacional" (RMAIC, 1910, vol. I, p.275. Grifos do autor).

O Serviço visava, assim, atingir duas finalidades. Por um lado, gerir os ditos conflitos indígenas, à época maximizados pelo processo de especulação com a terra suscitado pela expansão cafeeira do centro-sul, traduzindo a ingerência do Estado na produção de fronteiras 21 . Por outro, administrar a distribuição espacial da mão-de-obra agrícola, minimizando os desequilíbrios regionais e tensões políticas latentes no seio da própria classe dominante rural, uma vez desfavorecidas algumas de suas frações - mormente aquelas dos complexos agrários do Norte e Nordeste - pela concentração do estoque de imigrantes no Sudeste.

Ambas as finalidades apontavam em igual direção: a fixação do "trabalhador nacional" nos chamados Centros Agrícolas (CAs), na condição de pequenos proprietários.

Tal solução significava um meio termo entre as propostas de segmentos rurais que defendiam ora a instalação de estabelecimentos congêneres no interior da grande propriedade, mediante subsídio público, ora a institucionalização pelo Estado de medidas de compulsão dos pobres rurais ao trabalho, mediante a criação das chamadas "colônias agrícolo-correcionais".

A ação do SPILTN resultaria, tanto no estabelecimento de postos de atração e povoações indígenas - destinadas à "proteção" e incorporação destes últimos à órbita do mundo "civilizado" - quanto na criação dos CAs, voltados à fixação de trabalhadores em lotes demarcados a partir das terras devolutas cedidas à União pelos estados.

Diversamente do que ocorreria com os núcleos coloniais destinados a imigrantes no Sul do país, as condições para o assentamento do trabalhador nacional seriam bem mais rigorosas, estipulando-se menores direitos e maiores deveres a seus supostos beneficiários 22 . Do Regulamento dos Centros fazia parte, ainda, a obrigatoriedade dos novos pequenos proprietários integrarem os trabalhos sazonais nas grandes fazendas vizinhas, ratificando-se a visão corrente da pequena propriedade como fonte suplementar de mão-de-obra para os latifúndios.

Aos Centros seriam também encaminhados contingentes de "retirantes" deslocados pelas secas nordestinas, bem como as novas categorias que se introduziram nos Relatórios do Ministério a partir de 1915: a dos "sem trabalho" - referida à população ociosa das cidades - e a dos "flagelados", todas elas designativas do tipo de ação requerida do Estado: distribuir geográficamente a mão-de- obra rural, promovendo, igualmente, o "saneamento urbano".

Tal como no caso dos patronatos, os CAs também adquiriram maior expressão a partir da 1a Grande Guerra, sinalizando o duplo esforço do Ministério em conciliar a maximização da produção de gêneros de primeira necessidade exportáveis, com a minimização dos conflitos sociais urbanos. O Quadro II abaixo demonstra tal tendência, sobretudo se se atenta para o fato de que o discurso oficial, malgrado a nova taxionomia adotada, apresentava seus dados sob a designação genérica de "desocupados".

QUADRO II - MAIC: DESOCUPADOS ENCAMINHADOS PARA O CAMPO (1915 - 1920)

FONTE: RMAIC, 1921, p.89.

Em seu cômputo global, os Centros Agrícolas elevaram-se, entre 1912 e 1928, de um total nacional de 06 (distribuídos, com exclusividade, pelos estados do Nordeste do país 23 ) para 25 (dos quais 10 situados na região Sul, enquanto os demais 15 dispersavam-se por outros estados 24 ). Coerentemente com seu papel de acomodador de conflitos intra-classe dominante, assumido desde sua fundação, o Ministério visava obter, mediante tal distribuição, um certo equilíbrio político no tocante ao atendimento às demandas por mão-de-obra elaboradas por setores agrários situados à margem da cafeicultura mais dinãmica, como se depreende da distribuição "geopolítica" dessas novas instituições. Enaltecendo o próprio mérito da criação de uma agência especializada em "localizar nacionais", assim se expressaria a fala ministerial: "Até o ano passado nossa colonização visava somente a localização de estrangeiros. Assim como os Estados do Norte se viam preteridos em seus atendimentos, os do Sul dele beneficiavam-se com exclusividade. Imperioso tornava-se socorrer àqueles nossos irmãos...A organização de tais serviços apresenta entre nós uma feição particular. Os Estados do Sul são objetos da colonização por estrangeiros.

Os do Norte, da colonização por nacionais. No Norte, 'centros agrícolas'; no Sul 'núcleos coloniais'. O equilíbrio se fazia" (RMAIC, 1911, vol. II, pp.251-2. Grifos do autor).

Assim procedendo, entretanto, o MAIC acabaria por institucionalizar, não somente uma hierarquização entre trabalhadores nacionais e estrangeiros - cabendo aos primeiros o estatuto de inferioridade, devido à marca de Caim da escravidão -, como também entre unidades federativas de peso político diferenciado, já que a quase totalidade dos imigrantes localizava-se no Sul, notadamente em São Paulo. O binômio atraso X progresso revelava-se também um padrão de incorporação da desigualdade de representação política de segmentos distintos da própria classe dominante agrária, consagrando-se os desequilíbrios regionais que, paradoxalmente, julgava-se estar combatendo.

Considerações finais.

Como se percebe, o período referente à chamada República Velha brasileira revela-se extremamente frutífero enquanto recorte cronológico capaz de dar conta da consolidação de uma série de práticas relativas à arregimentação e disciplinarização da mão-de-obra rural no país, cujos desdobramentos e/ou continuidades encontram eco em nossa realidade mais presente. Sobretudo no que tange à construção do mercado de trabalho no país, fica claro que o conjunto de medidas implementadas pelo Ministério da Agricultura teve uma intercessão direta junto ao processo da transição brasileira no rumo do capitalismo sob viés autoritário, mormente em se tratando de mecanismos destinados à coerção extra-econômica da força de trabalho a ser fixada/mantida no campo, apreendida a partir da noção de pobreza.

Se a ratificação do binômio - ainda tão comum em nossa realidade agrária atual - que conjuga produção mercantil com reprodução de relações de trabalho não capitalistas no espaço rural foi uma das tônicas da atuação do Ministério, também não se pode deixar de destacar outro aspecto de sua ação, o do fortalecimento da intervenção do Estado junto ao próprio espaço produtivo agrário. Seu resultado, para além da mera constatação do autoritarismo de suas práticas, redundou na cristalização de um sistema classificatório dos trabalhadores/pobres rurais que daria suporte a inclusões e exclusões no plano das políticas agrícolas efetivadas, acabando por requalificar a pobreza, julgando estar combatendo-a.

Tal como ocorre ainda hoje, conquanto limitadas do ponto de vista quantitativo em sua aplicação, tais práticas frutificariam na vulgarização de um paradigma de modernidade produtiva, à cuja sombra deveriam abrigar-se agricultores de distintos portes, nivelados ou hierarquizados, pelo acesso ao atributo de "modernos" que lhes seria conferido pela ação tutelar do Estado e não por sua efetiva condição sócio-econômica. Nesse processo, dois pontos fulcrais permaneceram intocados: a preservação da grande propriedade e a luta pelo controle dos homens situados à margem da produção mercantil. O que então se pretendia, à guisa da elevação dos níveis da "massa rural" à condição de "trabalhadores nacionais" era o controle sobre a mudança, mediante o estabelecimento de categorias intermediárias de pequenos produtores complementares à grande propriedade e a criação de núcleos repressivamente organizados para a fixação da mão-de-obra no campo.

Comparativamente à situação atual do campo no Brasil, os processos analisados para inícios do século traduzem, ao menos, duas diferenças no que diz respeito à pobreza rural.

Por um lado, a relativa preocupação - ainda que autoritariamente perpetrada - com uma dada modalidade de incorporação social dos trabalhadores, através da pedagogia pelo exemplo e, por outro, a própria distinção para com o que hoje se qualifica como pobreza rural no país, posto que não está sequer posta, na pauta neo-liberal, qualquer perspectiva de sequer disciplinarizá-la.

NOTAS

1 Optou-se pelo recurso às "aspas" enquanto forma gráfica designativa das expressões de época utilizadas no texto.

2 Segundo VELHO: "O capitalismo autoritário - ou mais rigorosamente , o capitalismo com dominãncia autoritária - é o herdeiro direto de sistemas de repressão da força de trabalho sem nenhum corte revolucionário interveniente.

Todavia, é acima de tudo capitalismo, não se alterando no que tem de mais geral as características e leis do movimento do capital. Assim, enquanto modo de produção no sentido restrito, é da mesma natureza que o capitalismo burguês clássico. A diferença diz respeito a outro nível, o da política e, particularmente, às formas de dominação e de articulação entre a política e a economia". VELHO, Otávio. Capitalismo Autoritário e Campesinato. 2a ed., São Paulo, Difel, 1979, pp. 42-3. Grifos do autor.

3 Isto significa que, de um total de 9 milhões pessoas, 6.500.000 labutavam na atividade agropecuária. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Brasil realizado em 1 de Setembro de 1920. Rio de Janeiro, Typografia de Estatística, 1930, tomo I, pp. xxx-xxxiv.

4 Apesar do significativo êxodo rural, mesmo em fins da década de 1950 cerca de 63% da população brasileira ainda vivia em áreas rurais. DOWNES, Earl Richard. The seeds of influence: Brazil's "essentially agricultural" Old Republic and the United States. PhD Dissertation to University of Texas at Austin, 1986, p.7.

5 A esse respeito ver OLIVEIRA, Francisco de. "A emergência do modo de produção de mercadorias: uma interpretação teórica da economia na República Velha no Brasil". IN: FAUSTO, Bóris (org.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, Difel, 1975, tomo III, vol. 1, pp. 391-414.

6 O grau de concentração fundiária no Brasil da 1a República pode ser aquilatado pelo fato de mais da metade das explorações agrícolas existentes serem compostas por posses com menos de 40 hectares, equivalentes a apenas 13,2% do total da área cultivada. Enquanto isso, 461 fazendas contavam com mais de 25.000 há, ao passo que outras detinham 60.000 há. Essas poucas grandes propriedades respondiam por 1/7 do total da terra em uso no país. Diretoria Geral de Estatística. Resumo de várias estatísticas econômico-financeiras. Rio de Janeiro, Typografia de Estatística, 1924, p. 18.

7 Em minha tese de Doutoramento, defendida junto à Universidade de São Paulo, em 1990, e intitulada "Ruralismo: Agricultura, Poder e Estado na Primeira República", demonstro que criação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio em 1909, resultou de intensa campanha mobilizada pela Sociedade Nacional de Agricultura, agremiação que congregava em seus quadros basicamente representantes das frações da classe dominante brasileira oriundas dos complexos agrários menos dinãmicos do país - tais como o algodoeiro e o açucareiro do Nordeste, o pecuário do Sul ou o cafeeiro decadente do Rio de Janeiro - e, por conseqüência, com menor peso político no processo político-partidário do período, hegemonizado pela grande burguesia cafeeira do estado de São Paulo. nesse sentido que falo de frações dominadas da classe dominante agrária, posto que, a despeito de integradas por grandes proprietários, desempenhavam papel secundário nos rumos da política brasileira de então, além de não serem alvo de políticas econômicas setoriais, tal como o caso das operações valorizadoras do café, promovidas para São Paulo.

Assim, a possibilidade para tais grupos seria dada pela constituição de um movimento político e de organização de classe a nível da sociedade civil, com vistas a seu aparelhamento na sociedade política, mais especificamente, no Ministério da Agricultura, cujos quadros de primeiro escalão foram ocupados, ao longo de toda a 1a República, por dirigentes da Sociedade Nacional de Agricultura.

8 Cf. MENDON?A, Sonia Regina de. "Estado e exclusão social no campo". ã Margem. Rio de janeiro, I (3): 16-25, Nov., 1993, onde discuto o quanto essa noção de atraso correspondeu a uma estratégia discursiva de determinadas frações da classe proprietária rural brasileira do período, com vistas a mobilizar a ação pública para o atendimento de suas demandas setoriais e específicas.9 Esses grupos pertenciam, particularmente, aos complexos agrários das regiões do Nordeste, Sul e Rio de Janeiro, o que prefigurou, desde a criação do Ministério, o mesmo jogo de forças políticas responsáveis pela chamada revolução de 30 no Brasil, marco inaugural da "era Vargas", marcada pela disputa centralismo X descentralização política, sendo esta última defendida pela burguesia paulista, contra a qual, aliás, organizara-se o movimento citado.

10 Dentre tais práticas podem ser citadas a criação de Conselhos Nacionais (como o do Trabalho, por exemplo), bem como a instalação das Inspetorias Agrícolas do Ministério em todas as unidades da federação brasileira, num claro ensaio de nacionalização das decisões de política econômica, que só seria vitorioso após a derrota paulista em 1930.

11 Tal distinção entre ambos os projetos pode ser avaliada, por exemplo, através de algumas demandas específicas: enquanto a grande burguesia paulista preconizava um projeto para a agricultura brasileira totalmente voltado para o mercado exportador, as demais frações da classe dominante agrária defendiam a diversificação agrícola do país para o mercado interno; enquanto para a cafeicultura paulista a solução para o problema da mão-de-obra rural residiu no incentivo à imigração em massa, para os demais proprietários ela consistia no aproveitamento do trabalhador brasileiro, dentre outros exemplos.

12 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da Terra. São Paulo, Ciências Humanas, 1979, p.32.13 Os oito aprendizados existentes em 1911 localizavam-se nos estados de Bahia, Alagoas, Pará, Maranhão (todos nordestinos), Minas Gerais e São Paulo (Sudeste), Rio Grande do Sul e Santa Catarina (Sul do país). Porém, em face das restrições orçamentárias ocorridas em 1916, este total foi restringido para cinco, distribuídos entre Minas, Pará, Rio Grande do Norte e dois na Bahia, assim permanecendo até fins dos anos 20. A concentração dessas instituições no Nordeste traduz a intenção ministerial em atender aos reclamos por mão-de- obra procedentes dos grandes proprietários oriundos dessas regiões que, agremiados pela Sociedade Nacional de Agricultura, foram os responsáveis pela criação e gestão da Pasta.

14 A esse respeito ver MIRANDA, Joaquim Cardoso de. O ensino agrícola no Ministério da Agricultura. RJ, CNEPA/Univ. Rural, s/d., pp. 87-815 O decreto No.12.893 de 28 de fevereiro de 1918, que criou os patronatos, estabelecia claramente que "o que se espera pelo lado financeiro, é que sejam concomitantemente campos de demonstração e campos de produção (...). mister que tenham lucros e deixem resultados, subsistindo por si próprios". RMAIC, 1918, p. 141.Grifos do autor.

16 A esse respeito ver GRIGNON, Claude. "L'enseignement agricole et la domination symbolique de la paysannerie".

Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, 1(4): 75-97, jan., 1975, p. 84.17 Um dos exemplos é o Patronato Delfim Moreira, situado dentro de uma fazenda pertencente a um coronel do interior da Bahia, onde cerca de 800 menores ocupavam-se da citricultura. (RMAIC, 1920, p.90)18 O Comitê da Produção Nacional, estabelecido em 1916, foi uma das agências pontualmente criadas no bojo do Ministério. Seu objetivo específico era o de fomentar, mediante todas as formas possíveis de propaganda, distribuição de sementes e implementos agrícolas, a produção de gêneros de primeira necessidade, de modo a aproveitar a conjuntura de preços favoráveis que se abria para o país em decorrência da Primeira Guerra Mundial.

19 Os patronatos foram localizados pelo Ministério por quase todo o território nacional, merecendo relevo o fato de contar com mais de um deles, no ano de 1926, os estados de Minas Gerais (06), Santa Catarina (02), Pernambuco (07), Pará (02), Rio Grande do Sul (02) e até mesmo o território do Acre (01)

20 Para além do fato de boa parte dessas instituições localizarem-se nos estados do Nordeste do país, salta aos olhos - para além da relevãncia dos proprietários mineiros, paulistas e gaúchos na obtenção de trabalhadores relativamente através dos patronatos - a elevada concentração de menores ocorrida nas instituições situadas em Pernambuco que, apenas em número de 09 ao longo do período, representaram a quinta maior população de internos entre os anos de 1918 e 1927. A importãncia dos patronatos pode ser depreendida sob dois aspectos: por um lado, eles evidenciam o que pode ser considerado um padrão "geopolítico" de sua distribuição, sendo as unidades da federação mais contempladas, justamente, Minas Gerais (com 46 deles ao longo do período), seguida por São Paulo (18 deles) e, ao menos até 1920 - quando foram extintos os patronatos no estado face à sua proximidade com a Capital Federal -, o Rio de Janeiro. Por outro lado, essa mesma "geopolítica" ratifica o empenho do Ministério em conciliar interesses das facções conflitantes da classe dominante agrária brasileira do período, uma vez que se constata, dentre os beneficiários destes "viveiros de mão-de-obra", em situação de "empate", em quarto lugar, os proprietários do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, com 11 patronatos cada. A esse respeito ver MENDON?A, Sonia Regina de. "Saber e Poder no Brasil: o ensino agrícola na Primeira República. Relatório Final de Pesquisa ao CNPq, Janeiro, 1994, pp. 18- 24.

21 A esse respeito ver LIMA, Antônio Carlos de Souza & FREIRE, Jurandyr. As fronteiras da Nação: O Serviço de Proteção aos ãndios (1910-30). RJ, ANPOCS, 1985, mimeo.

22 Segundo o Regulamento do SPILTN, anexo ao decreto 8.072 de 20 de junho de 1910, dentre as condições citadas situavam- se: menores prazos para o início do pagamento de suas dívidas (1 ano para os nacionais, contra 3 anos para os imigrantes); menores prazos para o resgate dos lotes adquiridos (6 anos, contra 10 para os colonos estrangeiros); maior dimensão dos lotes atribuídos aos nacionais (de 25 a 50 ha, contra 25 ha para aqueles destinados a estrangeiros); além da proibição de transações comerciais com a terra. RMAIC, 1910, vol. II, p.51

23 Os estados beneficiados pela fixação inicial dos CAs foram Piauí, Maranhão, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia, todos eles integrantes do Nordeste brasileiro, o que significava a transferência de parcela da pobreza oriunda da própria Capital Federal, o Rio de Janeiro, para essa região do país.

24 A distribuição percentual dos centros agrícolas existentes em 1928 seria de: 40% no Paraná(um estado do Sul do Brasil, fronteira nova da expansão da cafeicultura no país); 12% em Santa Catarina; 8% em Minas Gerais; 8% em São Paulo; 12% na Bahia e 4% em cada um dos estados do Nordeste: Pará, Maranhão, Alagoas, Piauí e Rio Grande do Norte. RMAIC, 1928, pp. 375-8.1918

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