MST: MIGRAÇÃO, IDENTIDADE E INSERÇÃO SOCIAL

Leopoldo J. Fernández González [1]

Estrela D.C.Amoêdo [2]

Tânia Regina Eduardo Domingos [3]

Resumo: O regime de padroado no Brasil permitiu ao camponês sobreviver através da troca de favores. O processo acelerado de urbanização e industrialização fez com que os sistemas clientelistas entrassem em declínio. Na década de 70 a mecanização intensa da lavoura, particularmente no Rio Grande do Sul e no Paraná, expulsou do campo grandes contingentes populacionais. Parte dos excluídos dirigiram-se para regiões de colonização como Rondônia e Mato Grosso. Nosso estudo limita-se ao estado de Rondônia, analisando a dimensão individual e coletiva a partir da ótica da identidade e inserção social. Num cenário de diversidade sociocultural, o sentimento identificador configura-se pelo contraste frente aos outros. A nível individual foram incorporados, à cultura original, novos hábitos e costumes. Numa dimensão coletiva, a autoconsciência do MST tende a se identificar com os valores culturais subjacentes na história camponesa de luta pela terra, que neste caso representa uma tomada de posição perante a ameaça de agentes externos simbolizados pelo latifúndio e o Estado. Este movimento de massas, que se vincula com o coletivo através de um sentimento nacionalista, propõe, frente a um modelo burguês individualista e mecanicista, uma sociedade solidária com progresso e desenvolvimento social. 

Palavras-chaves: Sem-terra, Migração, Identidade, inserção social.

                           

“A grande coisa que o Movimento Sem Terra faz hoje, no Brasil, não é a luta pela reforma agrária, porque ela existe antes, durante e vai existir depois. O grande feito do  Movimento Sem Terra é recuperar o sentido da cidadania de pessoas que estavam a um milímetro de virar párias da sociedade” (Lula, Caros Amigos, outubro, n.5, p.15).

A dificuldade de reduzir a uma mesma lógica a ideologia liberal burguesa, representada pelo Estado e o latifúndio, e a mentalidade contestatória e reivindicativa do Movimento Sem Terra,  assim como a idéia de que o migrante carrega consigo um particular modo de viver que o identifica com um determinado grupo ou comunidade, fez-nos sentir a necessidade de realizar uma pesquisa de caráter antropológico que relacionasse migração, identidade e inserção social. Desejávamos conhecer melhor as fronteiras étnicas do MST e, o impacto dos novos valores no modelo cultural originário do migrante.

A literatura do Movimento Sem Terra situa a sua ação na linha dos grandes movimentos brasileiros de luta pela liberdade e pela terra.. Adotando essa perspectiva histórica reclamada pelo próprio movimento, percebemos alguns fatos objetivos que nos ajudam a compreender a sua gestação e desenvolvimento, confirmando a tese de que os fenômenos étnicos, para a sua compreensão, hão ser referidos à sociedade como um todo. O sistema tradicional brasileiro de relações sociais, por causa da hierarquização e desigualdade social, favoreceu no passado o regime de patronagem e  clientelismo. O sistema de padroado permitia ao camponês sobreviver através da troca de favores; porém, a partir da segunda metade do século XX, o acelerado processo de urbanização e industrialização fez com que este modo de vida rural que garantia a sobrevivência do camponês se extinguisse, extremando as contradições sociais e a consciência de classe. Na década de 70 a mecanização intensa da lavoura, particularmente no Rio Grande do Sul e Paraná, expulsou do campo grandes contingentes populacionais, que se dirigiram, em grande parte, às regiões de colonização como Rondônia e  Mato Grosso.

A povoação do Estado de  Rondônia iniciou-se, de fato, na metade da década dos setenta. Até esse momento a região era pouco povoada, sendo basicamente sua população formada por índios, seringueiros e ribeirinhos. A construção da BR 364 (1960/61) representou um esforço do Estado Brasileiro por integrar esta parte da Amazônia no espaço socio-econômico nacional. A partir da sua pavimentação, a população triplicou num período de dez anos. A grande parte das pessoas que vieram para o Estado procediam do Paraná, Espirito Santo, Minas Gerais e de alguns Estados do Nordeste, 70 por cento destes migrantes eram de procedência rural [4] .

O fato migratório, de caráter massivo, reuniu no nosso Estado grupos étnicos diferentes atraídos pela promessa de terra farta e a possibilidade de melhorar de vida. O desconhecimento da região e a falta de recursos fizeram com que muitos vissem frustradas as suas esperanças, passando a engrossar as fileiras dos excluídos. Para o estudo do ego pessoal resultante desse complicado processo migratório com raízes numa dialética social de inclusão-exclusão, e da identidade coletiva do MST de Rondônia, recorremos a um duplo enfoque: histórico e êmico, apoiando-nos em técnicas qualitativas rotineiramente usadas pela antropologia social e cultural, como a  observação participante, entrevistas e histórias de vida.

O nosso contato com o MST data de 1996; além desta experiência, o desenvolvimento sistemático da pesquisa centra-se num grupo de integrantes do MST que veio a Porto Velho com a finalidade de cumprir uma “Jornada de lutas” e entregar uma pauta de Reivindicações dos acampados e assentados para o INCRA. O calendário da Jornada previa uma estadia de um mês na cidade, mas ficaram mais de dois meses com o objetivo do atendimento de 80 por cento da pauta de reivindicações.

O grupo do MST que veio para Porto Velho acampou em uma área cedida pela Arquidiocese localizada no Bairro Olaria, pertencente à Paróquia Nossa Senhora do Rosário. O espaço era pequeno para acolher os 1200 militantes, porém não observamos, nos primeiros tempos, nenhuma reclamação por causa do desconforto. A distribuição de tarefas era feita de maneira que ninguém ficava sem trabalho. O grupo foi dividido em 20 sub-delegações que trabalhavam com a limpeza do local, organização da estrutura, negociação, informação, equipe de saúde, educação, alimentação, segurança... Para facilitar a organização, o acampamento tinha à sua disposição um carro de som de propriedade do MST. Dali dirigiam assembléias, dividiam tarefas, convocavam lideranças e organizavam as saídas dos militantes em colunas (duas fileiras) paras as manifestações. Nos momentos de lazer viam televisão, jogavam dominó ou truco, tocavam viola e conversavam em rodas. Os temas preferidos nestas conversas eram sobre violência e humilhação, alegrias e conquistas; lembranças da roça, da penúria familiar, relatos de êxodo, da vida nas periferias e nas terras alheias. A rotina era quebrada pela celebração de “noites culturais”, nas quais, de um lado, os militantes tinham a oportunidade de mostrarem seu talento artístico e, de outro, compartilhavam as diferentes tradições regionais. As diferenças físicas e os sotaques denunciavam a diversidade de origem das pessoas: nordestinos, sulistas, mineiros, brancos, negros, caboclos... No convívio, raramente tratavam-se pelo nome, preferindo usar apelidos originados de alguma caraterística particular da pessoa ou de episódios em que o indivíduo tinha se envolvido: Pulga, Alicate, Bufufa, Peito de Aço, Orelhinha, Galega etc.

A presença do MST no centro de um bairro de classe média evidenciou algumas contradições latentes na consciência coletiva da sociedade rondoniense, revelando a fragilidade do modelo melting pot . Com o passar dos dias, a ideologia de que todos são iguais e têm as mesmas oportunidades de convivência pacífica no seio de uma sociedade plural, não foi suficiente para conter os preconceitos e a soterrada luta de classes, assim os acampados foram acusados de promiscuidade, bebedeira, roubos, arruaça, mendicância, além de mal cheiro. Muitos moradores ajudavam os acampados com doação de roupas, medicamentos e alimentos, mas a grande maioria deixou até mesmo de freqüentar  a Igreja e fizeram críticas severas ao pároco por “Ter hospedado esse povo na nossa Paróquia”. Também o tempo foi abrindo brechas na resistência dos acampados que mantinham uma rígida disciplina de trabalho e permaneciam o tempo todo no acampamento, afastavam-se apenas para ir ao INCRA em comitiva. O calor dentro dos barracos de lona e nos salões  que serviam de dormitório era insuportável no período da tarde, as queixas, raras até aquele momento, começaram a surgir.

O MST nasce no nosso Estado em um contexto migratório e de conflito social de luta pela terra. A identidade do movimento e das pessoas que nele militam necessariamente há de ser compreendida num âmbito comparativo e de contraste com a alteridade. A terra, no Brasil, desde o período colonial sempre foi sinônimo de poder e riqueza. Esta relação prepotente e exclusivista tem gerado no trabalhador rural uma consciência ambígua reproduzindo, de um lado, os interesses da classe dominante que coloca o trabalho e a posse da terra como condições necessárias para a mudança e, de outro, ajuda a desenvolver o sentimento de pertença a uma classe que se identifica frente aos outros.

A teoria da identidade, tratada de modo parcial pela Escola de Chicago e de Manchester, não tem sido desenvolvida até o presente de maneira global (Pujadas, 1993:10), de maneira que possamos, conduzidos por ela, encontrar uma explicação cômoda  a todas as significações simbólicas dos elementos socioculturais. Historicamente, os esforços teóricos para explicar os fenômenos étnicos têm seguido diferentes caminhos: Durkheim fundamenta a identidade no grupo ao qual se pertence, Marx  a explica através das contradições e luta de classes, Lévi-Strauss (1981:369) a imagina como um indefinido “fundo Virtual”. Tendo em conta os diferentes enfoques, recorremos a um modelo integrador, ao qual somamos a contribuição de Fredrik Barth (1976:10) que enfoca o estudo  da identidade como um processo resultante de vários fatores derivados da dinâmica de inclusão e exclusão [5] ; o que nos permite entendê-la como um sentimento que se vai configurando, a nível individual e coletivo, a partir do contraste de semelhança e diferença (Oliveira, 1998:40) a vários níveis (Pujadas, 1993:85). 

A eficácia da identidade étnica reside na capacidade de combinar interesses e vínculos efetivos independentemente da classe social, na procura por direitos coletivos frente a uma tendência monocultural do Estado (Fabregat, 1984). O reconhecimento coletivo de um direito, que não surge apenas de situações de miséria e discriminação, mas também da tomada de consciência da dignidade humana (Warrem, 1996:69), é o que explica a formação de um movimento social como o MST.

Origens do MST de Rondônia

           A origem próxima do MST a nível nacional, se adotarmos uma referência geográfica, podemos situá-la na expulsão dos colonos que viviam na reserva indígena dos kaigangs, Nonoai, no Rio Grande do Sul.  Sem terra e sem trabalho as família foram acampar  na beira da estrada e iniciaram a se organizar em torno da luta pela terra  Em termos históricos o MST situa-se em continuidade com a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB’s), o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER) e as Ligas Camponesas, de quem o MST sente-se particularmente herdeiro. Se optarmos por uma perspetiva ideológica, a fonte está no trabalho pastoral da Igreja Católica e da igreja Luterana. A comissão  Pastoral da Terra (CPT), organismo da Igreja, promoveu a primeira ocupação organizada na cidade de Ronda Alta, reunindo agricultores sem terra de todo o Estado do Rio Grande do Sul. A aplicação prática da teologia da Libertação promovida pela CPT conscientizou muitos camponeses em relação ao seu valor como pessoas e sobre a necessidade da luta pela terra, o que fez com que acontecimentos semelhantes ocorressem nos demais Estados do Sul, no Mato Grosso e em São Paulo, contribuindo  para o surgimento de diversas lideranças. O desenvolvimento da organização em direção à construção de uma entidade de alcance nacional para lutar pela terra, pela Reforma Agrária e por uma sociedade mais justa culminou no 1º Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em 1985, cujas lideranças  reunidas fundaram oficialmente o MST.

       O nascimento oficial do MST-RO efetivou-se em agosto de 1987 após o 1º Congresso Estadual dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Rondônia. Como na maioria dos vinte e três estados em que está presente o  Movimento, sua organização teve a influência direta da igreja Católica através da CPT e, algum tempo depois, o apoio da Igreja Luterana. A história de sua formação se confunde com a história das migrações para Rondônia. O fato de o migrante trabalhador rural ter sido privado da terra e do trabalho por causa do fracasso do projeto de colonização e o trabalho de conscientização da Igreja, fez com que ele procurasse superar  seus problemas através da luta coletiva.

       Atualmente o MST atua em onze municípios do nosso Estado com um total de nove acampamentos com 2.220 famílias e 12 assentamentos com 1.493 famílias. Os nomes dos acampamentos e assentamentos, como em todo o Brasil, são homenagens aos “lutadores do povo” e lembram datas de acontecimentos importantes para o Movimento ou mesmo são reflexo da esperança sentida pelos trabalhadores em relação ao sonho da terra.

 

Migração e identidade

       Barth (1976) assinalava a origem e o processo de formação cultural como definidores da identidade individual, a estes componentes estruturantes, que certamente não são excludentes de outros princípios subsidiários, podemos acrescentar o gênero e a identidade de classe. Estes elementos fundamentais se inter-relacionam mutuamente no seio da cultura hegemônica, porém, cada um deles, é suficientemente forte para realizar um modo de ser específico. A interação destes componentes é a matriz cultural que condicionará de  maneira importante a configuração do ego de cada pessoa.  Tratando-se de um coletivo que ideologicamente se define num contexto de luta de classes, temos de ler a identidade do militante dentro deste elemento modelador de caráter globalizante.

       No imaginário social Brasileiro, a identidade do trabalhador  “constrói-se  em parte “ (Alba Zaluar, 1994:132) por oposição a bandidos e vagabundos. A origem do preconceito remonta-se à resistência do “homem livre” (Barreiro, 1987:138) em submeter-se ao trabalho sistematizado da economia capitalista e à experiência cotidiana de que muitos excluídos perante a dificuldade de sobreviver nas periferias das cidades terminam sucumbindo à marginalidade. Estas representações sociais e a luta de classes, explica, de alguma maneira, a leitura negativa das atitudes do MST por parte dos meios de comunicação e até dos vizinhos do bairro de Olaria em Porto Velho. A maioria dos integrantes do grupo do MST que nós pesquisamos, procedem de famílias numerosas da região sul do Brasil. São “homens livres” que foram obrigados a abandonar seus sítios, chácaras e fazendas. Eles vieram com suas famílias para Rondônia, após vários saltos migratórios, por causa de uma visão idealizada do Estado, à procura de uma terra para viver e assim adquirir estabilidade econômica.  Quase todos chegaram aqui sem concluir o primeiro grau, apenas um pequeno grupo tinha conseguido finalizar o segundo grau. As pessoas com maior formação foram aproveitadas pelo movimento como professores de acordo com o princípio de maximizar as aptidões pessoais. Quase todos careciam de qualificação escolar, por isso passaram a  freqüentar a escola do MST. A educação, dentro do movimento, é altamente valorizada como fator que deve gerar para o trabalhador rural autonomia no bojo do processo produtivo.  As lideranças do MST viram no estudo um dos princípios fundamentais para o desenvolvimento da vida pessoal e para a organização do movimento.

       Com o passar do tempo o coração dos migrantes foi se identificando com o estado de Rondônia, sem que se apagassem as lembranças do lugar de origem. Nem sempre se deseja retornar ao lugar de origem para ficar, mas para lembrar e matar a saudade de certas lembranças da infância. As dificuldades econômicas se colocam quase sempre como barreira entre o desejo e a realidade, com isto sentimos, no nosso grupo de estudo, que há um enfraquecimento dos laços familiares, apesar de que quase todos continuam a manter algum tipo de contato com eles.

       Os gostos pessoais e valores familiares referentes à disciplina de trabalho, valores religiosos, comunitários e artístico típicos de  comunidades rurais foram preservados e se aliam aos valores propostos pelo movimento de que participam: “meu tempo eu tenho dedicado à Igreja e ao Movimento” [6] . Percebemos nas gerações mais jovens gostos artísticos que tendem a ritmar com a cultura dominante. Todos os entrevistados se confessam  católicos, porém mostram-se independentes em relação ao pensamento oficial da igreja em temas como o aborto, divórcio, relações pré-matrimoniais e casamento religioso...Defendem a igualdade de direitos entre homens e mulheres e valorizam as festas populares, entre elas as festas juninas e as religiosas como as natalinas e Semana Santa. Devido a uma maior concentração de migrantes procedentes das regiões sul e centro-Oeste, em espaços de convivência organizados pelo MST, não foram observadas grandes diferenças culturais com relação àquelas regiões, porém foi percebido um processo de mudança de hábitos configuradores da identidade social.

       O ingresso no MST contribuiu na formação da identidade social dos migrados; ele cultiva a identidade cultural de classe referida à cultura nacional e à mística [7] em torno de símbolos e princípios que dão coerência à ação, unificando e fortalecendo a vontade coletiva de luta social. Com raríssimas exceções, todos conhecem muito bem a história, os princípios e os valores do Movimento. Alguns se aprofundam mais do que outros no estudo desses temas. Um dos nossos entrevistados nos mostra a identidade do Movimento, centrada na valorização da pessoa, narrando a sua origem. O MST –diz-,

                                                                                                             Nasceu de uma luta antiga da Liga Camponesa e do Master porque tinha gente sem terra e terra sem gente. O MST surgiu por causa da terra. De existência , o MST tem 15 anos mas vem se construindo desde 79. A partir da Teologia da Libertação e com a ajuda da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, vieram se organizando e dando fundamento para o movimento. Em 85 aconteceu o 1º  Congresso Nacional e o lema foi “Terra para quem trabalha”. A partir daí, lutaram  por crédito e pela terra. No 2º Congresso o lema foi: “ocupar, Resistir e Produzir””. No último Congresso, decidiu-se que mesmo tendo a luta econômica resolveriam se envolver com a política e a sociedade. Então surgiu o novo grito: “reforma Agrária é luta de todos” e entrou no campo minado da política ao tentar mobilizar o povo. Agora estão em uma nova fase. O MST conseguiu ser uma organização forte que atingiu parâmetros internacionais e, em conseqüência disso a repressão é maior. Agora “a ordem é ninguém passar fome”, até mesmo os anti-MST tem que Ter saúde, escola, comida. O lema é: “O Resgate da Cidadania”. O MST não tem medo da morte. A morte é mística. Ela entristece e revolta, mas faz parte da mistura que fortalece o MST. Mas isso, a revolta, pode ser ruim para o futuro, quando tudo acabar, porque as pessoas acabam com o sentimento de vida.. Fica só o instinto revolucionário. Podem deixar de ser humano.

       Todos falam no respeito pela “mãe terra”; nessa fala não vai apenas o desejo do progresso econômico, científico e tecnológico, querem também uma nova ordem, uma sociedade justa, uma correta distribuição das terras; apostam na conscientização das massas, na força das ideologias socialistas, na luta pela transformação social, no respeito pela diversidade cultural, numa democracia que não atenda apenas as elites. Neste sentido eles tem elaborado um discurso que se confunde com o discurso do próprio MST, “O Estado tem que mudar a forma de governo, respeitar as opiniões das bases, não ao contrário como tem feito, dar incentivo à educação, estruturar as escolas, respeitar as reivindicações do povo”. A identidade social dos trabalhadores rurais como “militantes do MST”, ou como eles mesmos se autodenominam dos “sem-terra”, vai se formando num processo temporal de convivência com o grupo, onde eles aprendem como se organizar, participar, negociar e  se conscientizar de seus direitos e da luta que terão de enfrentar contra o Estado e o latifúndio para vê-los respeitados. Todo esse processo ocorre em um ambiente comunitário, sem anular, no entanto, as caraterísticas individuais de cada militante, colhendo desta forma, no âmbito do movimento, a pluralidade cultural.

Inserção social

       A solidariedade do nosso grupo de pesquisa com membros do MST desenvolve-se no espaço ideológico e de convivência demarcado pelo Movimento. As relações com os vizinhos vêm definidas pelo tipo de relações que estes mantêm com a sua entidade, considerando que “Alguns são legais”, porém outros são “acomodados”, “desunidos”, “faladores”, estão  “contra o MST”. O MST identifica-se como um movimento de trabalhadores, profundamente ligado com as bases, que defende a “luta de massas” [8] . A autoconsciência se decanta como um movimento aberto que usa apenas como critério de inclusão ou exclusão a defesa ou não da reforma agrária, entendida como distribuição da terra, democratização do capital e da educação. A crítica ao Estado burguês por concentrar o poder político e econômico nas mãos de poucos, tem sua origem na divergência de concepções filosóficas relativas ao ser humano e a democracia. Os depoimentos dos nossos informantes acompanham a linha de pensamento da organização a que pertencem ao qualificarem a democracia brasileira de:  catástrofe, inexistente, ditadura disfarçada pior que a militar, que somente funciona para as classes altas. Na luta contra um estado “discriminador” o MST propõe fortalecer a identidade de classe; assim os nossos informantes definem-se como trabalhadores rurais, “lavradores” que vieram para Rondônia à procura de terra para trabalhar. O migrante agricultor ao não possuir terra passa a ser um trabalhador socialmente excluído. A “ocupação” de fazendas e espaços públicos por parte do MST, na dinâmica desta lógica, passa a ter o significado de testemunho presencial, contestação e luta contra a um modelo social que eles entendem ser excludente. A vontade de conquista de direitos e integração social, sob o amparo de uma nova ideologia, vem reforçada simbolicamente pela estratégia da “caminhada” ou “marcha”. Na tradição cultural ocidental, a “teoria da caminhada do povo” tem o sentido, devido à concepção  linear da história, de saída sem retorno, de esperança, de luta libertadora, de terra prometida; na literatura do MST, estes conceitos são traduzidos pelas expressões “pressão popular” e “luta de massas” para se conseguir trabalho, alimentação, bem estar social a partir de relações sociais igualitárias. A discriminação, na fala dos nossos informantes, não tem somente uma matriz, mas tem também um componente econômico e político. É neste contexto que há de ser lida o tema da luta de classes proposta pelo MST. A “reforma agrária” é o nome concreto e forte para convocar à luta por uma sociedade com valores humanistas e socialistas, que na linguagem dos nossos informantes é traduzida por “justiça social”, “condições dignas de vida no campo”, “saúde”, “escola”, “casa própria”, “direito a pensar por si mesmo”, “terra suficiente para sobrevivência das famílias”, “valorização e incentivo da produção”, “todos terem os mesmos direitos”....

      A utopia do “sonho da terra”, permanece ainda no horizonte. Ninguém pensa em retornar ao seu lugar de origem, lá “passei muitas torturas sem avançar”. A maioria confessa não ter satisfeitas suas aspirações econômicas e sociais, mas se percebe uma realização pessoal por estar “trabalhando com o povo”. A nível individual, às vezes o destino parece brincar com as pessoas como aconteceu com o Sr. Antônio, conhecido no acampamento como “Peito de Aço”:

                                                                                                            

...sou uma pessoa que eu peguei um lote do INCRA, vendi porque não prestava. O arroz, a altura do arroz - quando nascia- ficava com dez centímetros de altura. Então eu vi que não tinha condições de eu viver nesse terreno. Fiquei sem nada.

                           

      Perpetuando a tradição familiar, quase todos continuam trabalhando com a terra; atividade que agora, alguns dividem com o trabalho de participar na organização do Movimento. Mas a esperança de realização continua a ser depositada na terra, enquanto elemento vital e integrador, que catalisa e alimenta a identidade subjetiva profunda, a qual aflora de modo disfarçado nos momentos de humor: 

                                                                                                            

tô sentido o cheiro da terra, tô vendo o futuro da terra na mão...não sei quanto tempo eu vou durar, mas eu não tô pensando na morte, eu tô pensando é num projeto que eu tenho pra dois mil e trinta... que eu tenho falado com algumas pessoas por aí. E, - há, rapaz! Daqui lá tá muito velho! . Eu falei: não importa se tá velho, o importante é cê chegar lá, né? (Sr. Gonzaga, 69 anos).

    O MST é um fator decisivo na preservação da cultura e de integração social dos seus membros ao reintegrar ao trabalho, à cidadania e viabilizar o envolvimento do migrante com pessoas originárias de seus lugares de origem, o que permite a eles manterem seus próprios costumes e hábitos herdados de seus pais ou trazidos por eles , construindo e ampliando constantemente as redes de relacionamento dentro do espaço rural.

Considerações finais

  A pesquisa que realizamos com os migrantes que integram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) esteve limitada ao acampamento que “montaram” na área urbana com fins reivindicativos. Apesar dos aspectos físicos semelhantes aos acampamentos rurais como as barracas de lona, os fogões à lenha, o chão batido e bem varrido, faltaram elementos essenciais como o cultivo de hortaliças e o trabalho em cooperativas que caracterizam os acampamentos situados em área rural de ocupação. Entre  os acampamentos rurais e o acampamento urbano que nós pudemos observar mais de perto, existe um elo de continuidade que aprofunda o sentido do acampamento como símbolo, que, inclusive, evoca a memória histórica lembrando a estadia do povo de Israel ao pé do Sinai, a caminho da terra prometida. A provisoriedade do acampamento, o barraco coletivo, o fogão compartido, o chão limpo, o cultivo comunitário, o trabalho solidário, a distribuição do tempo, as comidas, as ações reivindicativas, em definitiva, a existência do MST, parecem apontar para uma certa fragmentação da coesão social e a proposta prática de uma nova cultura, onde o trabalho predomine sobre o capital, e a terra, bem da natureza, tenha uma função social. As ações desenvolvidas pelo Movimento – manifestações, caminhadas, ocupações, acampamentos -, devido ao seu elevado valor simbólico, estão destinadas a mobilizar a sociedade em favor da luta por uma sociedade igualitária, democrática e socialista. Como parte desta estratégia, o MST, valoriza a escola enquanto reprodutora e transformadora da ordem social, instalando centros educativos próprios nos assentamentos e nos acampamentos. O sentido da escola como porta de entrada a uma nova cultura vem expressa nos versos de Zé Pinto:

                                 

                                 Ninguém educa ninguém

                                  Ninguém se educa sozinho

                                  As pessoas se educam entre si

                                       Descobrindo esse novo caminho [9]

         O MST, ao fazer com que a escola ocupe um lugar privilegiado entre a família e a comunidade, restaurou a legitimidade e a credibilidade da instituição educacional. A ênfase dada à educação termina legitimando socialmente o próprio MST, pois mostra, de maneira prática, que no epicentro de sua ação está o reconhecimento do indivíduo como sujeito ou valor supremo em todo o agir humano, esta é, no dizer de um militante, a “mina de ouro” [10] descoberta pelo Movimento dos Sem-terra.

        Escola, cooperativas, assentamentos, mística... são indícios de que se está elaborando uma nova identidade cultural que termina se revelando em detalhes como a relação social conflitiva que o MST projetou, com o passar dos dias, com a população urbana próxima ao acampamento. A pergunta, “E então, quando eles vão embora?”, que ouvíamos todas as vezes que retornávamos do acampamento, comprovam, além do preconceito, uma certa ruptura de vínculos no tecido social. Como grupo étnico, o MST funciona como refúgio para muitos trabalhadores do campo, pois lá eles se sentem como iguais, unidos em torno de ideais cuja realização proporcionará o desenvolvimento de uma sociedade justa em que todos terão espaço para trabalhar. Testemunhando esse conflito, percebemos que de fato é o contraste em relação a outro grupo que se firma a identidade de um grupo étnico, pois mesmo os integrantes que já  possuem terra ou que provêm de área urbana e estão no MST por motivos ideológicos, afirmam-se como “sem-terra”, não pelo fato de não possuírem terra, como já dissemos, mas pelo aspecto simbólico que a palavra terra adquiriu no decorrer do desenvolvimento do MST. Terra, para eles representa a vida quando a denominam “mãe”, significa dignidade quando dizem que ela “tem que ser respeitada”, significa igualdade quando dizem “a terra deve ser de todos os que nela desejam trabalhar”.  No seu imaginário,  a terra evoca, ainda, a confiança no ser humano, quando afirmam que ele foi formado do humus, da melhor terra. Terra é espaço, poder, caminho, partilha, símbolo forte que fala de dignidade, de cidadania e política, porque o cidadão, na sua ótica, é naturalmente político. Este imaginário, produtor de sentido, proporciona coesão ao grupo, que simbolicamente representa a sua coesão, a sua luta, a sua esperança num Brasil solidário, envolvendo a terra deste país, após situá-la sobre um fundo branco, numa bandeira vermelha que erguem com orgulho em todas as reivindicações. O sentido da Identidade e inserção social do MST, são cantados na primeira estrofe do hino do movimento,

                 Vem teçamos a nossa liberdade

                 Braços fortes que rasgam o chão

                Sob a sombra de nossa valentia

                Desfraldemos a nossa rebeldia

                E plantemos nesta terra como irmãos!

BILBIOGRAFIA

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21. VIAGEM PELA AMAZÔNIA. (1999), Revista informativa sobre as cidades da Amazônia. Porto Velho: Editora da Amazônia, ano 1, n.1, fev..

                            



[1] Doutor em Antropologia Social e Cultural, professor Adjunto/Universidade Federal de Rondônia. E-mail: lfg@unir.br .

[2] Aluna do curso de Letras da Universidade Federal de Rondônia, bolsista CNPq/PIBIC do Projeto “Migração, Inserção social e atitudes étnicas em Rondônia” orientado pelo professor Leopoldo J. F. González.

[3] Doutora em Filologia, professora Adjunta/ Universidade Federal de Rondônia. E-mail: tania@unir.br .

[4] CPT-Porto Velho

[5] A exclusão é um termo ambíguo usado por Hélio Jaguaribe na segunda metade do século passado e que veio

substituir, numa sociedade de ética individualista  e de economia globalizada, a expressão “luta de classes”.

[6] Os nomes dos informantes foram preservados.

[7] “Para o MST, mística significa o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as paixões fortes que mobilizam as pessoas e movimentos na vontade de mudança, ou que inspiram práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades ou sustentam a esperança face aos fracassos históricos.” (Em: BEZERRA NETO, 1999: 37).

[8] STÉDILE E MANÇANO. Brava gente. A trajetória do MST  e a luta pela terra no Brasil, página 43.

[9] PRA SOLETRAR A LIBERDADE Nº 1. Nossos valores. Reforma Agrária: por um Brasil sem latifúndio!. Caderno do educando (Folheto do MST)

[10] MORISSAVA, Mitsue. História de luta pela terra e o MST. SP.: Expressão Popular, 2001, p.239.


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