49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Artur Cesar Isaia

Simpósio: Religión y política: una relación de mútua implicacion.

POL - 11

As negras imagens do anti-Brasil: as reprresentações católicas sobre a Umbanda.

Autor: Artur Cesar Isaia

AS NEGRAS IMAGENS DO ANTI-BRASIL: AS REPRESENTAÇÕES CATÓLICAS SOBRE A UMBANDA.

Artur Cesar Isaia

UFSC-BRASIL

À medida em que o catolicismo perdia uma situação de comodidade quase monopólica no mercado religioso no Brasil, crescia a importância da Umbanda, sobretudo no meio urbano. Esse crescimento levou a Igreja a um discurso polêmico, no qual recorria a representações do nacional , onde buscava tornar óbvia a identificação entre o ser brasileiro e a catolicidade.

A contra-ofensiva católica sobre a Umbanda buscava a sensibilização de aliados tradicionais (classes médias, elites dirigentes), amparada , tanto no senso comum como no universo intelectual no qual se movia uma parcela de inteligentsia brasileira de meados do nosso século.

AS NEGRAS IMAGENS DO ANTI-BRASIL: AS REPRESENTAÇÕES CATÓLICAS SOBRE A UMBANDA

Artur Cesar Isaia

Curso de Pós-Graduação em História

UFSC

Ao abandonar o século XIX, a monarquia e a escravidão, as elites brasileiras assumiam a postura mítica de introdutoras do Brasil em uma era de progresso. A idéia de implementar o progresso do país, a despeito de um povo analfabeto, doente e supersticioso, apresentar-se-á como recorrente aos projetos dessa elite em diferentes momentos da vida nacional, configurando, segundo Pécaut uma leitura da vida nacional caracterizada pela constante desconfiança na capacidade participativa da população.(1)

No afã de construir uma nação, criar uma memória e forjar uma identidade, a inteligentsia brasileira recorreu a sucessivos discursos para representar o ser brasileiro. A desqualificação da pobreza, da negritude e das populações interioranas perde-se no fio da memória, alimentada pela ficção, pelo saber científico, pelo senso comum. Dessa forma, diferentes dircursos serviram de veículo à circulação de mitos extremamente poderosos, justamente por sua capacidade, detectada por Roland Barthes, de apresentarem-se como constatações naturais, óbvias.(2)

Os vários interditos proferidos contra o negro e o mestiço por diversos saberes, tiveram sua eficácia performativa justamente por nutrir-se de conteúdos imagéticos implícita ou explicitamente há muito afirmados na memória coletiva.

O surgimento de uma religião que se queria nacional como a Umbanda, acena claramente para essas ambiguidades constitutivas do imaginário social, capazes de subverter , afirmando valores e contrapor-se a imagens cristalizadas, estabelecendo com elas nexos interativos.(3)

A nova religião brotava em um contexto urbano, marcado pela explosão da heterogeneidade, em uma sociedade na qual sobreviviam relações interpessoais fortemente estamentais(4)mas de mando explicitamente autoritárias. A nova religião precisava, sobretudo, antepor-se ao discurso católico, que qualificava a Umbanda com a treva, com o atraso, com o anti-Brasil, que se queria civilizado pela cruz e obediente à Igreja.

Na virada do século, João do Rio (5) registrava as reuniões do que denominava de baixo espiritismo em vários pontos da capital da República. É bastante sintomático que o cronista denomine as práticas mediúnicas nas quais estão inseridas populações postadas à margem da sociedade, do senso comum e dos padrões burgueses, de baixo espiritismo. Essas reinvenções das práticas mediúnicas, brotadas nas infinitas táticas cotidianas de seres anônimos, traziam uma capacidade de comunicação ímpar com os valores, anseios e frustrações de uma ampla camada da sociedade, para quem, tanto os serviços públicos, como a democracia formal e as oportunidades do mercado de trabalho não sinalizavam com possibilidades reais de inclusão. Para esses homens e mulheres, as práticas mediúnicas, acrescidas de um conteúdo mágico e da presença de um ritual (o que faltava ao Espiritismo codificado por Allan Kardec) apresentavam-se totalmente articuladas a suas vivências e às referências de sua memória. Esse baixo espiritismo registrado por João do Rio apresentava-se ao cronista como um signo da precariedade existencial a que estavam submetidas extensas camadas da sociedade. A miséria, a doença, a falta de perspectivas, apareciam como o cenário de um drama urbano, no qual a recorrência ao mágico tornava o cotidiano menos áspero e a realidade mais suportável. A descrição que João do Rio faz de uma sessão mediúnica na periferia da cidade resume seu olhar sobre essas práticas. O local aparece como paupérrimo, mal iluminado, frequentado por mulheres desgrenhadas, mulatinhas bamboleantes, negras de lenço na cabeça com o olhar alcoólico, homens de calças abombachadas... A descrição avança registrando o autor imagens bizarras da miséria:

No momento em que entramos a médium, em chinelas, é presa de um tremor convulso. Diante da entrada, uma portuguesa, com o olhar de gazela assustada na face velutínea, espera. A pobre casou, o marido deu para beber e, desgraça da vida! batelhe de manhã à noite, deixa-a derreada.(6)

João do Rio enxerga essas práticas como integrantes da ambiguidade do progresso que a capital federal passava a vivenciar. De um lado as reformas urbanísticas, o cinematógrafo, o automóvel, o domínio da racionalidade e da ciência, de outro, a face irracional, sombria do progresso, capaz de revelar desejos inconfessáveis, vícios, degeneração, pobreza. Segundo Veneu o olhar de João do Rio sobre a pobreza e seu universo mítico parece dar um outro significado às observações da miséria naturalistas.(7)

Se o olhar de João do Rio peculiariza-se por seu caráter ambíguo, insistindo na integração dessas práticas ao quadro de afirmação da modernidade no país, a inteligentsia brasileira demonstrava simplesmente uma reação de estranhamento frente a uma realidade que negava um progresso a priori definido por ela.

Ou seja, as elites procuravam a miragem de um mundo civilizado e encontravam barbárie. Moviam seus projetos pelo devaneio de progresso e defrontavam-se com o atraso. Maria Regina Naxara analisa as imagens do povo plasmadas pela elite a partir dessa dicotomia, mostrando que assim, chega-se a uma definição do brasileiro pela ausência do que se esperava que pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe faltava. O brasileiro era visto como elemento despreparado e imaturo para o exercício do trabalho livre e para a sociedade do progresso que se prentendia.(8) A isso articulavam-se os estigmas da cor e da desqualificação do trabalhador, projetando uma imagem do povo necessitado da ação regeneradora das elites. Nesse olhar sobre o pobre, este aparece em uma situação de alteridade à sociedade limpa, ordeira, sadia, produtiva, respeitadora de códigos de moral elevados, detentora de um saber científico, representada pela elite. Aos padrões de civilização e progresso, contrapõe-se uma turba bárbara, animalesca e supersticiosa, representada em situação de frontal oposição à elite.(9) Esta, através de uma série de estereótipos, tecia a imagem de um outro (improdutivo, irracional, supersticioso, sujo, doente...) carente total da sua ação educativa e salvadora. Essas imagens, difundidas por diversos saberes, reforçavam a identidade da elite, ciosa em permanecer como modelo, como protótipo óbvio da verdade. Aqueles que não partilhavam dos significados impostos pela elite passavam a ser vistos como desvios perigosos. Maria Luiza Tucci Carneiro, referindo-se às populações pobres na virada do século, diz haver um cruzamento nos estigmas impostos pelos saberes valorizados pela elite, envolvendo numa só trama,entre outros, o mendigo, o louco, o negro, a prostituta e o mandingueiro.(10)

Contra essas representações da elite, capazes de desqualificar saberes e modos de vida alternativos, é que a Umbanda terá que fazer frente, a fim de afirmar-se no mercado de bens simbólicos. Sobretudo, terá que lutar para impor uma imagem capaz de contradizer a relação estabelecida pelos saberes oficiais e pelos órgãos governamentais entre as suas práticas mediúnicas e as manifestações , pejorativamente batizadas de magia negra, feitiçaria, baixo espiritismo e macumba.(11)

Na sua luta por legitimar seu sistema simbólico, a Umbanda buscará aproximar-se dos padrões tolerados pela elite, enfatizando em suas representações o caráter ordeiro, disciplinado, obediente à lei e ao poder, capaz de contradizer imagens altamente difundidas. Nesse sentido, Renato Ortiz recorre à noção weberiana de legitimidade racional, ao estudar a forma com que a Umbanda buscou legitimar o seu sistema simbólico. Para o autor, assim, a Umbanda buscou padrões típicos do universo significativo assumido pelas elites:

Esse esforço de legitimação,de explicação do mundo é necessário, pois não se deve esquecer que a religião Umbandista é um valor novo que emerge no seio da sociedade brasileira. Isto faz com que a religião se aproprie dos valores dominantes da sociedade global como elementos legitimadores...(12)

A tese de Ortiz(13), endossada por Diana Brown(14) , sobre a forma como a Umbanda, buscando a legitimação de seus sistema simbólico, operou uma diluição do ethos africano na cultura das elites, é discutida, entre outros por Lísias Nogueira Negrão(15) . Para o autor, seus estudos sobre a Umbanda em São Paulo, apontam para a comprovação apenas parcial desse posicionamento. Para Negrão a assertiva dos autores apenas comprova-se nos primórdios da existência da Umbanda . A partir da valorização da categoria classe social, Negrão caracteriza a ambiguidade da nova religião:

... embora produto de elaboração popular, refletindo as preocupações e aspirações próprias de sua origem, vê-se penetrada, orientada e comprometida por expressões ideológicas emanadas dos setores dominantes. Mas a Umbanda hesita entre as duas orientações, ora resiste, ora se acomoda.(16)

As análises, tanto de Negrão, como de Maria Helena Concone, relativizam a tese de Ortiz acerca do empretecimento do espiritismo kardecista e do embranquecimento das tradições africanas na Umbanda. Contudo reconhecem a importância do fenômeno da busca de legitimação da Umbanda. Sobre o assunto, escreve Concone:

Não é pois à toa que insistimos no peso da busca de legitimação por parte da Umbanda como um fator ponderável. Como dissemos, em que pese a especificidde desta forma de religiosidade popular, ela é herdeira de formas anteriores de religiosidade afro-brasileira (embora a totalidade religiosa da Umbanda não se constitua apenas desta herança.)(17)

Pensamos que essa aproximação com diferentes discursos, por parte da Umbanda, possa ser melhor compreendida se enfocarmos a questão a partir das múltiplas possibilidades de ressemantização apresentadas historicamente pelo esforço produtor de sentidos à realidade pelo homem. Dessa forma, a memória coletiva, o interdiscurso serviria de matriz geradora dessas significações. Eni Orlandi, referindo-se à exterioridade discursiva da memória, mostra como, a partir dela, a realidade é criada/recriada pelos sujeitos. Assim, pela noção de objetividade material buscada em Pêcheux, algo fala sempre antes, em outro lugar(18)

Aí se explicita o processo de constituição do discurso: a memória, o domínio do saber, os outros dizeres já ditos ou possíveis que garantem a formulação (presentificação) do dizer, sua sustentação. Garantia de legibilidade e de interpretação: para que nossas palavras façam um sentido é preciso que já signifiquem. Essa impessoalidade do sentido, sua impressão referencial, resulta do efeito de exterioridade: o sentido lá. A objetividade material contradotória.(19)

Assim é perfeitamente previsível a recorrência da Umbanda aos múltiplos significados socialmente compartilhados.

Donald Warren, em um estudo sobre a terapia espírita praticada pelo Dr. Bezerra de Menezes, no Rio de Janeiro da virada do século, mostra que a mesma correspondia a uma inclinação mental, comum a todos os brasileiros, à excessão da pequena camada instruída e dos católicos recentemente romanizados(20) O autor mostra que o Dr. Bezerra fora educado em um clima ainda fortemente marcado por uma cultura rural. Esse ethos mental , o autor qualifica de espiritualidade reflexa, designando com a expressão um ambiente no qual entidades rarefeitas - almas penadas, santos, encostos, etc. - funcionavam como veículos que incorporavam os medos e as esperanças inconscientes alimentados pelos brasileiros no cofronto com as incertezas de um meio bastante hostil.(21)

O surgimento da Umbanda no mercado de bens simbólicos adquire nexo ao ser relacionado exatamente a práticas e significações ancestrais, ao domínio da memória. O aparecimento da nova religião está ligado, por um lado, a uma busca, muitas vezes bastante explícita de legitimação frente a saberes que com ela se confrontavam (do Estado, da medicina oficial, do catolicismo, do kardecismo, etc.). Por outro, o historiador defronta-se com a necessidade de trilhar um caminho nem sempre tão óbvio e racional, onde as lembranças dos sujeitos registram-se em estruturas de comunicação informal, na memória coletiva subterrânea (22). Pensando o caráter polissêmico, fluido e complexo dos significados socialmente compartilhados(23) assume-se como inevitável que a Umbanda recorra a diferentes registros da memória coletiva. Os valores da elite letrada, do Estado que a perseguia, do catolicismo que a condenava, como referências das significações assumidas socialmente, aparecem no quadro maior constitutivo do relacionamento histórico da Umbanda com a sociedade. A Umbanda ancora-se significativamente na memória, estabelecendo com ela todos os jogos constituintes das redefinições de sentido estudadas por Sahlins, quando, ao assumir o caráter dinâmico do mundo das significações, dos signos em ação, mostrar que estes historicamente são engajados em projetos por interesses e, dessa forma, em relações temporais de envolvimento.As significações, portanto, pertencem ao domínio do humano, de sua capacidade em recriar e estabelecer nexos interativos. São, portanto, potencialmente inventivas(24) .

A afirmação da Umbanda como um valor novo na sociedade brasileira da primeira metade do nosso século e sua luta por identificar-se como religião e como nacional, integra-a ao quadro maior da circulação dos significados sociais. Assim, se por um lado ela apresentar-se guardando uma relação de oposição a algumas matrizes discursivas, será com elas que a Umbanda estabelecerá nexos de inteligibilidade e significação do mundo. Dessa forma, as lutas de representação pela realidade, configuram situações, ao mesmo tempo de excludência e de partilha de significados. A relação da Umbanda com as significações da realidade assumidas por outros saberes e olhares parece perseguir a mesma lógica estudada por Chartier, ao referir-se às lutas de representação entre a chamada religião popular e a religião institucionalizada, na conjuntura do Concílio de Trento:

A chamada religião popular era ao mesmo tempo aculturada e aculturadora: nem totalmente controlada, nem absolutamente livre, afirmava os modos específicos de crença no cerne da aceitação de novos modelos de espiritualidade.(25)

Assim, as relações entre a Umbanda e o catolicismo, o espiritismo kardecista, o saber médico, o Estado, etc. são permeadas por uma série de jogos, capazes de redefinir constantemente a sua identidade social. Jogos marcados, obviamente, pela presença do político, em múltiplas formas relacionais de exercício do poder.(26) As diferentes faces da Umbanda afloram,assim, nas múltiplas situações históricas que a relacionam com todo um sistema simbólico. Nesse sentido, Concone(27) , comentando a idéia, segundo a qual a Umbanda representaria uma ritualização do cotidiano brasileiro, uma verdadeira metáfora da sociedade, em oposição à ideologia oficial(28) , acentua seu caráter contraditório: contratcultural e conservador, ao analisar as suas estratégias, principalmente de relacionamento com o poder instituído.

Quando não contracultural, pelo menos reforçadora de uma dimensão `malandra´ da sociedade e do homem brasileiro, a Umbanda surge frequentemente como manifestação popular por excelência: rica de manifestações, criativa e mutante. Uma face contrária a esta, contudo, também tem se oferecido ao interesse do investigador. Contracultural e conservadora, são imagens contraditórias que surgem em diferentes e numerosos trabalhos que tratam da Umbanda.(29)

Embora o trabalho de Concone diga respeito, sobretudo, ao envolvimento das Federações de Umbanda com o sistema político-partidário no Brasil (a autora faz uma diferenciação entre Umbanda `de terreiro´ e outra `de Federação´), a plasticidade com que a mesma se apresenta aos jogos do social é sumamente esclarecedora para compreendermos as estratégias através das quais a nova religião procurou impor-se às significações aceitas socialmente.

Se os discursos que se habilitavam a monopolizar a verdade, pela familiaridade com o poder , insistiam em acentuar a face atrasada, ignorante, diabólica da Umbanda, a nova religião, pelo menos nos seus primórdios, buscou, justamente, credenciar-se à sociedade com um conteúdo simétrico a eles. Isso parece-nos perfeitamente plausível, uma vez que os sujeitos não dispõem de uma liberdade a-histórica para significar a realidade. Ao contrário, eles estão sob a dependência de um poder de dizer que os transcendem . São essas matrizes discursivas constituintes da cultura que fornecem o já dito com os quais se estabelecem critérios de veracidade.(30)

Os registros da memória de umbadistas são sumamente reveladores desse trabalho em credenciar a nova religião com um conteúdo significativo contrário às imputações que a aproximavam da marginalidade e do atraso. A própria procura por um marco fundador oficial parece acenar claramente nesta direção. Aí aparece a face ordeira, disciplinada, racionalizada da nova religião e a sua busca por uma erudição que a elevasse frente às práticas mediúnicas anteriores. Nesse sentido, a busca por um marco fundador oficial, no qual a Umbanda passa a confundir-se com importante registro da História recente do país, é sintomático da invenção de uma tradição(31) , rica em referências ao já dito. O 15 de novembro de 1908 aparece na memória da Umbanda como um marco, capaz de dividir claramente, as práticas mediúnicas anteriores, do surgimento de uma religião nova e nacional. A data corresponde à primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas(32) , que, em uma sessão kardecista, mostrou o desejo do astral de criar uma religião tipicamente brasileira.

É interessante que o surgimento da nova religião, que passará a reivindicar o status de nacional, deu-se justamente na comemoração do advento do regime republicano. A coincidência parece conjugar-se com conteúdos imagéticos muito fortes, acenando na direção do nacionalismo aprofundado pela República. Justamente, quando se sabe que as décadas seguintes à proclamação da República, presenciaram um trabalho muito explícito de constituição da nacionalidade pelas elites. O jacobinismo republicano, valorizador da racionalidade européia , obcecado pela idéia de progresso e pouco simpático ao negro e ao mestiço, parece ter dialogado de forma muito estreita com o imaginário social.

Gladis Ribeiro, analisando o jacobinismo dos primórdios da República, salienta a persistência das representações do negro eivadas de interditos, que passam a conviver, após a ascensão dos civis, com uma imagem do ser brasileiro, segundo a qual o fundamental era a nossa especificidade enquanto nação, era a noção construída de democracia racial em que todos, apesar dos pesares, seríamos irmãos.(33) A referência ao 15 de novembro, ia ao encontro, portanto, de todo um esforço visando a construção de uma identidade nacional, acenando para um marco temporal que se habilitava a construir um Brasil diferente daquele, com resquícios coloniais persistente na fundação do Império. Os anos que sucederam à proclamação, ainda revelavam a crença nas excelências do novo regime. As elites ainda não tinham em mente a relativização do regime de 1891, postura que se delineará claramente nos anos 20.(34)

A mensagem fundadora da Umbanda, proposta pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, acenava para uma religião, capaz de encampar a idéia de democracia racial, de ordenar e disciplinar práticas há muito assumidas no cotidiano das populações. É interessante como esse conteúdo aparece repetido em várias obras de umbandistas, quando referem-se ao surgimento da Umbanda no Brasil. Reforça-se a mensagem fundadora da Umbanda, como integrante do esforço evolutivo da humanidade (do qual a abolição da escravatura e a proclamação da República fariam parte). Persiste-se na idéia da missão da nova religião em elevar o povo e suas crenças. Diamantino Trindade, por exemplo, ao contextualizar os primórdios da Umbanda, salientando a missão do Caboclo Curuguçu como entidade capaz de preparar terreno para a manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas em 1908, escreve:

O final do século XIX é marcado no Brasil por um grande balanço social devido a libertação dos escravos e a instauração da República ( uma forma mais justa de governo ), que iniciava a sua peregrinação no Brasil. A Corrente Astral da Umbanda aproveita esta reviravolta social e, por volta de 1889, lança o vocábulo Umbanda em vários pontos do país. A essa altura o mediunismo já invadira os cultos deturpados e miscigenados entre os indígenas e os escravos africanos.(35)

Vê-se como o 1889, inaugurando uma forma mais justa de governo coincide com o lançamento do vocábulo Umbanda. O Brasil estava galgando mais um passo rumo à evolução social e a Umbanda surgia como veículo afirmador dessa realidade, promovendo uma depuração em crenças ancestrais, capaz de elevá-las a um nível de erudição e civilidade.

A Umbanda surgia, assim, segundo Matta e Silva para opor-se às práticas mediúnicas populares, tão disseminadas no Brasil do final do século passado:

Toda essa complexa mistura que o leigo chama de macumba, baixo espiritismo, magia negra, envolvendo práticas fetichistas e barulhentas... era a situação existente, quando surgiu um vigoroso movimento de luz, ordenado pelo astral superior, feito pelos espíritos que se apresentavam como Caboclos, Pretos Velhos e Crianças.(36)

Insiste-se na imagem da Umbanda como a luz, capaz de dissipar o erro e a ignorância, criando uma nova religião acorde com o passado do brasileiro e seu destino evolutivo:

Surgiram práticas as mais confusas e desordenadas, envolvendo oferendas com sacrifício de animais, sangue, etc., e por isso tudo fez-se imprescindível um novo movimento dentro desses cultos ou de sua massa de adeptos, feito pelos espíritos carmicamente afins a essa massas e pelos que, dentro de afinidades mais elevadas, se aplicam no amor e na renúncia em prol da evolução de seus semelhantes, o qual foi lançado através da mediunidade de uns e outros pelos Caboclos e Pretos Velhos, com o nome de Umbanda.(37)

A persistência com que o tema do progresso, da evolução, da oposição da nova lei de Umbanda às práticas supersticiosas aparecem nos textos dos intelectuais de Umbanda parece sugerir sua busca de erudição na direção de uma religião, como o Espiritismo, que se representava como dotada de um substrato científico, idéia esta tão ao gosto das elites republicanas. Ceres Medina, analisando a obra de codificação do Espiritismo por Allan Kardec nota o seu parentesco com a teoria científico-evolucionista de Comte.(38)

A mensagem evolucionista e nacionalista da Umbanda aparece reiteradamente em muitos escritos de intelectuais da nova religião, como nas palavras de Leal de Souza, em entrevista no ano de 1952, ao referir-se sobre a manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas a 15 de novembro de 1908 e à sua missão:

A sua missão é, portanto, a de preparar espíritos encarnados e desencarnados que deverão atuar no espaço e na terra na época futura em que ocorrerá um acontecimento da importância do advento de Jesus no mundo antigo. O Caboclo das Sete Encruzilhadas chama Umbanda os serviços de caridade, a demanda, os trabalhos para neutralizar ou desfazer os da magia negra...

A Linha Branca de Umbanda é realmente a religião nacional do Brasil, pois que, através de seus ritos, os espíritos ancestrais, os pais da raça, orientam e conduzem a sua descendência...(39)

Em oposição ao caráter ágrafo do candomblé, a Umbanda, nos seus primórdios, fazia questão em salientar a sua face letrada, evoluída, erudita e nacionalista. A referência ao 1889, ao início de uma forma mais justa de governo, acena para uma visão evolucionista, aparecendo a República e a Umbanda como evidências de um processo de aperfeiçoamento do Brasil, que deveria ser o quartel general da regeneração do mundo. Nesse processo, o aparecimento da Umbanda, representando-se como religião tipicamente nacional, reforçava a idéia das excelências do presente em relação ao passado, dominado pela monarquia, pela ascendência institucional do catolicismo e pela proliferação de práticas mediúnicas totalmente indisciplinadas.

Contra essa tentativa legitimadora da Umbanda, insistia o catolicismo em remetê-la aos subterrâneos da sociedade. O discurso católico da primeira metade do século, perseguindo a imagem da obviedade de um Brasil Católico, identificava a Umbanda com transgressão a uma ordem, na qual o catolicismo aparecia como constante histórica e fator nomizador.(40)

- NOTAS-

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

2BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972, p.163.

3As possibilidades de dinamizar-se um parentesco espiritual foi estudado por Lowy em seu estudo clássico sobre os vínculos entre messianismo judaico e utopia social. LOWY, Michael. Redenção e utopia. O judaísmo libertário na Europa Central: Um estudo de afinidade eletiva. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

4 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre:Globo, 1979.

5 RIO,João do. As religiões no Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.

6 Idem, p. 165.

7 VENEU, Marcos Guedes. O `flâneur´ e a vertigem.Metrópole e subjetividade na obra de João do Rio. Estudos Históricos. 3(6):232.

8 NAXARA, Maria Regina Capelari. A construção da identidade: um momento privilegiado.Revista Brasileira de História. 12(23-24): 184.

9 Sobre a representação do pobre como a escória da sociedade ver. RAGO, Margareth.Do cabaré ao lar. A utopia da sociedade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1985.

10 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Negros, loucos negros. Revista USP. (18): 146-7.

11 CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Memória e crítica dos envolvimentos políticos e das relações entre a Umbanda e a Igreja Católica. Projeto História. 6(7): 41.

12 A autora faz um levantamento da presença da repressão a essas práticas mediúnicas na imprensa de São Paulo, evidenciando a inexistência de referência à Umbanda, antes da década de 1950.

13 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978, p.150.

14 Idem.

15 NEGRÃO, Lísias Nogueira. A Umbanda como expressão de religiosidade popular. Comunicação apresentada ao debate sobre Cultura Popular e Religiosidade Popular, promovido pela Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo e Associação Nacional de Cientistas Sociais, em 25/10/77.

16 Idem.

17 CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Op. cit., p.42.

18 ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 39.

19 Idem.

20 WARREN, Donald. A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900. Religião e Sociedade. 11(3):56.

21 Idem, p. 58.

22 POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos.2(3).

23 DARNTON, R. O beijo de Lamourrette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 289.

24 SAHLINS,Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.188.

25 CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural.São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 234.

26FOUCAULT, Michel.Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

27CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Op.cit.

28Refere-se, principalmente aos trabalhos de Peter Fry. FRY, Peter.Para inglês ver. São Paulo: Brasiliense, 1982.

29CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Op. cit, p.39.

30FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso.São Paulo: Edições Loyola, 1996.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

ORLANDI, Eni Pulccinelli. Op. cit.

31HOBSBAWM,E. & RANGER,T(org.).A invenção das tradições.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

32Não se discute o status ontológico dessas manifestações, nem da própria religião. A religião é aqui encarada no âmbito dos estudos empíricos, como realidade cultural, ou seja, como tentativa de significar a realidade pelos homens. A religião é tratada em uma perspectiva próxima à proposta por Peter Berger, ou seja apenas sub specie temporis. Ver BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

33RIBEIRO, Gladys Sabina. O jacobinismo nos primeiros anos da República: seus ódios, suas razões e a criação de uma idéia de nação. História: Questões & Debates. 10(18-19):262-3.

34 MALATIAN, Teresa M. O retorno do Cesar Caricato. In: BRESCIANI, Maria Stella et.al. (org.) Jogos da política. Imagens, representações e práticas. São Paulo: ANPUH/São Paulo-Marco Zero-FAPESP, s.d.

35 TRINDADE, Diamantino Fernandes. Umbanda e sua História. São Paulo: Ícone, 1991, p.53-4 (o grifo é nosso)

36 Apud.GUIMARÃES, Edyr Rosa & LIMA,Almir S.M.de. Umbanda: sua codificação. Rio de Janeiro: Erca Ed. e Gráfica, 1993, p. 27

37 Idem, p. 27-8.

38 MEDINA, Ceres de Carvalho. O pensamento kardecista. In: CONSORTE, Josideth Gomes & COSTA, Marcia Regina da. Religião, Política e Identidade. São Paulo, EDUC, 1988.

39 Apud. TRINDADE, Diamantino Fernandes. Op. cit., p.56.

40 ISAIA, Artur Cesar. Umbanda e nacionalismo no Brasil. Teo Comunicação. Porto Alegre, 27(115):95-108.

-BILBIOGRAFIA-

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo:Difusão Européia do Livro, 1972.

BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas,1985.

BROWN, Diana et al. Umbanda e política. Rio de Janeiro: ISER/Marco Zero, 1985.

CARNEIRO, Maria Lucia Tucci. Negros, loucos negros. Reista USP(18).

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lyinn. A nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Memória e crítica dos envolvimentos políticos e das relações entre a Umbanda e a Igreja Católica. Projeto História 6(7).

DARNTON, R. O beijo de Lamourrette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1976.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

GUIMARÃES, Edyr Rosa & LIMA, Almir S.M. de. Umbanda: sua codificação. Rio de Janeiro: Erca Ed. e Gráfica, 1993.

HOBSBAWM, E. & RANGER, T. (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

MALATIAN, Teresa. O retorno do Cesar Caricato. In: BRESCIANI, Maria Stella et al. (org.). Jogos da política. São Paulo: ANPUH/Marco Zero-FAPESP, s.d.

MEDINA, Ceres de Carvalho. O pensamento kardecista. In: CONSORTE, Josideth Gomes & COSTA, Maria Regina da. Religião, Política e Identidade. São Paulo: EDUC, 1988.

NAXARA, Maria Regina Capelari. A construção da identidade: um momento priviletiado. Revista Brasileira de História. 12(23-24).

ORLANDI, Eni Pulccinelli. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978.

POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos.2(3).

RIBEIRO, Gladys S. O jacobinismo nos primeiros anos da República: seus ódios, suas razões e a criação de uma idéia da nação. História: Questões/Debates.10(18-19).

SAHLINS, Marshall.Ilhas da História.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editos, 1990.

TRINDADE, Diamantino Fernandes. Umbanda e sua história. São Paulo: Ícone, 1991.


Buscar en esta seccion :