CONGRESO VIRTUAL 2000

MOVIMENTOS SOCIAIS, PARADIGMA DA COMPLEXIDADE e INTERCULTURA[1]

Nadir Esperança Azibeiro [2]

Falar em movimentos sociais num Congresso Virtual de Antropologia pode parecer não apenas um tanto démodé, mas também inadequado como tema, deslocado de sua área teórica específica. Pesquisadora dos movimentos sociais desde o início da década de noventa (e militante dos mesmos nas duas décadas anteriores), tenho sentido na pele a necessidade de subverter as políticas de verdade[3] vigentes ampliando paradigmas de análise e ação.

A discussão que procuro fazer trata de uma comunidade da periferia de Florianópolis, oriunda, de um “movimento popular” reconhecido — e que ocupou constantemente espaço na imprensa de meados da década de 80 até os primeiros anos da década de 90 — e que agora se vê esfacelada pelo desemprego, por desentendimentos de toda ordem e pela droga.

Esse estado de coisas, é certo, não pode ser atribuído unicamente à tão propalada crise dos movimentos sociais. Para entender melhor essas questões é que venho desenvolvendo, desde 1997, um trabalho de pesquisa e extensão junto à comunidade Nova Esperança[4] — e recorrendo à Antropologia, como uma das áreas que pode disponibilizar as ferramentas teóricas que possibilitarão novas perspectivas de análise e ação.

Na década de 80, uma das grandes questões em torno das quais se mobilizaram e organizaram os grupos populares, foi a questão da moradia, lutando para conseguir um teto ou um pedaço de chão. Em Florianópolis não foi diferente do que ocorreu por todo o país — e por vários países da América Latina.

É sabido que Florianópolis, por suas belezas naturais, é uma cidade que atrai todos os anos, principalmente na temporada de verão, milhares de turistas. Isso — e mais a valorização das terras na cidade, gerada pelos investimentos públicos em infraestrutura — provocou, a partir da década de 70, uma crescente especulação imobiliária, que torna cada dia mais difícil o acesso à moradia para as populações de baixa renda.

Por ser a capital do estado, a cidade foi atraindo também pessoas do interior, em busca de tratamento médico ou de melhores condições de vida e de trabalho, ou estudo para os filhos. Chegando aqui, sem emprego e sem dinheiro, acabaram perambulando pelas ruas ou se instalando da forma mais precária, nas encostas dos morros[5] ou na beira das rodovias. Aí sofreram todo tipo de carência — além da constante ameaça de serem despejados. Vinham em busca de uma vida melhor e mal e mal conseguiam sobreviver, não lhes sobrando nem os restos de todas as maravilhas com que a cidade grande lhes acenava.

Além daqueles que migravam, havia o drama dos trabalhadores que moravam de aluguel. O alto custo de vida, os salários de fome, a exploração do turismo, o crescente desemprego, acabaram gerando aluguéis altíssimos que cada vez menos eles tinham condições de pagar.

Juntavam-se a esses, ainda, os pescadores e os antigos moradores do interior da Ilha, sem condições de seguir em seu trabalho artesanal, por não terem mais onde guardar a aparelhagem de pesca e por não conseguirem mais puxar suas redes. As terras em que moravam, na beira da praia, foram supervalorizadas e eles as acabaram vendendo, transformando-se em caseiros dos novos proprietários. Os que não tinham terra para vender e não aguentaram a concorrência do grande capital foram também se instalar nas encostas dos morros, em condições, além de precárias, perigosas.

Sair dessa situação de forma individual era muito difícil, praticamente impossível. Por isso a emergência dos movimentos de moradia. O processo era semelhante: algumas famílias começavam a se reunir e pensar numa forma coletiva de resolver seu problema.

A comunidade que vimos acompanhando, Nova Esperança, nasceu de uma ocupação, organizada a partir do Movimento sem Teto, no início da década de 90. Até há pouco tempo, parecia que, para entender sua dinâmica interna e suas relações na cidade, era suficiente termos essa informação. E era tranquilo atribuir as dificuldades de organização e mobilização à crise dos movimentos sociais, particularmente dos movimentos populares urbanos, na década de 90.[6]

No entanto, quanto mais convivíamos com eles, mais ficava explícita a obviedade de que os grupos populares não constituem um todo uniforme ou homogêneo. Nossos referenciais de análise, entretanto, se mostravam cada vez mais insuficientes, não dando conta da complexidade com a qual nos deparávamos.

Desde o Mestrado, em 1992, venho trabalhando a questão da insuficiência dos paradigmas clássicos utilizados pelas Ciências Humanas e Sociais, para dar conta da complexidade do real. Em 93, descobri Edgar MORIN e o paradigma da complexidade. Logo em seguida, BATESON. Desde então, procuro discutir educação e movimentos sociais a partir da complexidade e da intercultura. Recentemente descobri MAFFESOLI e voltei às questões da intensidade e do prazer, que também já trabalhara no Mestrado.

Para MORIN, o verdadeiro problema do conhecimento (entendido como teoria e prática, discurso e postura/atitudes) é saber distinguir e relacionar, evitando separar e confundir (1986:127). Nessa perspectiva, toda interpretação de fatos históricos, ou sociais, ou políticos, ou econômicos, que se pretenda correta, só pode ser complexa, dialógica. Não existe uma única verdade, afirmada como dogma, como doutrina, mas múltiplas possibilidades, a partir das várias perspectivas adotadas.

Esta maneira de entender e de ser se opõe aos sectarismos e exclusões de todo tipo, o que não significa assumir um relativismo absoluto, que não crê em nada e não luta por nada. Significa, sim, ter princípios e valores claros: entre eles o respeito, a solidariedade, o pensar e fazer com e, principalmente, a vida como valor maior (AZIBEIRO, 1994:93).

Três princípios regem o paradigma da complexidade: a dialógica, entendida como simultaneidade, complementariedade, não-exclusão; a recursividade, ou o entendimento de que o efeito torna-se causa (e vice-versa); e a hologramática, ou a visão de que a parte está no todo e o todo está na parte.

A perspectiva hologramática busca integrar e superar qualquer visão unilateral. O pensamento complexo opõe-se a qualquer forma de simplificação ou reducionismo. Opõe-se à disciplinarização / compartimentação / fragmentação que dominaram o pensamento ocidental nos últimos séculos.

É verdade que isso não é novo para quem sempre trabalhou com a Educação Popular. Ultrapassando os limites da escola, a educação popular nunca se encerrou, também, nos limites da Pedagogia, andando sempre de mãos dadas com a Antropologia, a História, a Sociologia e as várias Ciências Humanas e Sociais.

O pensamento complexo tenta religar o que o pensamento disciplinar e compartimentado disjuntou e parcelarizou. MORIN aponta a inter e a transdisciplinaridade como desafio, propondo substituir um pensamento que separa por um pensamento que une, o que exige a substituição da causalidade unilinear e unidimensional por uma causalidade em círculo e multirreferencial, assim como substituir a rigidez da lógica clássica por uma dialógica capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas.

O pensamento complexo é um pensamento que pratica o abraço. Ele se prolonga na ética da solidariedade. Em educação popular essas noções estavam presentes, quando falávamos em construção coletiva, em partir da realidade do outro, em integralidade e respeito às diferenças.

A aventura intelectual da complexidade necessita, também, de vontade, paixão e entusiasmo, entende ainda MORIN. Esta idéia também já estava presente quando apontávamos o prazer como elemento fundamental da formação de educadores populares.[7]

MORIN fala ainda em exercitar um estilo de pensamento ecocêntrico e cosmológico que privilegie a síntese, a cooperação e cumplicidade entre homens e coisas, a sabedoria intuitiva, o imaginário, o poético, enfim, o intercâmbio entre vida e idéias, a transdisciplinaridade, a migração de conceitos e categorias (1997,30ss).

Apenas começávamos a nos aproximar dessa perspectiva e já percebíamos a estreita relação entre o paradigma da complexidade e a intercultura e entendíamos que se abria para nós uma nova e enriquecedora “caixa-de-ferramentas” (DELEUZE, apud AZIBEIRO, 1994:59). Longe de se limitar ao mero reconhecimento de que existem diferenças, a perspectiva intercultural precisa delas para existir.

O debate sobre as questões da Intercultura é bastante recente e ainda muito restrito entre nós. Desenvolveu-se inicialmente na Europa, “envolvendo campos de reflexão e de intervenção que ultrapassaram progressivamente o caráter emergencial do problema de inserção dos migrantes e entrou no coração das temáticas ligadas à formação da identidade, à valorização das diferenças, à configuração e à função que assume hoje o sentido de coletividade, em sociedades complexas e pluriculturais.

Enquanto a multicultura dá ênfase às diferenças, correndo às vezes o risco de cristalizá-las, a intercultura propõe a interação, que não mascara nem dilue as diferenças (assimilacionismo), mas explicita os jogos de força e as relações de poder que levam às sínteses culturais (terceiras culturas), reafirmando a riqueza da pluralidade e o respeito pelo diferente, não como concessão mas como reconhecimento de seu valor.

O interculturalismo supõe a deliberada interrelação entre diferentes culturas. O prefixo inter não se refere a um simples indicador retórico, mas indica um processo dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas.

A cidadania plural não admite um padrão único e universal, mesmo que decorrente da “mistura”, da miscigenação das várias culturas, mas uma cultura efetivamente plural, síntese das várias origens, que interagem, não se diluindo ou se cristalizando, mas explicitando a contínua interação e interrelação. Reaviva em cada grupo a consciência da própria cultura, ao mesmo tempo que a convicção de que nenhuma cultura é superior ou inferior à outra: a diferença não se constitue em julgamento de valor.

É com essas novas ferramentas que voltamos à comunidade Nova Esperança, constituída a partir de um grupo de cinqüenta famílias — de trabalhadores e trabalhadoras — que ganhavam em torno de um a três salários mínimos, todas moradoras da cidade há pelo menos quinze anos. Por não conseguirem mais pagar o aluguel, viam-se agora na eminência de serem expulsas dessa mesma cidade que haviam ajudado a construir.

Foi então que ouviram falar de outras pessoas que haviam ocupado terras e resistido a despejos, juntos, de forma organizada. Faziam parte do Movimento Sem Teto e se reuniam semanalmente para conversar sobre suas conquistas, suas necessidades e também para se apoiarem e ajudarem mutuamente. Essas cinqüenta famílias, em momentos e por caminhos diversos, começaram a participar dessas reuniões semanais.

Não queriam simplesmente ocupar um terreno. Ninguém queria viver em situação de favela. Queriam, sim, conquistar um espaço para sua moradia, negociando com o governo uma proposta de pagamento acessível ao seu padrão de vida. Queriam planejar o espaço: as ruas para circularem os caminhões do gás, do lixo; os espaços para creche, escola, lazer; lotes em que cada um pudesse ter o seu espaço arejado e viver de forma digna. Não queriam qualquer terreno, mas um terreno que ficasse próximo de tudo o que é necessário para viver bem: ônibus, escola, posto de saúde, trabalho, lazer.

Essas cinqüenta famílias começaram, então, a realizar assembléias semanais para planejar a ocupação. Dividiram-se em comissões de trabalho. Uma delas, preparava-se e comparecia em audiências e negociações com a COHAB, a Prefeitura, o Governo do Estado — com o objetivo de encaminhar a solução do seu problema. Outra estudava as leis federais, estaduais e municipais para poder saber onde se apoiar. Outra, ainda, começou a pensar como deveria ser ocupado o espaço, o que precisaria ter, como fazer em caso de acidentes, de doenças, como cuidar das crianças. Uma comissão, também, continuava a participar semanalmente das reuniões do Movimento Sem Teto.

Nas audiências com o poder público as respostas não deixavam grandes esperanças: o município e o governo do estado diziam não ter recursos para investir na habitação; a COHAB dizia não poder atender a essas cinqüenta famílias, pois havia, antes deles, uma lista de treze mil inscritos aguardando moradia. O governo federal dispunha de um plano de financiamento que não era acessível à renda familiar deles.

Além disso, vários deles já haviam sofrido processos de despejo, por não conseguirem mais pagar o aluguel, estando abrigados em barracas de plástico, em vários cantos da cidade. Não restava, então, outra alternativa, a não ser partir para a ocupação. Não sabiam ainda nem onde nem como seria, mas já tinham um nome: Nova Esperança.

Nas assembléias semanais, além de avaliar e acompanhar o trabalho das comissões, discutiram e elaboraram algumas regras internas, que possibilitaram não só organizar a ocupação, mas também criar, no início da constituição da comunidade, uma nova forma de viver, de se relacionar, de conviver.

Escolhido o local[8] e cuidadosa e coletivamente planejados todos os passos, partiram para a ocupação, que não foi um fato tranqüilo. Exigiu de todas as pessoas esforço, coragem, resistência, sigilo. Para entrar no terreno era necessário um trabalho grande de limpeza, pois era uma área muito suja, lamacenta, cheia de lixo e ratos. Era o esgoto a céu aberto dos moradores da vizinhança.

Naquela noite choveu muito. As pessoas se atolavam até o joelho na lama escorregadia. Isso dificultou bastante o trabalho de medição dos lotes e das ruas, que era necessário para que não ocupassem de forma desordenada. Além da chuva e da lama havia os cachorros, que fizeram muito barulho, assustando a vizinhança, que chamou a polícia.

Eles não tinham escolha: ou fugiam da polícia — desperdiçando assim o trabalho de meses e deitando por terra a esperança de terem o seu lote — ou ocupavam com a polícia presente. Escolheram a segunda alternativa.

Durante toda a noite trabalharam febrilmente, demarcando, limpando o terreno, levantando as barracas de plástico e trazendo pertences e filhos, apesar da chuva e das ordens em contrário dos policiais. Ao amanhecer, outro desafio: enfrentar a reação dos vizinhos, apavorados com os barracos ao lado de suas casas, procurando a prefeitura para pedir o despejo.

A partir do terceiro dia, ao perceber que era uma ocupação organizada, a polícia, por ordem da prefeitura, não permitiu mais o acesso de nenhum outro volume, passando a montar um plantão no local durante as vinte e quatro horas do dia. Também fiscais da prefeitura estavam ali direto, impedindo as pessoas de se reunirem e de circularem além de seus quintais.

Estavam isolados, sem água para o banho ou para lavar a louça e a roupa, com ameaças constantes dos vizinhos de colocarem fogo nos seus barracos, e da prefeitura de mandar uma máquina e colocar tudo abaixo. Não podiam sair e viviam em barracas que os deixavam quase ao relento, se alimentando e passando muito mal. Muitos perderam o emprego por medo de sair e perder o teto. Foi quase um mês de pânico e privações.

A vizinhança, vendo que apesar de tudo eles não desistiam nem partiam para atos de violência e agressão, começou a se solidarizar com eles, levando-lhes baldes de água, comida, agasalhos, cordas para reforçar as barracas. O pessoal do Movimento, as entidades de apoio, parlamentares e outras pessoas amigas buscavam sensibilizar a população e abrir canais de negociação junto aos órgãos públicos e apoio e espaço na imprensa.

Com tudo isso os ocupantes voltaram a se animar e a se sentir mais fortes. Começaram a buscar esquemas para furar a guarda e trazer madeiras para construir as casas. Quando construíram a primeira casa de madeira, a polícia veio com ordem para derrubá-la. Os adultos, quase todos, estavam no trabalho. Todas as crianças da área — quase cem — correram para dentro e para o redor da casa, gritando: "Salomão (era o nome do então secretário do continente), chega de enrolação, queremos solução!" Eram tantas as crianças ao redor que a polícia nada pode fazer.

Temperada por esses acontecimentos, a comunidade passou a se relacionar com o poder público não mais como quem esperava um favor, mas como quem reivindicava direitos e propunha soluções. Até mesmo a postura corporal das pessoas mudava, transformadas de pedintes em cidadãos.

Os projetos apresentados para a instalação da água e da luz não foram aceitos pela prefeitura, que deve ter percebido que aceitá-los significaria fortalecer a comunidade e a luta do Movimento Sem Teto. Desencadeou-se, então, um novo processo de mobilizações, envolvendo não só os moradores mas todo o Movimento. Depois de mais ou menos um mês conseguiram que a prefeitura autorizasse a ligação de três torneiras.

A partir dessa conquista a comunidade se cotiza e consegue por si mesma garantir o seu projeto inicial: instalar água em todas as casas (o que fizeram através de mangueiras).

Com relação à luz, a luta foi maior. Não conseguiram autorização para a execução do projeto que os técnicos amigos haviam elaborado. As autoridades alegavam que quanto mais benfeitorias conseguissem, mais difícil seria deixarem aquele local. Alguns conseguiram rabichos de luz, emprestados por vizinhos. Outros ficaram um ano sem energia elétrica.

Para resolver o problema do esgoto dos vizinhos que caía no seu terreno partiram para um processo de negociação com a vizinhança. Propuseram-lhes que dessem os tubos que eles, em mutirão, canalizariam o esgoto para fora da área. Muitos aceitaram de pronto. Para os mais renitentes, após várias tentativas de solução pacífica, tiveram que encontrar uma forma de obrigá-los a vir conversar: taparam com uma bola de cimento as bocas de seus tubos de esgoto.

Mesmo com todo o esforço da comunidade, permanecia nas autoridades ainda a intenção de, a qualquer pretexto, tirá-los dali e levá-los para um ginásio de esportes. Por isso, quando surgiam problemas de saúde, eles evitavam procurar os hospitais, contando com a assistência de médicos amigos.

Mas era evidente que a disposição do poder público não era mesmo de favorecê-los. Por meio do Movimento, haviam conseguido um contato direto com pequenos produtores da região, o que lhes possibilitaria o acesso aos alimentos por um preço mais baixo. Na primeira feira que foram fazer na comunidade, no entanto, a prefeitura veio e recolheu todo o equipamento para a montagem das bancas, proibindo-os de usar o local para qualquer iniciativa desse tipo. Conseguiram, no entanto, levar adiante o projeto fazendo sua feira num terreno da igreja.

Depois de um ano, percebendo a disposição do pessoal, sua capacidade de resistência e organização, a prefeitura viu que precisava levar a sério a proposta de reassentamento das famílias, já que o espaço no qual estavam era destinado a um passeio público (hoje, quase dez anos depois, ainda é um terreno baldio!). Aceitou, então, a proposta da comunidade de constituir uma comissão composta por moradores, assessoria técnica ligada a entidades de apoio e representantes da prefeitura para definição da área de assentamento e construção das novas casas.

A comissão de negociação conseguiu acertar com a prefeitura a transferência da comunidade para um terreno bem próximo daquele que estavam ocupando. Garantindo o projeto inicial, passaram a discutir a construção das cinqüenta casas em mutirão. Foi oficializada uma comissão representativa da comunidade para assinar convênios e representá-la em todos os atos legais. Era o mês de outubro de 1991.

O processo de mutirão foi também um aprendizado muito árduo, cheio de altos e baixos. As pessoas tinham não só que aprender a construir, mas a pensar na construção de todas as casas, sem saber ainda qual seria a sua. Aprender a trabalhar com garra, com vontade de crescer juntos e de pensar em todos.

Do mutirão participavam todos os que tinham mais de dezesseis anos. Os menores ficavam numa creche, próxima ao local, com alimentação fornecida pela prefeitura. Todo o trabalho de mutirão foi discutido e decidido em pequenos grupos e depois em assembléias, ficando a cargo da comunidade também a coordenação do processo. Foram cinco meses em que a comunidade aprendeu a trabalhar em equipe, respeitando uma coordenação formada por pessoas da própria comunidade, além de aprender a técnica da construção das casas (trava-blocos). Foram, tamém, meses de trabalho intenso e duro: todos tinham o seu trabalho durante toda a semana, oito horas por dia, e nos fins de semana tocavam direto o mutirão. Essa sobrecarga de trabalho acabou gerando um clima de tensão que teve que ser pacientemente controlado para não por em risco toda a proposta de construção de uma nova forma de viver em comunidade. Além disso, apesar de todo o cuidado, muitas vezes se repetiam, dentro do mutirão, as relações de autoritarismo, dominação e exploração que condenavam nas empresas e na sociedade.

Tiveram muitas vezes que enfrentar o poder público que queria usar a situação deles para se autopromover. Tiveram também, algumas vezes, que dar um basta na assessoria técnica, quando queria impor um encaminhamento aparentemente melhor mas que ia contra as decisões da comunidade.

Terminada a construção, chegou o momento de se definir qual seria a casa de cada família. Cada um tinha uma proposta de encaminhamento diferente — a comunidade, a prefeitura, a assessoria técnica. Mas o melhor encaminhamento foi o da própria comunidade: cada um escolheu a sua casa e os seus vizinhos. Apenas sete não ficaram satisfeitos com a escolha. Então decidiram sortear entre esses as casas restantes. Contra a vontade da prefeitura, uma das casas foi destinada para a sede comunitária.

Finalmente, cada um tinha o seu teto. A inauguração se deu numa celebração ecumênica junto com as demais comunidades e as pessoas que haviam apoiado a luta. Chegara enfim o momento de viverem com emoção a passagem de uma situação de barraco para uma moradia digna. E mais uma vez descobriram que ainda tinham muito o que aprender. A caminhada estava apenas começando.

Tinham a impressão de agora poderem viver momentos mais tranqüilos, fora do sufoco do aluguel e sem a ameaça constante de despejo, podendo dedicar mais tempo para tornar sua casa mais aconchegante e acompanhar o crescimento dos filhos, cultivar o quintal, ter animais de estimação, pensar no lazer.

Começaram por isso a ser questionados por pessoas que apoiaram a sua luta e que achavam que agora, tendo conseguido a casa, estavam se acomodando. Como se isso não bastasse, começaram a se manifestar divergências internas, explicadas inicialmente pelas diferentes opções partidárias que apareceram nas eleições de 1992.

Além das divergências políticas, logo apareceram as diferenças religiosas: todos concordavam que a sede comunitária podia ser usada para a missa. Quando, no entanto, alguns pastores a solicitaram para o culto, a maioria não concordou. Foi longo e árduo o processo até chegarem a decidir que poderia ser usado para tudo, desde que conciliassem um calendário e acertassem a manutenção da sede.

Além das dificuldades internas — e da dificuldade maior: o desemprego e a recessão econômica que assolou o país — nunca deixaram de sofrer pressões da prefeitura. Os motivos, ou pretextos, eram os mais diversos. Por exemplo, depois que mudaram, queriam personalizar suas casas, cada um de acordo com suas necessidades e possibilidades (segundo piso, garagem, puxados). Mas a prefeitura queria manter o padrão de conjunto habitacional todo igual. Nunca autorizou as mudanças, mas hoje muitas casas estão diferentes.

Até o quinto ano após a ocupação, período em que estava decidido que não venderiam as casas, quem vendia perdia. Aconteceu um caso assim. A prefeitura queria essa casa para resolver outros problemas de moradia. A comunidade achava que quem devia ocupá-la eram os filhos dos ocupantes, que haviam participado do mutirão e casado depois. Mesmo o IPUF[9] tendo lacrado a casa, a comunidade mudou as aberturas e instalou nela quem achava que devia.

A ocupação deu certo; a construção das casas deu certo; era uma comunidade de muita luta; estava sob a mira dos pesquisadores e estagiários, padres, pastores e militantes políticos. E cada um trazia não apenas sua contribuição, como sua forma de atuar e se relacionar. Ficavam enquanto durava seu projeto. Depois se afastavam, deixando muitas vezes uma lacuna — para os moradores, um projeto inacabado.

Alguns os endeusaram em seus trabalhos e relatórios. Outros só viram os problemas e defeitos. Eles mesmos, levantam várias questões, para as quais, por enquanto, não têm resposta. Aliás, trata-se mesmo de ter respostas, ou de desvelar a multiplicidade das relações e interações que constituem a trama do cotidiano e da história?

Queriam um tipo diferente de Associação de Moradores, que não repetisse presidencialismos e clientelismos. Fizeram até um estatuto diferente. Por que, na prática, ela se tornou tão igual?

Queriam construir relações diferentes. Fizeram mesmo questão, logo após a ocupação, de ter na comunidade a Oficina do Saber[10] , para que suas crianças não viessem a perder a memória do que foi a história de luta que resultou na ocupação e constituição da comunidade. Por que tantas dessas crianças e jovens estão hoje envolvidas com drogas, sem escola, sem perspectivas?

Melhoraram suas casas e continuam preocupados com sua organização interna, e continuam participando em outras lutas que acontecem na cidade. Têm vontade de participar de alguma coisa que ajude outros a conquistarem suas casas. No entanto, no ano passado, quando a prefeitura construiu, do outro lado da rua, os barracões provisórios para transferir os moradores da Via Expressa, cujos barracos haviam sido derrubados para a construção de um Hipermercado, muitos deles tiveram a mesma reação que os moradores da Coloninha quando eles ocuparam o primeiro terreno!

Desde o início deste ano, resolveram começar a se encontrar (ou re-encontrar) só pelo prazer de estar junto. Fizeram uma festa junina, onde juntos assistiram ao vídeo da inauguração das casas, quase nove anos depois. Era estimulante ver a alegria de cada um que se reencontrava naquela fita. Lembraram que era gostoso fazer algumas coisas juntos. Resolveram então organizar um dia em que todos participariam de várias oficinas — cerâmica, violão, capoeira, cestaria, brinquedos, estórias — de acordo com a vontade de cada um. E mais uma vez afirmaram que começava a surgir para eles uma Nova Esperança.

Nós estamos aprendendo com eles. Estamos começando a trilhar novos e diferentes caminhos, em que pensar a realidade dos grupos populares como ponto-de-partida  não signifique uma efetiva des-valorização dos valores, costumes e interesses desses mesmos grupos populares, com o pretexto de ensinar-lhes a perspectiva e o modo de agir corretos (entendido sempre como o nosso ponto-de-vista), nem tampouco endeusar e aceitar acriticamente como cultura popular tudo o que venham a dizer ou fazer.

Onde vai dar essa experiência? Que resultados vamos obter? No momento, não é isso de fato o que mais nos preocupa. Queremos, sim, continuar a construir junto com eles esse “saber de experiência feito[11] . Como bem explicou seu Pedro, um dos ocupantes: "a gente faz a festa junto e lembra que um ajudando o outro fica mais fácil de aguentar tanto problema!"

Referências Bibliográficas

AZIBEIRO, Nadir Esperança. Relações de Saber, poder e prazer: uma metodologia de educação popular. Adaptação da Dissertação para publicação. Prefácio de Frei BETTO. Apresentação de Reinaldo FLEURI. Texto digitado. Florianópolis, 1994.

FLEURI, Reinaldo M. “Educação Intercultural: desafios emergentes na perspectiva dos movimentos sociais”; in: Intercultura e movimentos sociais. Fpólis: MOVER/NUT, 1998.

GOHN, M. da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Trad. Vera Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

____________. O método: 4. As idéias. Trad. Juremir Machado da Silva. Portp Alegre: Sulina, 1998.

____________. Ciência com Consciência. Trad. Maria D. Alexandre e M. Alice Sampaio Dória. 2ed. Rio de Janeiro: Bertrans Brasil, 1998.

____________. “Complexidade e ética da solidariedade”. in Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997.

PERASSA, Ivone & AZIBEIRO, Nadir. O Papel Educativo Dos Movimentos Sociais: a experiência da Nova Esperança. Florianópolis: 1992 (texto digitado).

VEIGA NETO, Alfredo. “Olhares...” in Caminhos Investigativos. Porto Alegre: Mediação, 1996.



[1]Para nós, no Brasil, a Intercultura não é uma perspectiva oficial, que pretenda uma nova aculturação ou que leve à “harmonia social”, conseguida mais uma vez pela submissão das culturas marginais ou minoritárias. Entendemos a Intercultura, ao contrário, como uma perspectiva que não apenas reconhece ou admite a Pluralidade Cultural, mas entende a diversidade como forma de construção e valorização da própria identidade e da própria cultura.

[2] Professora/Pesquisadora FAED/UDESC (Centro de Ciências da Educação - Universidade do Estado de Santa Catarina). SC/Brasil.

[3] No sentido apontado por FOUCAULT e trabalhado em VEIGA-NETO, 1995:34.

[4] Comunidade de periferia de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina.

[5] Grande parte da cidade situa-se na Ilha de Santa Catarina. Foram os morros da região central da Ilha as primeiras periferias para onde foram expulsas as classes populares. A partir da década de 70, prefeitura e governo do estado passaram a construir conjuntos habitacionais na parte continental da cidade, no chamado Pasto do Gado, hoje Bairro Monte Cristo, um bolsão onde estão situadas grande parte das comunidades de periferia. Foi nesse local, na beira da Via Expressa que liga a cidade à BR101, que foram armando seus barracos os migrantes que chegavam à cidade ao longo das décadas de 80 e 90.

[6] A esse r espeito ver GOHN, 1997, particularmente Cap. IX.

[7] Ver AZIBEIRO, 1994:48ss.

[8] Era um terreno baldio na Coloninha, bairro de classe média do Continente, não muito distante do Bairro Monte Cristo.

[9] Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis: é o setor da prefeitura que cuida das questões de ocupação do solo.

[10] Projeto de CEDEP (Centro de Evangelização e Educação Popular, em convênio com entidades internacionais e colégios particulares de Florianópolis.

[11] Paulo Freire.


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