V Congreso de Antropologia Social

La Plata - Argentina

Julio-Agosto 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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O Bonde de Santa Teresa Como "Patrimônio Cultural"

Simone Dubeux Berardo Carneiro da Cunha

V CONGRESSO ARGENTINO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL
À Comissão de Trabalho - Antropologia Urbana
Título - Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
O Bonde de Santa Teresa Como "Patrimônio Cultural"

RESUMEN

Este trabalho faz parte de uma reflexão desenvolvida na minha dissertação de mestrado: "Um Bonde Chamado Santa Teresa: Um estudo antropológico sobre concepções de patrimônio cultural" defendida em fevereiro de 1997, no Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Este estudo reside basicamente em mostrar como o bonde de Santa Teresa veio a se constituir em "patrimônio cultural". Na realidade, o bonde representou no início do século, na cidade do Rio de Janeiro, um importante meio de transporte. Atualmente, Santa Teresa é o único bairro da cidade onde o bonde trafega. O bairro situa-se geograficamente numa área próxima ao centro da cidade do Rio de Janeiro, e faz comunicação com bairros da zona norte e da zona sul. Desde 1984, Santa Teresa é um bairro considerado como uma área de proteção ambiental (APA). O bairro possui 110.000 moradores e 14 favelas (Coroa, Prazeres, Escondidinho, Ocidental Fallet, etc.).No final da década de 70, os moradores do bairro começaram a discutir sobre a possibilidade de tombar o bonde. No início da década de 80, os moradores solicitaram o tombamento ao Instituto Estadual de Patrimônio Cultural (INEPAC). O bonde foi oficialmente tombado em 25 de março de 1988. Há um grupo de trabalhadores entre eles, motorneiro, condutores, fiscais, despachantes, que trabalham no tráfego e ainda pintores, carpinteiros, mecânicos que trabalham na manutenção dos bondes no bairro. Neste trabalho vamos apresentar a construção da idéia de "patrimônio cultural" para esses trabalhadores, ao mesmo tempo, em que vamos confrontar com a idéia de "patrimônio cultural" das autoridades ligadas aos órgãos oficiais de cultura. No processo de tombamento, há um discurso formal - em que o bonde é considerado importante pelo seu valor histórico e cultural - e um discurso informal, em que a importância do bonde consiste em ser algo relacionado ao cotidiano, tanto um meio de transporte para o bairro de Santa Teresa, quanto um instrumento de trabalho para os trabalhadores que nele vêem um valor associado à experiência coletiva de trabalho que é passada de geração a geração. A concepção de patrimônio dos trabalhadores do bonde está associada ao seu cotidiano. Os trabalhadores vêm lutando pela preservação do bonde. A perda deste "bem"significa o desemprego deste grupo social.

Simone Dubeux Berardo Carneiro da Cunha
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O Bonde de Santa Teresa Como "Patrimônio Cultural"

Este trabalho faz parte de uma reflexão desenvolvida na minha dissertação de mestrado: "Um Bonde Chamado Santa Teresa: Um estudo antropológico sobre concepções de patrimônio Cultural" defendida em fevereiro de 1997, no Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Neste trabalho focalizei principalmente a categoria "trabalhadores" do bonde de Santa Teresa. Foi por seu intermédio que construí minha entrada no campo. Esta categoria está ameaçada de extinção, assim como o bonde. Passei a freqüentar o ambiente de trabalho e os momentos de festividades do grupo, tais como Natal, Aniversário do bonde, festa da premiação pela Secretaria Municipal de Cultura aos artesãos que trabalham com os "bens culturais" da cidade do Rio de Janeiro. Assim como os ciclos de atividades do bairro, tais como Carnaval, exposições, etc. Passei a ser identificada pelos trabalhadores como "alguém que está escrevendo sobre o seu trabalho com os bondes".

O ponto de discussão apresentado é sobre a memória e identidade dos trabalhadores do bonde de Santa Teresa. Este grupo mantêm com o bonde uma relação social de trabalho, sendo o bonde e sua permanência, antes de mais nada, um meio de preservação de sua identidade e de sua memória enquanto grupo de trabalhadores. Para tanto devemos fazer uma breve contextualização.

Na primeira metade deste século os bondes acabaram por se constituir no principal meio de transporte da cidade de Rio de Janeiro. Suas linhas , em determinado período, cobriam quase todo o espaço da cidade, distribuindo-se pela zona sul, zona central, zona norte e subúrbios, cumprindo importante papel no cotidiano da população. Várias empresas detinham a concessão para a exploração dos serviços de bondes, entre elas a The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Co. Ltd., empresa canadense que se instalou na cidade em 1905, e que passou logo a ser chamada de Light. Entretanto com o passar do tempo, esta empresa passou a ser a única concessionária, monopolizando o setor.

Após este período de apogeu, e atendendo, entre outras causas, às crescentes necessidades da influente indústria automobilística em se expandir, houve uma retração desta rede de linhas de bondes, que passaram a ser desativadas. Em princípio dos anos 60, quando foi legalmente extinto o sistema de bondes no Rio de Janeiro, restaram apenas algumas linhas e, finalmente, aquelas do bairro de Santa Teresa, que passaram a ser geridas por uma nova empresa, ligada à Secretaria de Transporte do Governo do Estado, a Companhia de Tranportes Coletivos - CTC. Desde então, até os dias atuais, os bondes que servem ao bairro sofrem um lento e progressivo processo de extinção, ao qual se contrapõem estratégias de preservação por parte dos moradores e trabalhadores do bonde de Santa Teresa.

O bonde é ferramenta de trabalho, mas é muito mais que isso. Ele é técnica, mas também é símbolo. É técnica, porque as pessoas aprenderam a trabalhar com as peças do bonde, a recuperá-las, a fabricá-las. Os trabalhadores exercem seu ofício através do bonde. Mas também é símbolo, no sentido em que ele congrega essas pessoas.

Ao longo deste trabalho, então, procuro responder à seguinte indagação: por que o bonde de Santa Teresa não desapareceu? É importante ressaltar que não estamos falando do bonde em si. Na verdade, estamos focalizando as relações que reunem diversos grupos sociais em torno do bonde. A hipótese a partir da qual busquei responder a esta questão foi a de que há um sistema de relações e representações sociais entre trabalhadores, Estado e moradores e, concomitantemente, uma variação das representações em função destas relações sociais. No entanto, existe algo que está presente no conjunto destas representações: é o fato de a imagem do bonde estar associada à identidade do bairro, ou seja, o que congrega simbolicamente estes diversos segmentos sociais é a idéia de preservar o bonde como uma forma de identificação do bairro de Santa Teresa.

Santa Teresa1 situa-se geograficamente numa área próxima ao centro da cidade do Rio de Janeiro, e faz comunicação com bairros da zona norte e da zona sul. Com uma grande quantidade de favelas e cortiços, o bairro também congrega antigos casarões, casas e edifícios. Em 1984, o bairro de Santa Teresa foi legalmente reconhecido como "área de proteção ambiental" (APA)2 . O vereador Sérgio Cabral foi o autor do projeto de lei aprovado e transformado em lei, a de no. 495, de 09/01/1984, assinada pelo então prefeito Marcello Alencar. O bairro possui 110.000 moradores e 14 favelas (Coroa, Prazeres, Escondidinho, Ocidental Fallet, etc.). Em 07 de maio de 1995, o Jornal do Brasi, no Caderno Cidade publica uma matéria em que o Subprefeito do Centro, Augusto Ivan, diz que: "Nos últimos dez anos a população favelada aumentou em 28%, distribuída em 14 favelas, enquanto a população total caiu em 10%, chegando a 110 mil pessoas" (Jornal do Brasil, 1995: 20).

É um bairro tradicionalmente conhecido pelo precário atendimento em termos de serviços urbanos, principalmente transportes coletivos. Atualmente, além dos bondes, há três linhas de ônibus: a linha 206 (Silvestre-Castelo), a linha 214 (Paula Matos-Castelo), que fazem a ligação do bairro com o centro da cidade, e a linha 407 (Largo do Machado-Silvestre). Há também automóveis circulando como "lotação" - Kombis, bestas - saindo da Rua Monte Alegre até o Morro da Coroa.

O bonde sai da estação (lugar de chegada dos usuários do bonde; nela ficam os trabalhadores do "tráfego") que se localiza no Largo da Carioca. Ele atravessa os arcos da Lapa e segue através de duas linhas: uma que vai até o Largo das Neves, que é a linha Paula Matos, e a outra que vai até Dois Irmãos. A "garagem", onde os trabalhadores do bonde fazem o trabalho de manutenção localiza-se próxima ao Largo dos Guimarães. A "garagem" e o "tráfego" são classificações do espaço e das relações de trabalho desse grupo de trabalhadores. O que é chamado pelos trabalhadores de "garagem" é tanto um local para abrigo dos bondes, como a oficina em que eles são consertados. O "tráfego" é o setor que opera os bondes. É nele que se estabelece o contato com o público, usuários dos bondes. No início da pesquisa, em agosto de 1994, haviam 111 trabalhadores, entre os quais 56 trabalhavam na "garagem"e 55 no "tráfego". Em abril de 97, esse número havia sido reduzido quase à metade.

A jornada de trabalho na "garagem" tem início às 7:00 horas. Os trabalhadores saem de suas casas às 4:00 ou 5:00 horas da manhã. Na sua grande maioria, moram afastados do centro, em Édem, Jacarepaguá, Madureira, Bangu, Bonsucesso, São Gonçalo, Caxias, Campo Grande. Geralmente, têm que tomar de 2 a 4 conduções para chegar ao trabalho. Há trabalhadores na "garagem" 24 horas por dia.

Na "garagem", os trabalhadores se dividem em diversas seções, tais como: almoxarifado, torno, solda, compressor, motor, vala, carpintaria, enrolamento, controller, capotaria, pintura, rede aérea, via permanente. Os trabalhadores restauram e fabricam peças. No "tráfego", que é o setor que opera o bonde, são múltiplas as atividades que se desenvolvem para que o bonde funcione. Nele, trabalham motorneiros, condutores, inspetores, fiscais e despachantes.

A extinção dos bondes na cidade do Rio de janeiro é um momento importante de mudanças na vida dos trabalhadores. É uma fase de transição, na qual eles deixam de ser identificados como "trabalhadores da Light"e passam a ser identificados como trabalhadores de uma nova empresa, a CTC - Companhia de Transportes Coletivos, que foi criada em 1963 . Neste trabalho vamos analisar as representações dos trabalhadores sobre os "tempos da Light" e os "tempos da CTC".

A Memória Coletiva dos trabalhadores do bonde: "tempos da Light" e "tempos da CTC" Halbwachs opõe as noções de "memória coletiva" à "história"3 . Apesar do caráter problemático dessa oposição, uma vez que Halbwachs tende a enfatizar as diferenças entre uma e outra noção, elas nos parecem úteis para descrever etnograficamente a visão dos trabalhadores a respeito do seu passado e os discursos oficiais sobre a história do bonde. Segundo Halbwachs, a "memória coletiva" está fundada na experiência de um grupo real de pessoas, que é passada diretamente através de gerações. Ela é sempre fundada num ponto de vista particular, expressão da posição estrutural e da experiência do grupo. Já a "história", em termos de Halbwachs, é construída a partir de um ponto de vista amplo, geral, abstrato, abarcando e transcendendo os pontos de vistas específicos dos diversos grupos que compõem uma sociedade (Halbwachs, 1990).

A oposição "tempos da Light" versus "tempos da CTC" é central na organização da memória coletiva do grupo. Assim, pessoas, espaços, objetos, relações, tudo é pensado a partir dessa oposição temporal. Há um tempo que aparece idealizado e descrito em termos de "estabilidade": "tempos da Light". E um outro que o grupo vive com uma permanente ameaça de não mais se reproduzir enquanto grupo: os "tempos da CTC". Observamos através do discurso dos trabalhadores do bonde as categorias "tempos da Light" e os "tempos da CTC" que são utilizadas por eles para assinalar os processos de mudança que vêm vivendo.

A identidade desses trabalhadores, seja na "garagem" seja no "tráfego", está sendo ameaçada à medida em que há uma ameaça de extinção dos bondes. O bonde é o elemento de ligação desses trabalhadores. É ele que junta essas pessoas.

Esses trabalhadores, como muitos afirmaram em entrevista, passam uma grande parte das suas vidas dentro da "garagem" ou no "tráfego". A "garagem" representaria a sua "segunda casa". Alguns me relataram que quando algum colega tem problema com a esposa, chega a dormir na "garagem". É importante ressaltar que a maioria dos "trabalhadores" entraram para o trabalho com os bondes através de seus familiares. Como se pode observar em alguns depoimentos. Segundo Jonas, pintor: "Quem me colocou aqui, quando eu comecei a trabalhar na Companhia meu pai já trabalhava na Companhia. Meu pai trabalhava de escritório, desde o 'tempo da Light', desde o 'tempo da Carris', entendeu? Então meu pai veio de muitos anos, então meu pai me colocou aqui dentro, quer dizer que eu tenho uma raiz aqui dentro, de meu pai passou para mim, só eu já tô com 21 anos praticamente de firma e 39 de idade, quer dizer que então praticamente isso aqui é um, nem sei como ver isso aqui no final acho que eu tenho que ver é só progresso mesmo, a gente fica triste só em pensar que uma coisa não vai dá certo, não tá dando certo, então a gente tem que torcer pra dar certo tudo e que fique tudo bem, e eu acho que dessa vez vai ficar tudo bem, continuar tudo bem, conforme era antes".

Segundo o mesmo informante, "meu pai trabalhou, mas não aqui em cima, em Santa Teresa, ele já vem dos bondes mais de antigamente. Ele trabalhou como cobrar o bonde, condutor e depois passou para o escritório. Aí quando ele já me colocou na CTC ele tava em Triagem trabalhando em escritório, ele trabalhava na seção de ponto, porque tinha terminado o bonde, ele foi trabalhar serviço de escritório. E ainda: "Foi na companhia que meu pai conseguiu criar a gente, e é uma coisa muito bonita, seu pai criar com o dinheiro da companhia, depois mais tarde você vir a trabalhar na mesma companhia que meu pai trabalha e sobreviver e ficar esse tempo todo, eu acho lindo isso, acho muito bonito. Aqui também teve um irmão meu que trabalhou aqui, ficou aqui alguns tempo e saiu".

Na "memória coletiva" do grupo, as relações de trabalho são divididas em antes e depois da CTC. Antes da CTC, segundo esses trabalhadores, era o período da Light.

Na verdade, os trabalhadores fazem uso do passado para falar do presente. Assim, quando um trabalhador da Light lembra de sua função na "via permanente" e se refere ao desaparecimento da equipe com a qual trabalhava, ele está assinalando um importante aspecto do funcionamento do bonde hoje. A partir das categorias "tempos da Light" e "tempos da CTC" os trabalhadores descrevem as mudanças na história de suas relações de trabalho. Isso significa dizer que, no discurso dos trabalhadores do bonde, existem temporalidades diferentes, demarcadas em termos de suas relações, atividades. Suas relações de trabalho, condições de trabalho mudam a partir do que, para eles, é chamado "tempos da Light" e "tempos da CTC".

Quando os trabalhadores se referem aos "tempos da Light", idealizam o passado, sobretudo quando falam da pontualidade, dos respeito aos passageiros para com os profissionais do bonde. A função dessa idealização é criticar o presente, um presente associado à perda de material (máquinas, peças e ferramentas), de pessoal, dos bondes, de pontualidade, de investimentos. Assim, os "tempos da CTC" representam o que nós estamos chamando de "tempo de instabilidade", ou seja, um tempo em que esses trabalhadores são obrigados a lançar mão de vários recursos ( recuperar e fabricar peças ) para enfrentar uma constante ameaça de não mais se reproduzirem enquanto grupo. Em oposição ao passado, o presente é visto em termos de perda. O que caracteriza os "tempos da CTC" é uma permanente ameaça à identidade desses trabalhadores. Já os "tempos da Light" representam um "tempo de estabilidade". Segundo eles, nos "tempos da Light" existiam muitos trabalhadores, muito material de trabalho, funcionavam muitas linhas de bondes, o número de bondes servia a uma grande parte da população. Os "tempos da Light" se caracterizaram como um tempo onde havia "respeito" à categoria dos profissionais dos bondes da cidade do Rio de Janeiro. Esse "respeito" é descrito pelo status que implicava trabalhar numa empresa como a Light. Mas esse tempo também é representado como um tempo onde havia mais controle sobre o trabalhador. Dos "tempos da Light" para os "tempos da CTC" há uma série de mudanças. Mas há algo que permeia essas mudanças e que é descrito pelos trabalhadores como "sucateamento". Diante do processo de sucateamento, os trabalhadores são obrigados a lançar mão de vários recursos no sentido de reaproveitar e reutilizar peças e ferramentas para que possam fazer o bonde funcionar. Este é um ponto de forte contraste, nas representações dos trabalhadores, em relação aos "tempos da Light", onde não se fazia necessária essa estratégia de reaproveitamento de material, peças e ferramentas. Nos "tempos da CTC" em contraste com os "tempos da Light" o número de bondes é reduzido. A partir dos "tempos da CTC", eles precisam lançar mão de todos os recursos para que o bonde possa funcionar, mesmo precariamente. É comum que os trabalhadores se desloquem de suas funções e assumam outras em razão das necessidades do processo de trabalho. Esse deslocamento de funções é na verdade característica dos "tempos da CTC". Nos "tempos da Light" os trabalhadores do bonde não saíam de sua seção.

Uma característica a ser ressaltada nos "tempos da CTC" é que o bonde passa a ser representado como "patrimônio cultural". A concepção de patrimônio dos trabalhadores do bonde está associada ao seu cotidiano. Em 1995, um bonde foi doado ao Centro Cultural da Light, que se localiza na rua Marechal Floriano, no centro da cidade. Segundo um trabalhador da seção elétrica, "por que retirar mais um bonde da garagem para ir a um museu? Um bonde que pode ser restaurado e posto para funcionar".

O bonde de Santa Teresa foi oficialmente tombado em 25 de março de 1988, incluindo-se aí seus mecanismos, trilhos e acessórios, nas duas linhas existentes: Dois Irmãos e Paula Matos, bem como a garagem e a oficina. O tombamento é parte de uma reação ao processo de "extinção" dos bondes. Trata-se de um processo social cujos atores ( "trabalhadores", moradores do bairro, a AMAST e agências do Estado), com pontos de vistas diversos, agem no sentido de garantir a preservação do bonde, opondo-se a seu "sucateamento" e sua "extinção". Minha hipótese é a de que é por meio da luta pela preservação do bonde que diferentes categorias sociais ( "trabalhadores" do bonde, "moradores" do bairro) reproduzem suas identidades sociais, assegurando assim a defesa de seus valores e interesses. Para esse grupo de trabalhadores, o tombamento representa primeiramente um instrumento para assegurar a sua reprodução enquanto um grupo social, um grupo de trabalhadores articulados em torno do trabalho de manter o bonde em funcionamento.

Além do "tombamento" dos bondes, outros bens foram tombados em Santa Teresa. Em nível federal, foram eles o Convento de Santa Teresa, o Museu Benjamin Constant, a Imagem de Sant'Anna do século XVIII, de autoria de Aleijadinho e pertencente à coleção de Leda M. Nascimento Brito, e a Chácara do Céu. Em nível estadual, foram tombados a Chácara dos Viegas e o imóvel da rua Monte Alegre, 313. Em nível municipal, a Casa de Hermenegildo de Barros; os imóveis nos 12 e 14 da rua Teresina; o Castelo Valentim; a Igreja Ortodoxa Russa Sta. Zenaide, na rua Monte Alegre; a ex-pensão Mauá, hoje Colégio Tomáz de Aquino; a ex-Nunciatura Apostólica, hoje Colégio CEAT, na Lagoinha; a rua Alfredo; a Ladeira do Vianna e, por último, a mansão do Centro Cultural Laurinda Santos Lobo.

Com o "tombamento" do bonde de Santa Teresa, decreta-se a necessidade de proteger os imóveis próximos aos trilhos. Muitas fachadas das casas em Santa Teresa têm que ser preservadas em seu estilo "tradicional".

No processo de "tombamento", há um discurso formal - em que o bonde é considerado importante pelo seu valor histórico e cultural - e um discurso informal, em que a importância do bonde consiste em ser algo relacionado ao cotidiano, tanto um meio de transporte para o bairro de Santa Teresa, quanto um instrumento de trabalho para os trabalhadores que nele vêem um valor associado à experiência coletiva de trabalho que é passada de geração a geração.

A transformação do bonde em "patrimônio cultural" expressa, na verdade, concepções distintas do seu significado. Uma delas é expressa pelo ato legal do tombamento e pelo discurso dos agentes do Estado. Há os argumentos na defesa do "tombamento", que podem ser caracterizados como argumentos abstratos, nos quais os bondes representam um traço importante da "cultura" e da "história" da cidade do Rio de Janeiro. Há também argumentos menos abstratos, expresso pelos "trabalhadores" do bonde e pelos moradores do bairro, através da AMAST, os quais, embora com pontos de vista diversos, se identificam.

O bonde passa da condição de "objeto sucateado" à condição de "objeto de museu". O bonde é transformado em "bem cultural". É por meio dessa reapropriação simbólica do bonde que se produz um "passado", e esse "passado" se faz presente através do bonde. Está em jogo o destino de um "bem simbólico", repleto de significado tanto para os "moradores" do bairro, como para os "trabalhadores" do bonde, que vêem no bonde laços familiares e de trabalho.

Anteriormente ao tombamento, uma série de iniciativas oficiais contribuíram no sentido de transformar o bonde em "bem cultural". Assim, no dia 12 de Março de 1979, foi criado o "Museu do Bonde". Ele funcionou inicialmente numa dependência em Triagem - sede da CTC - sem o público ter acesso. Só em 1983 passou a ter a sua sede numa sala na Estação dos bondinhos no Largo da Carioca, e o seu acervo foi organizado por funcionários da CTC. No Museu estão algumas peças dos bondes, as vestimentas dos condutores e motorneiros, algumas fotografias e "maquetes" de diversos tipos de bondes, alguns documentos representativos dos "carris", jornais, livros. O Museu promove concurso de poesia sobre os bondes. Trata-se de um espaço onde podemos encontrar objetos associados à memória do bonde. A criação do Museu do Bonde no final da década de 70 tem um papel importante no processo de transformação do bonde em "patrimônio cultural". O bonde passa a ser identificado menos como "meio de transporte" e mais como "bem cultural".

Na década de 80, a CTC criou o projeto "A Escola vai ao Bonde". Este consistia na visitação de escolas da rede pública ao Museu do Bonde. No Museu havia um "funcionário" da CTC que narrava para os visitantes a história dos bondes no Rio de Janeiro. Depois havia um passeio, de bonde, por Santa Teresa. Este projeto funcionou alguns anos; e depois foi interrompido.

Em agosto de 1995 o projeto foi retomado pela CTC, juntamente com a Secretaria de Educação do Estado. Obedecia a um roteiro no qual a primeira parada era a estação dos bondes, com a visitação ao Museu do Bonde, onde os alunos podiam ver a exposição " O bonde na Paisagem Carioca", realizada pelo Arquivo Geral da Cidade em 1984. Desta exposição, consta uma cronologia da história do bonde e fotografias do bonde na paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Os jovens são orientados por um guia da CTC, que mostra o acervo. Em seguida, os alunos seguem de bonde para Santa Teresa, e vão até Dois Irmãos, onde seguem de ônibus para o Mirante Dona Marta. Terminada a visita, os visitantes vão para a CTC, em Triagem, onde almoçam. Orientados por guia da Secretaria de Educação, os alunos prosseguem com o passeio; onde se Destaca os seguintes pontos: Quinta da Boa Vista, Museu do Primeiro Reinado, Estação Barão de Mauá, Igreja da Candelária, Centro Cultural Banco do Brasil. Como encerramento do projeto, cada escola participante do projeto promoverá um concurso de redação sobre o passeio. O vencedor receberá uma réplica do bondinho de Santa Teresa, confeccionado pela CTC.

É importante, portanto, analisar a situação social em que o bonde vem a ser utilizado ora como "meio de transporte", objeto do cotidiano; ora como "patrimônio cultural". O bonde é ao mesmo tempo "passado" e "presente", possuindo assim um caráter "ambíguo" em termos temporais. Os "trabalhadores" do bonde fazem parte deste "passado", visto que são detentores de um conhecimento e experiência de trabalho com o bonde associados ao passado. Eles detêm um conhecimento que está ameaçado de "extinção". Diante da possibilidade de "extinção" dos bondes, caracterizada pela redução do número de bondes, pela diminuição do percurso, pela falta de material (peças de reposição), pela redução de pessoal, a sua identidade de "trabalhadores" do bonde fica ameaçada.

No discurso oficial, isto é, do ponto de vista das agências do Estado (tais como Secretaria de Cultura, INEPAC, etc.) o tombamento se caracteriza como um instrumento de garantia de "preservação" dos "bens culturais". Por meio desse discurso ele tem o papel de garantir que determinados valores culturais não desapareçam frente a uma série de ameaças. Assim, o bonde aparece associado à "tradição", ao passado e à identidade do bairro e da cidade. Esse discurso é reapropriado de formas distintas pelos "trabalhadores" do bonde e pelos "moradores" do bairro.

Segundo esse discurso oficial, o bonde aparece associado ao "passado". Do ponto de vista dos moradores, o bonde é pensado a partir do "presente", em termos dos seu cotidiano. Essa oposição entre "passado" e "presente" é fundamental para se entender a nova identidade que o bonde adquire: a de "bem cultural".

É importante ressaltar também a importância do bairro de Santa Teresa, bairro associado à imagem do "tradicional", do "antigo", do "passado". É neste espaço que operam as linhas de bondes. Aí estão o "tráfego" e a "garagem" dos bondes. É possível dizer que a imagem do bairro está intrinsecamente ligada à imagem do bonde, e vice-versa. O bonde parece se constituir numa metonímia do bairro.

Em 1995, numa exposição fotográfica realizada no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, que se localiza no bairro de Santa Teresa, o bairro aparece representado através das lentes de alguns fotógrafos que vivem no bairro. "Bondes, quitandas, o casario e um irresistível charme de cidade que parou no tempo na hora certa. Santa Teresa tem tudo isso e muito mais, e foi traduzida nas lentes de alguns dos mais prestigiados fotógrafos cariocas que vivem no bairro" (Jornal do Brasil, 30/09/95 - grifos meus). Desta forma, Santa Teresa é representada por esses fotógrafos - moradores do local como um bairro especial.

Entre os dias 30 de novembro e 1o de dezembro de 1996 teve lugar em Santa Teresa um evento organizado pelo Viva Santa. Um total de 64 artistas, entre pintores, escultores, fotógrafos promoveram o "Arte de Portas Abertas". A identificação do ateliê do artista era feita através de uma bandeira amarela, que possibilitava as pessoas entrarem e verem diversos trabalhos: esculturas, pinturas, tapeçarias, objetos em papel machê, cerâmicas, etc. Moradores do bairro e visitantes de outros bairros participaram desse programa cultural pelas ruas de Santa Teresa. Foi um evento que ressaltou a singularidade do bairro.

O carnaval nos bondes também é algo importante na imagem de Santa Teresa como bairro "tradicional". Como nas demais festas que ocorrem no bairro, o bonde está sempre presente. Em 16 de fevereiro de 1996 , às 17:00 horas, no Curvelo, teve início a concentração do bloco carnavalesco "As carmelitas", do bairro de Santa Teresa. As pessoas foram chegando, muitos moradores e turistas. Vendiam-se véus preto e branco, simbolizando o véu das carmelitas. Muitos homens e mulheres compravam e usavam os véus. Os organizadores do bloco rifaram um bonde de madeira. Pessoas vendiam camisas (com as sandálias das carmelitas impressas) com o nome do bloco e o bondinho. Havia também uma boneca de pano enorme representando uma carmelita, um bonde de pano e, dentro dele, crianças, jovens, etc. É interessante a imagem do bonde sempre presente no bloco. Os foliões cantavam a música do bloco, que também fazia referência ao bonde. As 18:00 h saiu do Centro Cultural Laurinda Santos Lobo um bonde "fantasiado" e foi até o Curvelo . O que vale assinalar é a presença do bonde nas várias festividades e manifestações, como um símbolo do bairro.

A permanência e a manutenção dos bondes de Santa Teresa fazem parte de uma estratégia de luta travada pelos trabalhadores contra o processo de extinção. Os trabalhadores lutam pela preservação do bonde contra o "sucateamento", e deles mesmos, enquanto grupo social. Ao restaurar as peças dos bondes, eles estão tentando manter o bonde em funcionamento. Do mesmo modo, ao serem detentores de um saber específico, tentam salvar um tipo de conhecimento ameaçado de extinção.

O bonde já faz parte do bairro, sendo difícil pensá-lo fora deste contexto. O bonde é identificado com a história do bairro de Santa Teresa: ele é representado como um transporte acessível às diversas categorias sociais que habitam o bairro, como um meio de transporte ideal para o bairro. O bonde aparece associado à "tradição", ao passado e à identidade do bairro e da cidade. Ao mesmo tempo, os trabalhadores acreditam na viabilidade do bonde como meio de transporte para o bairro. A concepção de preservação do bonde pelos moradores está relacionada à luta pela preservação e valorização do bairro e a uma melhoria na qualidade de vida dos que lá habitam.

NOTAS

1 O nome de Santa Teresa é uma homenagem a Santa Teresa de Avila, carmelita e escritora espanhola do séc. XVI, canonizada e padroeira do bairro de Santa Teresa (Folha de Santa Teresa - set/94).

2 Com a transformação do bairro de Santa Teresa em APA fica proibida a instalação de indústrias de qualquer tipo, salvo aquelas puramente artesanais, desde que não possuam qualquer grau de poluência.

3 Ver Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990.

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