PONENCIAS

GRUPOS ÉTNICOS E IDENTIDADE: A CONQUISTA DA DIFERENÇA PELOS ÍNDIOS KAINGANG E KRENAK.

Leonardo de Oliveira Cruz 1

 

Nós somos como o capinzinho que amarelou de tanto ficar debaixo da pedra e agora se levanta. A vida não acabou no passado de sofrimento. Vamos ter força no futuro, porque lutamos, não nos entregamos, geração por geração. Muitos dos que fizeram nosso povo sofrer estão vivos! Esperamos que respeitem nosso jeito de viver. Somos cidadãos do mesmo país!
 
Zezão Krenak 2

RESUMO

 

A discussão antropológica sobre a questão da identidade étnica e da etnicidade vem sendo objeto de alguns estudiosos da etnologia, pois há um grande número de etnias indígenas que estão reivindicando o seu papel dentro da sociedade brasileira envolvente. Estes índios são aqueles que por muito tempo ficaram ausentes dos trabalhos etnológicos, pois caiam sobre eles o duro fardo de manterem relações constantes com o não índio e que, portanto, sofreram uma forte desorganização tribal. Tornou-se comum encontrarmos elementos da cultura ocidental no interior das suas organizações, o que para muitos seria o processo de integração e assimilação do índio à sociedade capitalista. Porém, nas últimas décadas não é irrelevante a quantidade de etnias que estão se organizando em torno de sua identidade, reforçando-a através de alguns traços culturais manipulados por eles para marcar a sua diferença. No entanto, para ilustrar esta situação é que este artigo tem como objetivo analisar a maneira que os índios Kaingang paulistas juntamente com os Krenak, localizados no Posto Indígena Vanuíre na cidade de Arco-íris na região oeste do estado de São Paulo vêm se relacionando e se organizando para fortalecerem as suas diferenças.

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   Atualmente, no Brasil, tornou-se freqüente a discussão em torno da identidade étnica de algumas etnias indígenas, pois algumas delas, devido às conseqüências do processo violento que sofreram ao entrar em contato com o não índio, tal como a espoliação de suas terras, depopulação causada por doenças, desarranjo na sua organização tribal, não vivem como antes do contato (RIBEIRO, 1970).  Muitas foram as mudanças ocorridas chegando até mesmo a serem extintos alguns ritos, língua etc. Entretanto, muitos foram os elementos da sociedade ocidental que algumas etnias adotaram depois do contato: a religião cristã, a língua nacional, instituições etc. Contudo, mesmo com todas as transformações ocorridas, mesmo não mais compartilhando de sua antiga organização tribal, a população indígena do Brasil vem se mobilizando a fim de se organizar reivindicando a sua identidade étnica, contrariando todas as teorias que pregavam o fim do nativo indígena ou a sua integração na sociedade ocidental capitalista.

Esta discussão é um dos pontos que a Antropologia brasileira vem se debruçando. Este despertar dos povos indígenas, mesmo distante de sua antiga organização tribal, vem provocando o interesse das teorias concernentes à identidade étnica e à etnicidade, pois, acreditava-se que o a sociedade ocidental triunfaria sobre as tradicionais, tal como previam os evolucionistas, mas se percebe o contrário, esses índios estão reclamando para si seu reconhecimento enquanto índio sim, e para tanto estão se organizando através da retomada da língua, de cantos, de ritos, e da demarcação de suas terras a fim de deixar evidente ao outro (o não índio) que eles não perderam e nem esqueceram o seu passado, e que este passado está  presente, embora com transformações.

 É assim que índios como os Kaingang paulistas e os Krenak 3, do Posto Indígena Vanuíre, situado no município de Arco-íris, na região oeste do estado de São Paulo, estão se organizando enquanto grupos étnicos conscientes ao reivindicar o reconhecimento de sua existência e, desta maneira, procuram diversos mecanismos para se representarem usando o discurso étnico e alguns traços de sua cultura que acham significativos para marcar a sua identidade e a sua diferença.

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Os índios Kaingang 4 paulistas e os Krenak 5 estão hoje numa pequena reserva no oeste do estado de São Paulo - Posto Indígena Vanuíre - criado em 1916, localizado no município de Arco-Iris, no bairro ponte alta. Sua área corresponde à 706 hectares de terra.

A região habitada por estes índios, o oeste paulista, entrou como área de interesse para a expansão capitalista no final do século XIX com a expansão cafeeira na região. Esta frente capitalista se deparou com um obstáculo que impediu o prosseguimento da marcha para o desenvolvimento, os índios Kaingang, habitantes primitivos da região. Eles resistiram veementemente contra a colonização de suas terras e de seu território pagando caro por isto, pois, não foram poupados das mais terríveis atrocidades cometidas pela empresa capitalista que, dia após dia, aumentava cada vez mais, principalmente com a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ligaria São Paulo a Bolívia. Os trilhos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, aos poucos, penetravam em território Kaingang, o que causou vários ataques destes índios aos acampamentos dos funcionários desta empresa. Em contrapartida, os nativos passaram a ser alvo de ataques violentos, chegando a ser atacados e assassinados em massa. Por um longo tempo, o governo brasileiro não tomou nenhuma atitude em relação a essa região, muito pelo contrário, os seus próprios funcionários incentivavam o extermínio destes povos que em nada contribuíam para o progresso do país. Não só em São Paulo, mas em várias outras regiões do país, os povos indígenas sofriam com a expansão capitalista sobre as suas terras, acompanhada de uma longa agonia que ocupou os grandes congressos e encontros científicos na primeira década do século passado, a ponto de o governo federal criar o Serviço de Proteção aos Índios (o extinto SPI), em 1910. Este órgão passou a atuar de forma que os índios fossem confinados em pequenas porções de terras, as reservas, propiciando o prosseguimento, sem interrupções, do progresso brasileiro.

Pode não parecer verdade, mas não há na aldeia nenhum rio que passe por ela, a não ser alguns córregos como o Pirã, Koiós e Iakri, também não há grandes matas, mas sim algumas manchas de mata espalhadas pela aldeia. Tal situação faz com que os índios freqüentem rios fora da aldeia, em outras fazendas, precisando pedir autorização aos fazendeiros para pescar ou nadar. O mesmo acontece com a ausência de matas, pois algumas sementes para confeccionar artesanato não se encontram na aldeia.

As manifestações culturais Kaingang e Krenak são expressas durante encontros semanais. Desta forma tanto um quanto outro grupo se organiza no que diz respeito à cultura, momento no qual os índios dançam, cantam, fazem seus agradecimentos. Assim, se tal momento revitaliza os traços indígenas e a identidade dos índios, desperta-lhes também o interesse individual, pautado nos convites para se apresentarem fora da aldeia, ou quando da chegada de visitantes à aldeia. Essa relação se baseia em trocas. Tanto Kaingang quanto Krenak vêem nestas apresentações uma forma de conseguir complemento alimentar ou de outro tipo para a sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que se auto-afirmam enquanto um grupo étnico organizado, dotado de traços diacríticos que os distinguem dos outros e entre si mesmos, índios Kaingang e índios Krenak.

Essas duas etnias têm locais especiais para estes encontros. São as Cabanas. A dos Kaingang é feita de bambu e tem forma circular, com um tronco no centro e é coberta por uma espécie de capim. Duas vezes por semana vão a este local, onde acendem uma fogueira no seu centro pela tarde; à noite o grupo se reúne, quando dançam, cantam na sua língua, agradecem a Deus, à terra e pedem melhorias para todos os habitantes da aldeia. Há, aproximadamente, uns trinta indivíduos. Compõem esse grupo crianças, adultos e velhos, de ambos os sexos. Em se tratando dos Krenak, eles têm duas cabanas como expressão de sua cultura; eles chamam a menor de “museusinho”, porque nela há os artesanatos confeccionados, e os visitantes são para lá levados, caso queiram ver esses artigos. Há uma outra maior, que expressa a tradição Krenak; nela não se pode entrar senão descalço. Esses índios têm um grande apego as suas tradições. Embora sejam cristãos evangélicos, guardam a sua história, seus líderes e seus guerreiros
Assim como a confecção de produtos de artesanato que aumenta no mês de abril, esses encontros também são mais freqüentes quando se aproxima este mês. Pois quando da proximidade do dia 19 de abril, data em que a sociedade brasileira está comemorando o dia do índio, a aldeia passa a ser constantemente visitada por escolas, por grupos de pessoas ligadas às igrejas – pela sociedade civil, em geral - além de que eles são convidados para se apresentarem nas cidades. Portanto, é fundamental que todos compareçam àqueles encontros. Assim, ensaiam os cantos nas suas respectivas línguas e as danças para que, quando forem visitados ou quando saírem da aldeia, esteja tudo preparado. São nestas apresentações que eles se pintam, usam instrumentos musicais, usam roupas feitas por eles mesmos. Esses eventos representam para os não índios o estereótipo do nativo criado pelo nosso imaginário, ao mesmo tempo, assumem um caráter de “resgate cultural” fortificando as fronteiras entre os índios e os não índios.

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Esta forma de organização faz com que esses índios fortaleçam a sua identidade. Pois, estes traços e outros se mantêm enquanto um conjunto de signos que os distinguem como um grupo diferenciado. Eles não são mais aqueles “índios do mato”, mas também não estão, como muitos almejam, assimilados à sociedade envolvente. A fidelidade às suas origens é mantida, embora com mudanças. Contudo o ser índio está presente no seu dia a dia, nas suas relações, nos seus discursos, no seu sentimento de que um dia foram oprimidos e que agora é preciso procurar alternativas para sobreviver a toda à agonia sofrida por mais de um século de contato. Desta forma, “Acreditamos que este nós coletivo, esta identidade “ampla” é invocada sempre que um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido.” (NOVAES, 1990, p. 9).

   Aos poucos eles foram se organizando e hoje têm consciência de serem grupos étnicos, para tanto trabalham dia-a-dia. Há uma preocupação entre eles de poderem ser reconhecidos enquanto dotados de uma identidade – serem reconhecidos exterior e interiormente, pois estes indivíduos criaram relações entre si, sobretudo para fortalecerem os laços intra- grupo. Esta situação favorece o discurso da etnicidade que para Carneiro da Cunha deve ser visto como uma forma de organização política, pois o reconhecimento exterior é verificado a partir do momento em que são convidados para se apresentarem em escolas, em alguns eventos da cidade, além de venderem artesanato. É no momento em que se pintam, cantam ou falam nas suas respectivas línguas, pintam-se, que é permitido a manipulação dos estereótipos presentes no imaginário da nossa sociedade a respeito de quem são, afinal, “os índios”.

 São imagens que devem ser vistas como uma forma de retórica, onde a tipificação e a  manipulação de estereótipos, aproxima-se, enquanto mensagem a ser decifrada, muito mais do interlocutor, um `receptor` tão abstrato quanto o `governo’ ou a `sociedade’, do que daquele que a emite. (NOVAES, 1990, p. 59). 

Assim sendo, é esta cultura, que eles dizem resgatar, que os nomeia e os distingue, considerando que a organização da experiência e da ação humanas se dá por meios simbólicos, e que as pessoas, as relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados. (SAHLINS, 1997). Através destas manifestações, os Kaingang e Krenak legitimam uma identidade ao criar diferenças e estabelecerem valores numa relação mútua com a sociedade regional. Desta forma, concordando com Barth (1998) que diz ser necessário fazer uma etno-história para percebermos as diferenças entre os não-índios e os índios para que seja possível fazer “(...) a crônica dos ganhos e mudanças culturais e procurar explicar por que razão determinados itens foram tomados de empréstimo”. (BARTH, 1998, p. 191). Isto para não cairmos em concepções falsas sobre o índio que mantém relações constantes com a sociedade nacional brasileira envolvente, pois podemos cair em anacronismos. Portanto, a situação particular destes índios e de outros que viveram o mesmo processo de violência e a sua condição de índios tutelados, pode assim ser descritas:

Após haver sido contactada e se ver sob controle da sociedade regional, a tribo não é passiva à conjuntura interétnica. Dentro de uma situação de contato caracterizada pela contradição entre modos de vida e projetos sociais antagônicos de brancos e índios, estes últimos procuram reagir e ativamente desenvolver diferentes estratégias de resistência. (BRANDÃO, 1986, p. 98)

Confirmando Brandão, podemos  dizer  que  paralelamente ao processo pelo qual os Kaingang mantiveram relações com a sociedade regional, foram criadas novas necessidades no seu mundo. Elementos do mundo exterior ao seu foram incorporados. Alguns pessimistas poderiam dizer que isto é reflexo de um processo de assimilação, ou seja, de um processo regressivo de perda cultural a que todos os povos nativos estariam sujeitos. Podemos contrapor a estas idéias as de Marshall Sahlins que não fala em perdas culturais, mas em transformações culturais, pois determinado grupo humano, devido às imposições culturais da expansão capitalista ocidental passa a reorganizar seu modus vivendis. Em Ilhas de histórias, Sahlins coloca que novos significados são dados àqueles elementos culturais alienígenas, pois “(...) no mundo ou na ação – tecnicamente, em atos de referência – categorias culturais adquirem novos valores funcionais. Os significados culturais, sobrecarregados pelo mundo, são assim alterados” (SAHLINS, 1990, p. 174). Através destas considerações, pode-se dizer que não é possível manter a premissa de que o funcionamento das sociedades indígenas, depois do contato, está baseado em uma lógica organizacional autônoma. Há uma dinâmica interna e novas interpretações dos elementos da cultura ocidental, o que faz com que os Kaingang e Krenak, pela necessidade de sobreviverem adaptam-se à situação para continuarem existindo. Como exemplo disto, verificamos a adesão destes índios ao catolicismo ou ao pentecostalismo na aldeia. D’angelis (1994) considera que este fato mostra que em muitos casos “A identidade religiosa do branco assume, então, para o índio, a função de revalorização de sua pessoa, de superação da imagem negativa de si mesmo, consequência da dominação político-economico-ideológica” (D’ANGELIS, 1994). Talvez seja esse o processo que tenha levado estes índios a se tornarem protestantes ou católicos. Por revalorização ou superação de imagem negativa, os índios aderem a estas alternativas que o contato lhes ocasionou, numa tentativa de sobreviverem  dando novos significados a estes elementos externos e incorporando-os.  E não é só na religião que isto acontece, encontramos esta incorporação de valores em vários aspectos da sociedade tribal: no sistema político, no casamento etc.

   Sabemos, portanto, que, convivendo em reserva e mantendo relação constante com outros grupos étnicos é necessário que estes índios se afirmem enquanto grupo étnico, que escolham seus traços diacríticos para legitimar sua identidade e que para que seus membros tenham o sentimento de pertença, pois conforme Barth o contato social entre pessoas de diferentes grupos étnicos permite a persistência de diferenças culturais. E ainda, conforme Carneiro da Cunha
[...], a escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da sociedade em que se acham inseridos, já que os sinais diacríticos devem se opor, por definição, a outros do mesmo tipo. (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p. 100).   

   Trata-se da preocupação dos nativos com o seu reconhecimento enquanto tal. A identidade passa a ser evocada sempre que um grupo reivindica, para si, o espaço político da diferença. Ao reunir-se atualmente para ensaiarem seus cantos e danças, confeccionarem artesanatos e vestes apropriadas para as danças e serem convidados para se apresentarem em eventos nas cidades vizinhas, ou em escolas ou senão para grupos de pessoas que os vão visitar, o que ocorre com mais freqüência no mês de abril, quando se comemora o dia do índio, e há por parte deles algumas queixas por serem lembrados só neste período. Mas quando as pessoas se deparam com a realidade vivida pelos índios de Vanuíre que possuem muitos elementos do dia-a-dia do homem branco, tal como casas mobiliadas com sofás, estantes, geladeiras, televisores e não morando em ocas, muito se lamenta que eles perderam sua cultura ou estão perdendo, pois índios que vivem desta forma não o são. Mas isto seria inevitável, afinal depois que os nativos passaram pela agonia causada por doenças, violência, escravidão e expulsão de seu território tradicional, não restaram muitas alternativas a estes povos que sobreviveram a tal situação a não ser, de alguma forma, encontrar outros meios para continuarem existindo, sendo necessário para tanto incorporar elementos da sociedade vigente para sobreviverem. Esse é um ponto muito importante sobre o qual se deve refletir quando se considera uma cultura como um sistema fechado, sem dinamicidade, isento de transformações, e consideram que ela pode ser perdida, conseqüentemente a diversidade cultural não existiria e seria enfim o triunfo da cultura ocidental sobre os nativos. Em relação a esta discussão Carneiro da Cunha nos lembra que

 A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: este novo princípio que a subtende, a do contraste, determina vários processos”. (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p. 99)

A partir dessas considerações podemos dizer que alguns elementos da cultura são forjados para tornarem-se diacríticos e serem considerados como elementos constituintes de uma identidade étnica, desde que haja uma dependência da existência de uma sociedade em que estão inseridos para que estes sinais diacríticos possam se opor a outros de mesmo tipo, e são estes os traços que vão estabelecer fronteiras entre um e outro grupo, sendo escolhidos pelos seus agentes. Por isto, Sahlins, ao fazer uma análise das interpretações sobre o conceito de cultura, que se assemelha muito com o mencionado aqui por Carneiro, embora numa outra interpretação, combate aqueles que o interpretam como justificativa para a opressão e dominação. “A cultura aparece aqui como a antítese de um projeto colonialista de estabilização, uma vez que os povos a utilizam não apenas para marcar sua identidade, como para retomar o controle do seu próprio destino”. (SAHLINS, 1997, p. 6).

Em relação às considerações de Sahlins a respeito da cultura, é possível estabelecer um diálogo entre ele e Carneiro da Cunha; esta diz ser “Relativamente satisfatório o critério cultural”, sendo preciso porém empregá-lo de modo apropriado, e erradicar duas concepções inadequadas que muitos pesquisadores ainda utilizam:

a) o de tomar a existência dessa cultura como uma característica primária, quando se trata, pelo contrário, de conseqüência da organização de um grupo étnico; e b) o de supor em particular que essa cultura partilhada deva ser obrigatoriamente a cultura ancestral. (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p. 115).

A esse respeito algumas considerações aqui já foram levantadas, e não quero “chover no molhado”. Seria, em vão, identificar um grupo étnico, se recorrêssemos aos traços culturais que ele exibe: língua, religião, instituições, técnicas e etc.  Nem sequer poderíamos afirmar que um povo qualquer é o mesmo grupo que seus antepassados. Vivemos num processo de constantes mudanças, causadas pelas circunstâncias naturais e pela interação social com outros grupos. A cultura, nestas condições passa a ser o produto de determinado grupo e não o contrário. (CARNEIRO DA CUNHA, 1986)
   É através da identificação desta organização, denominada grupo social, que podemos extrair a concepção de identidade étnica, que os índios vêm buscando ultimamente. Barth ao tratar destes grupos étnicos, considera-os como uma organização social, onde se encontram características de auto-atribuição ou da atribuição por outros a uma categoria étnica.

Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quanto classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente. Na medida em que os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional. (BARTH, 1997, pp. 193/194)

   Por conseguinte, as características são determinadas pelos grupos em questão.  Seguindo o mesmo raciocínio do autor referido acima, alguns traços culturais são esquecidos, outros selecionados e ainda há aqueles negados ou ignorados. Pude perceber isto quanto perguntei a uma Kaingang sobre o ritual do Kiki 6, O porquê que não havia a sua retomada? Além da resposta dela ser fundamentada nas condições naturais ou físicas, como por exemplo o desaparecimento do mel na região. Pude perceber ainda que o ritual não teria um significado importante para o que eles acham necessário à manutenção de sua identidade. Ao contrário, os Kaingang de Santa Catarina do P.I. Xapecó, pauta a sua identidade étnica na retomada do ritual, que ficou 20 anos sem ser praticado. Estes Kaingang são os únicos dentre todos os desta etnia que o realizam. Juracilda Veiga, estudiosa deste Posto Indígena comenta que

Embora tenha partido, de certa forma, de um estímulo externo, a retomada desse ritual correspondia a uma necessidade dos Kaingang, tanto como uma marca distintiva diante da comunidade envolvente, como uma forma de restaurar o equilíbrio interior da comunidade. (VEIGA, 2000, p. 276)

A autora assim nos coloca que a retomada deste ritual corresponde a uma recuperação da identidade étnica, fazendo com que os Kaingang possam continuar vivendo como tais.

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Não obstante, os Kaingang e Krenak deram o passo inicial para pensar o seu futuro: organizam-se através de reuniões semanais para praticarem suas respectivas línguas, danças, cantos e se apresentarem fora da aldeia mostrando para a sociedade regional brasileira quem são eles. Desta forma, não se deixam absorver pelo mundo regional, com o qual eles mantêm relações constantes. Isso mostra que eles estão se recusando a desaparecer ou a se identificar, de vez, com os regionais. Eles conseguiram sobreviver fisicamente ao colonialismo e não estão fugindo da responsabilidade de reelaborarem culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo (SAHLINS, 1997). A sua cultura torna-se presente, ativa e vibrante, de forma que o passado passa a ser reinventado.

   É com base nestas discussões que se faz necessário refletir questões em torno da identidade étnica e da etnicidade em relação aos índios do oeste paulista, pois estes índios foram esquecidos pela literatura antropológica, que para muitos são apenas índios assimilados e integrados, mas que de uns anos para cá, assim como outras etnias no Brasil, vêm se organizando a fim de construir a sua identidade; marcando as suas diferenças através da revitalização de alguns traços culturais escolhidos por eles para se auto-afirmarem. 
Os traços de contraste que Kaingang paulistas e Krenak escolheram, podemos afirmar que para se diferenciarem da sociedade envolvente, fazem-nos ser portadores de uma identidade étnica que acaba por assim dizer, sendo uma identidade política capaz de lhes assegurar reconhecimento pelos “outro” e de marcar o seu território, estabelecendo fronteiras, traçando objetivos e articulando-os enquanto grupos étnicos organizados.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Editora Fundação da Unesp, 1998.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural.  São Paulo: Brasiliense, 1986.

CARDOSO, Ruth (org.). A aventura antropológica. Teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo:Brasiliense/EDUSP, 1986.

CRUZ, Leonardo de O. Os Kaingang de Vanuíre: relações interétnicas e identidade. Marília: Universidade Estadual Paulista, 2003.

D’ANGELIS, Wilmar. Em que crêem os Kaingang? Religião, dominação e identidade. In: Kaingang: confronto cultural e identidade étnica. Unimep, Piracicaba, 1994.

NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de espelho: imagens da representação de si através dos outros. 1990. Tese (Doutorado em Antropologia Social) –  Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.

OLIVEIRA, Roberto C. de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976.

________________________O trabalho do antropólogo. 2.ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP. 2000.

POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Editora Fundação da Unesp, 1998.

RAMOS, Alcida Rita. Hierarquia e simbiose: relações intertribais no Brasil. São Paulo: Hucitec, Brasília: INL, 1980.

RIBEIRO, Darcy.  Os índios e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1970.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro:  Jorge Zahar Editor, 1990.

_______________ . “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte I). Mana – Estudos de Antropologia Social, Museu Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, UFRJ, 1997 a.

_______________ . “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte II). Mana – Estudos de Antropologia Social, Museu Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, UFRJ, 1997 b.

VEIGA, Juracilda. A retomada da festa do Kikikoi no PI Xapecó e a relação desse ritual com os mitos Kaingang. In: Lúcio Tadeu Mota, Francisco Silva Noelli, Kimiye Tommasino (Org). Uri e Wãxi: Estudos interdisciplinares dos Kaingang. Ed. UEL: Londrina, 2000.

NOTAS

1 Aluno de Mestrado no Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília -  Universidade Estadual Paulista/Marília/São Paulo/Brasil.

2 Zezão Krenak no 1º Encontro de Lideranças Indígenas dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo/Brasil. 

3 Os primeiros índios da etnia Krenak chegaram ao Posto Indígena Vanuíre em 1940. Isto se deu devido a sua terra de origem, o norte do estado de Minas Gerais, ser invadida por fazendeiros logo que eles foram aldeados pelo Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910. Depois de 1940 muitos foram os Krenak que foram transferidos para São Paulo. 

4 Os Kaingang, primitivos habitantes do Planalto Meridional Brasileiro, distribuem-se pelos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Pertencem à família lingüística Jê do Tronco Lingüístico Macro-jê. Sua organização social se caracterizava pela divisão em metades exogâmicas e patrilineares. Eram pescadores, coletores, caçadores e praticavam a agricultura, sendo a cultura  do milho a mais importante.

5 Esses índios são antigos habitantes dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, às margens do rio Doce. São um subgrupo dos Botocudo (denominação dada pelos colonizadores portugueses do século XIX aos índios desta região devido usarem botoques labiais e auriculares de grande tamanho, de madeira branca e leve) do tronco lingüístico Macro-Jê. Já foram denominados de: Aimoré, Gren, Gueren ou Kren e Botocudo. Sua organização social se caracterizava pelo constante fracionamento do  grupo, pela divisão natural do trabalho e por um sistema religioso centrado na figura dos espíritos encantados dos mortos. Eram exclusivamente  pescadores, caçadores e coletores (PARAISO, 1992).

6 É o ritual do Kiki o mais importante e conhecido entre os Kaingang. Era como um articulador dos eixos da sociabilidade construídos na dicotomia (divisão em duas metades exogâmicas e patrilineares), redimensiona o valor da consaguineidade entre os homens a qual resulta, como no mito de  origem, na definição de afinidades estruturais na composição da sociedade Kaingang. É cerimônia que marca a separação dos vivos e dos mortos que é a representação de atos míticos que são repetidos pelos humanos.

 


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