Saúde Indígena, Cosmologia e Políticas Públicas


Edir Pina de Barros
Departamento de Antropologia
Universidade Federal de Mato Grosso
edirpina@zaz.com.br


A doença é um fato universal. Mas para além do aspecto biológico, o adoecer é um fenômeno sociocultural. Diversos são os sistemas de representações no que diz respeito ao processo saúde/ doença, a vida e a morte. No Brasil tem-se mais de 200 línguas, 180 delas indígenas. No entanto, as políticas publicas com relação a esses povos , no campo da saúde, não levam em consideração tal diversidade sócio-cultural,. Como todas as políticas públicas, elas são construídas a partir de princípios generalizantes e homogeneizadores.

O grande desafio é fazer com que os direitos garantidos constitucionalmente sejam colocados efetivamente em prática. Mas imenso é o abismo entre o pensar biomédico e o pensar das populações indígenas, que articulam o processo saúde/ doença à cosmologia. Tomar-se-á, aqui, como referencial empírico, a sociedade Kurâ-Bakairi, para demarcar o abismo intercultural que há entre o pensar ocidental e o pensar de populações tradicionais, tendo por referencial a prática da escarificação, condenada e tida como irracional pelo pensar biomédico.

Os Bakairi escarificam os seus corpos em várias situações e momentos de suas vidas. Ou seja, sangram a pele com um sarjador, por eles denominado pain-hó. Tal prática, entre eles, foi registrada pela primeira vez por Karl Von den Steinen, cientista e explorador alemão que, nos idos de 1884 e 1887, dirigiu expedições ao Xingu (1940, 1942). Passado mais de um século, todavia, nada se tem escrito na bibliografia etnológica que venha a desvelar o seu sentido semântico mais profundo. Por que escarificam os seus corpos os Kurâ-Bakairi?

1 - Os Kurâ-Bakairi: Uma Apresentação

Os Kurâ-Bakairi vivem na região de cerrado norte-matogrossense, ao sudoeste do Alto Xingu. Eles são ribeirinhos, pescadores e agricultores, exercendo a caça e a coleta um papel complementar.

Eles se autodenominam Kurâ., termo polissêmico que expressa, stricto sensu, nós, os Bakairi, gente verdadeira, o paradigma da humanidade, por excelência. Neste campo semântico específico, quer dizer ainda o que é nosso. E, ao mesmo tempo, como registrou Steinen, bom , enquanto que kurâpa quer dizer não nós, não nosso, como também ruim, sovina, prejudicial à saúde (1940 : 428).

O significado do termo, como observou Jaime Wheatley é ampliado para abranger saúde e ordem. O verbo cura idale, que é glosado como curar, significa literalmente tornar-se cura de novo (s/d : 9 e 10).

Eles vivem no estado de Mato Grosso (Brasil) – em 11 grupos locais, num total de cerca de 700 pessoas - nas Terras Indígenas Bakairí e Santana.

Santana situa-se no município de Nobres e tem o seu nome emprestado de um afluente do Rio Novo que, desenhando parte dos seus limites, desce em busca do Arinos, tributário do Juruena-Tapajós.

A Terra Indígena Bakairí, na sua quase totalidade, localiza-se no município de Paranatinga, à margem direita do rio Paranatinga ou Telles Pires, afluente do Tapajós. Uma parte dela situa-se no município de Planalto da Serra, à margem esquerda daquele rio. Nas suas vizinhanças encontram-se o morro do Urubu, do Daniel e parte da Serra Azul.

Os Bakairí são ribeirinhos, agricultores e pescadores, cumprindo a caça e a coleta papel complementar. Eles vivem dispersos em diversos grupos, cada qual dominando um território delimitado por rios e riachos. Os recursos nele contidos são, por direito, dos membros que o compõem. Em regra, a denominação dessas unidades político-territoriais corresponde aos nomes dos rios ou riachos próximos aos estabelecimentos. Um indivíduo ou uma família é identificada como pertencente ao local em que vive, havendo uma relação entre identidade e territorialidade. Essa é a unidade sociológica mais ampla nessa sociedade: o grupo local.

O grupo local é constituído, em geral, a partir de um grupo de irmãos de ambos os sexos, ou de dois, que casam-se entre si, sendo liderado por aquele que reuniu forças políticas para tanto. É formado por um número variável de grupos domésticos constituídos, na sua maioria, por famílias elementares, ou seja, compostas basicamente por pai, mãe e filhos. Os chefes desses grupos são os esteios que sustentam a ordem política e jurídica, através de um conselho. Cabe ao líder manter o delicado equilíbrio entre eles e representá-los diante de outros grupos, internos ou externos.

As unidades residenciais são dispostas linearmente, formando ruas, estilo este introduzido pelos agentes do órgão tutor. Mas há sempre um local, ao lado da casa do líder, vivido como se fora o centro, onde fazem reuniões e rituais. Em alguns grupos tem-se o kadoêti, a "casa dos homens", na qual se guardam as máscaras rituais.

A família elementar contém em si um forte princípio de autonomia. Ela pode romper com as alianças estabelecidas e ir residir em outro grupo local onde tenha parentes, seja do lado materno ou paterno, de qualquer um dos cônjuges. Os homens recém-casados vivem na casa do sogro - com exceção dos filhos primogênitos de líderes - até o nascimento do primeiro filho, quando podem escolher aonde residir, se com os parentes do esposo ou da esposa. O sistema de parentesco é bilateral, ou seja, a filiação de um indivíduo se dá através de parentes paternos e maternos. Terminologicamente pai e irmão do pai são igualados, assim como a mãe e a irmã da mãe. Há termos distintos para irmã do pai e para o irmão da mãe. Eles se casam preferencialmente com parentes distantes, social e biologicamente.

A simples utilização de termos de parentesco nas relações interpessoais não garante direitos territoriais, dada a elasticidade do sistema. Um indivíduo tem a possibilidade de acesso a qualquer um dos grupos locais onde residam pessoas cujos nomes ele possa pronunciar. É através dos nomes que ele se situa, sobretudo, na organização social do espaço.

Os nomes são oriundos dos consangüíneos mortos, os quais só podem ser pronunciados quando recolocados em circulação. Idealmente, são os avós maternos e paternos que nominam a criança. Cada qual resgata, no mínimo, um nome de seus consangüíneos mortos e do mesmo sexo da criança. Uma pessoa herda pelo menos quatro nomes, dois pela linha materna, dois pela paterna. Há indivíduos que acumulam dez nomes, o que lhes confere prestígio.

É vedado ao pai e parentes dos pais pronunciar os nomes oriundos da linha materna, sendo o inverso igualmente verdadeiro. Além desses nomes, eles possuem outros em português.

 

2. A Escarificação

A escarificação é feita com o pain-hó, pedaço triangular de cuia, onde são incrustados dentes de peixe-cachorro próximos à borda superior e fixados atrás por meio de um rolete de cera (RIBEIRO, 1988: 170).

O escarificador é um elemento da cultura que não é bem distribuído entre os Bakairi, ou seja, nem todas as parentelas o possuem e aquelas que são "donas" ( sodo) de pain-hó têm prestígio.

A categoria social sodo tem seus correspondentes em outros povos do Alto Xingu, onde os Bakairi, na diáspora, viveram temporariamente: odo para os Kalapalo, igualmente Karib (Basso, 1973: 173), wekehe Mehinakú (Gregor, 1982), wököti entre os Yawalapití ( Viveiros de Castro, 1987). Referida por Steinen (1940) e por Capistrano de Abreu, que a traduziu por "senhor" (1976), ela também se estende aos especialistas rituais e aos donos de máscaras, aos escolhidos por consenso para coordenar eventos, como o "batizado do milho" e, no mundo sobrenatural, às entidades tutoras da mata, de espécies de peixes e de outras espécies animais. Os pais, no sentido social do termo, também são considerados sodo de seus filhos. Cada grupo local é considerado, enquanto coletividade, sodo do território que domina.

A carga semântica do têrmo, exprime uma significação mais geral e mais profunda dessa categoria, fundamental na sociedade em foco e na cultura alto xinguana., como apontou Viveiros de castro (1977: 81). A sua sugestão para a interpretação da categoria correspondente entre os Yawalapíti se aplica à Bakairi: o termo sodo não indica uma idéia de posse apenas, mas uma relação entre sujeito e objeto, e que pode ser concebida em duas direções: uma relação de substância e uma de representação. A primeira articula-se à relação entre genitores e filhos. No segundo caso, se relaciona à idéia de mediador, que permite o acesso (real ou simbólico) ao recurso referido (idem: 81 e 82), como o sarjador.

Nas parentelas que são sodo de escarificador, cabe, via de regra, às pessoas mais idosas a escarificação, quando não à uma pessoa mais especializada.

A escarificação é realizada em dois contextos: 1) público, por ocasião dos ritos pancomunitários e 2) privado, ou seja, no âmbito dos grupos domésticos.

Em uma ou outra situação, a escarificação é sempre seguida de aplicação de plantas medicinais e se articula ao ciclo de uma substância vital nominada ekuru, que é o elemento simbólico mais importante para a compreensão dos diferentes sistemas de classificação utilizados por esse grupo étnico.

Princípios cosmológicos e o ciclo da ekuru

O cosmos - organizado por Kwamóty e seus netos, Xixi e Nunâ - é concebido em várias camadas que se encontram na linha do horizonte. Existem duas terras, uma côncava e outra convexa, sendo uma o molde negativo da outra, cada qual com seus rios e águas subterrâneas. Contendo as águas subterrâneas da terra de cima existiria uma redoma, um imenso guarda-chuva, cujas bordas são mantidas presas às extremidades desta terra por sapos míticos. Entre essa redoma e esta terra fica o ar necessário à vida. O sol e a lua, onde foram residir Xixi e Nunâ, respectivamente, movimentam-se de tal forma que quando nesta terra é dia, na outra é noite e vice-versa. Essas camadas são interligadas por caminhos invisíveis que somente os xamãs podem ver e percorrer.

Outrora essas duas terras eram interligadas por um tipo de escada que Kwamóty deixara para que eles pudessem em ambas transitar. Como passaram a fazer "fuxicos" entre si e entre as duas terras - causando rupturas na sociedade em formação - ele a cortou, ocasionando um dilúvio, do qual se salvaram apenas dois pares de irmãos. As duas terras distanciaram-se mais, o sol e a lua se encontraram. O eclipse de sol é tido pelos Bakairí como prenúncio de retorno ao caos.

Kwamóty controlou o caos colocando a referida redoma, mas abandonou-os à própria sorte. Eles passaram a conhecer a dor, a doença, a morte e a luta pela sobrevivência. Eles se tornaram humanos.

A estrutura do universo se define com a morte, pois a terra em que viviam não aceitou que se enterrassem nela os seus mortos. Kwamóty, num derradeiro gesto, inverte a posição das duas terras. Com ela entra em circulação a mais temida das forças cósmicas: os iamyra, espíritos dos mortos. Cada morto libera dois iamyra, um pelo olho esquerdo e vai habitar os rios desta terra, onde controlam os tutores sobrenaturais das espécies de peixes, de animais aquáticos, de aves ribeirinhas; outro pelo olho direito e vai residir na outra terra. Este são hierarquicamente superiores a todos os demais sobrenaturais, pois presidem os ciclos naturais – inclusive as estações do ano - e a ordem cósmica.

São duas estações do ano: kopâme, o "tempo das águas" (meados de setembro a meados de abril) e âdâpygume, o "tempo da seca" (meados de abril a meados de setembro). Há, ainda, duas sub-categorias que denominam kopâme ipery e âdâpygume ipery, respectivamente o "pé das águas" e o "pé da seca".

Tempo e espaço se relacionam através do ciclo de uma substância vital denominada ekuru. Presente em todos os seres vivos, inanimados e animados, é obtida através de alimentos, fazendo-se presente no sangue. Sem ela o sangue - yunu - coagula, sobrevindo a morte. Tal substância é eliminada através de líquidos, resíduos, secreções e excrementos corporais que, em contato com a terra, é reprocessada pelos vegetais. Na sua forma livre e pura, somente os vegetais a contêm. No intervalo que vai do contato com a terra ao reprocessamento, toda ekuru que é eliminada permanece na sua forma possuída, portando consigo as propriedades daquele que a expeliu. No caso da pessoa humana, das unhas e cabelos cortados, das fezes, do cuspe "levantam kadopy", que são semelhantes a ela, porém sobrenaturais. Seus lugares preferidos são as casas abandonadas, os lugares sombrios. Aparecem aos vivos, assustando-os, o que provoca desmaios e doenças.

Os terrenhos kadopy, que são resíduos dos resíduos corporais, têm existência efêmera, ao contrário dos iamyra, que são essência. Infestações de kadopy e de iamyra, poluem o espaço, tornando-o inóspito, insalubre. E esta é uma das razões da sua dispersão e da sua mobilidade.

Na estação das chuvas, dada a grande umidade reinante, tal substância penetra mais rapidamente no solo, que se reabilita. Já na estação da seca, a falta de umidade imprime no seu ciclo grande lentidão. Apenas nas margens dos rios e riachos seu ritmo é mais acelerado, o que resulta em um terreno mais fértil, menos poluído, mais adequado à vida.

Assim eles explicam a existência dos domínios espaciais que denominam iduanary e pojianary, "região de mata" e "região de capim", respectivamente. Da mata e dos rios é que eles extraem, fundamentalmente, a ekuru necessária à vida. Os Kurâ-Bakairí só se alimentam de vegetais e de animais vegetarianos ou essencialmente vegetarianos., desprezando os animais carnívoros.

Nas matas ciliares se pratica a agricultura e se caça sempre em grupo. Devido aos perigos a elas associados, é vedada a presença de pessoas do sexo feminino, antes da terra ser preparada para o plantio. Dentre eles destacam-se ynhangõnrom, monstruoso sobrenatural, "senhor" das matas, que possui um enorme peito que aperta, jorrando um leite mortal naqueles que a depredam. Ele tem por ajudante Karowi, um pequeno, porém horrendo ser. Nas matas mais fechadas pode-se encontrar os iamyra, que nelas buscam abrigo quando surpreendidos nesta terra pelo dia. Nas roças e capoeiras também pode-se encontrá-los, pois sentem saudades dos "parentes", dos lugares onde viveram e trabalharam. O contato com esses sobrenaturais é fonte de desequilíbrios bio-psíquicos e de morte iminente. Pronunciar os nomes dos mortos significa evocá-los, o que deve ser evitado, até serem recolocados em circulação.

Caçar é uma atividade perigosa, pois cada espécie de animal tem o seu "senhor", ser sobrenatural que a tutela e que se volta contra aqueles que cometem excessos. Há kilâino, ente maléfico fazem os caçadores perderem-se nas matas.

Associados ao domínio aquático, existem muitos sobrenaturais. Além dos "senhores" de cada espécie de peixe, de animal aquático e de ave ribeirinha, tem-se pakororo, enorme onça branca e sobrenatural que vira as canoas dos pescadores, bem como poro tapekéim, imenso e monstruoso peixe que podem virar as canoas e engoli-los vivos. Há, ainda, uma legião de seres sobrenaturais com formas humanas, denominados kurâmã.

Dentre os sobrenaturais relacionados a esse domínio, os Bakairí temem mais os iamyra subaquáticos, que podem assumir formas de peixe. Diante de tantos perigos, o domínio aquático é essencialmente masculino.

3. Alimentação, Reclusão, Fabricação do Corpo e Escarificação

Se a ekuru é continuamente perdida no processo da vida, ela também deve ser reposta em quantidades e qualidades suficientes para se ter saúde. Cuidados também devem ser tomados com relação a ingestão de alimentos ,já que se pode utilizá-los como veículos para se lançar feitiços contra aqueles em relação aos quais se tenha cismas e desejos de vingança. Deve-se, por essa razão, só aceitar alimentos de parentes, sejam eles putativos ou não, mas parentes. Os alimentos, que são fontes de ekuru, a qual se mistura com o sangue, podem ser igualmente, fontes de saúde ou de doenças. Zelos devem ser observados tanto no preparo quanto a sua conservação. Além de se ter modos especiais de preparo de acordo com a natureza da ekuru que cada um deles contém, eles jamais devem tocar o chão porque são candidatos a reprocessamento e porque podem ser contaminados com a ekuru ainda não reprocessada, fonte de perigo e de doenças.

A reclusão - uanki -é praticada por toda pessoa que se encontra em estado liminar e, não raro, todos os que com ela tenham laços de substância. Nessa situação o consumo de alimentos é regulamentado por uma série de restrições e proibições rituais.

Cuidados especiais devem ser tomados no período que é a que envolve a formação de um novo ser. A partir do momento em que a gravidez é identificada, os genitores devem anunciá-la aos seus parentes (bilaterais) próximos e passam a observar uma série de prescrições alimentares e comportamentais para garantir a saúde e a vida do futuro filho. Fazer um filho no útero da mãe é uma atividade que requer muita ekuru dos genitores, por isso deve-se evitar perdê-la em outras atividades. O casal não deve andar longe, nem cansar-se ( o cansaço é decorrente da perda de ekuru). O homem deve permanecer sempre próximo à sua casa, não podendo caçar, derrubar mata, pescar e fazer coivara, nada que exija muito esforço, pois isso poderia resultar em um filho defeituoso, doentio ou natimorto. Não deve participar de rituais, mas manter-se longe dos locais onde são realizados. Não deve também manter relações sexuais com outra mulher, ainda que cesse de praticá-las com a própria esposa já mais ao fim da gravidez.

A mulher grávida deve manter-se igualmente nos arredores de sua casa ou dentro dela, evitando sair à noite, reino dos sobrenaturais, e demorar-se no rio banhando ou lavando roupas. Não deve, durante toda a sua gravidez - e depois, como se verá - cortar os seus cabelos. Fica, enfim, em estado de semi-reclusão.

Os genitores devem evitar os alimentos que contenham ekuru inapropriado à formação do frágil ser por gerar problemas de várias ordens, tais como: pimenta e coisas que amargam (o feto pode morrer); anta (a criança nasce morta ou fica muda); peixe agulha (a criança morre); veado mateiro (quando nasce não dorme, fica só chorando e pode morrer; desmaios consecutivos); capivara (gagueira); tucano (fica boba, com pescoço mole); quelônios (os ossos não endurecem ) ; piraíva (preguiça, custa para nascer); bebida alcoólica (defeitos vários, morte fetal ).

Durante toda a gravidez, os pais de ambos os genitores e seus irmãos germanos devem garantir as condições para a observação dessas restrições alimentares, suprindo-os de alimentos adequados - portanto de ekuru - zelando não só por suas vidas, mas também da do novo ser em formação. Assim eles, indiretamente, ajudam a "fabricar" o bebê, que não é uma questão restrita aos genitores. Se for tempo de pequi, devem coletá-lo e ofertá-lo à gestante para que a pele do bebê nasça bem limpa e bonita. Esses cuidados concorrem para o nascimento de uma criança sadia, para um bom e rápido parto, momento a partir do qual os genitores entram em reclusão.

Enquanto não cair o cordão umbilical, ambos devem alimentar-se basicamente de pogo ("chichas"), especialmente uma delas denominada xunupy, feita de beiju seco (malomalo), de algumas aves como o papa-goiaba (panra), o papagaio (toro), a galinha (aukumã), das quais não se deve ingerir carnes e cartilagens das asas, pés e cabeças, pelos defeitos que podem provocar no bebê, especialmente na estrutura óssea. Veado de qualquer tipo é proibido, porque faz cair cabelos, mas o mateiro é pior, porque, se ingerido, acarretará nele desmaios consecutivos. Desmaiar é extremamente perigoso porque a alma escapa momentaneamente do corpo e pode, em um ataque mais prolongado, não retornar a ele.

Depois que o umbigo cai são introduzidos o arroz, o milho e a mandioca cozida. Peixe, de qualquer espécie, é vetado. Dizem que causa nos pais inchaço na barriga ("barriga d’água") e nos pés, além de efeitos nefastos no bebê.

O pai, depois de quinze ou vinte dias retoma a sua alimentação normal, já anda mais longe e começa a assumir as suas atividades normais. A mãe, acabado o sangue do puerpério, aos poucos vai assumindo as atividades diárias. Mas ambos, quando o bebê apresenta o menor problema, voltam à reclusão e às prescrições alimentares. Todo cuidado é pouco porque ele tem a pele, o corpo e os ossos ainda "moles" e frágeis e sua alma pode fugir com facilidade.

A mãe, sobretudo, deve ser zelosa, pois se entende que tudo o que se ingere é canalizado para o bebê através do leite materno, tajiwaryekuru, que é, por excelência, a fonte de ekuru para ele até cerca de dois ou três anos. Pimenta, cebola, alho, quelônios, manga, peixes de maior porte e outros tantos alimentos devem ser evitados até que a criança deixe de amamentar no seio. O leite materno é responsável pelo acréscimo de carne e sangue, assim como a água ingerida. Ela só pode cortar os cabelos depois da primeira menarca pós-parto, ocasião em que também se cortam pela primeira vez os do bebê. Cortar cabelos de ambos é uma tarefa que cabe à mãe ou a uma irmã mais velha da genitora.

Cuidados especiais de outra natureza devem também ser tomados para que a criança cresça saudável, bonita, iwâkuru: sarjar a sua pele com o escarificador banhá-la com preparados de ervas medicinais, esfregar as suas juntas com carvão de certas madeiras para que fiquem fortes, favorecendo o seus crescimento, protegê-la dos iamyra e dos feiticeiros. Deve-se evitar que o bebê chore, mimando-o, tomando-o ao colo, para que ele não perca ekuru através das lágrimas (enoguru). Se chora, a mãe logo oferece-lhe o seio para acalmá-lo.

Ao menor sintoma de doença pai e mãe, juntamente com a criança, retornam ao estado de reclusão total - que implica na retomada das prescrições alimentares - até que ela se recupere totalmente.

É a ekuru advinda do leite materno e, posteriormente, dos alimentos que permitirá o acréscimo da carne e sangue no qual ela circula, até que o indivíduo atinja a capacidade reprodutiva, marcada na mulher pela primeira menarca e no homem, pelo ritual de perfuração de orelhas.

A reclusão pubertária feminina hoje se resume aos dias em que a jovem fica menstruada pela primeira vez, período em que ela fica "presa" em seu próprio "quarto". Somente a mãe e irmãs têm acesso a ela, que alimenta-se de pogo, e suas pernas, ancas e costas são sarjadas com o pain-hó, recebendo logo após, ervas medicinais. Dizem que tal tratamento deixa a jovem mais bela, saudável e calma. A escarificação assim concorre também para a construção da pessoa, em termos físicos e emocionais. Seja qual for a razão, a aplicação de preparados de ervas medicinais sempre acompanha a escarificação.

A reclusão dos adolescentes do sexo masculino é feita também dentro de casa, durando cerca de 10 dias, tempo em que os homens realizam caçadas e pescarias coletivas. O sadyry, rito coletivo de "perfuração de orelhas", realizado de tempos em tempos é, todavia, realizado no pátio, em frente ao kadoêti ( casa de kado ou "casa dos homens") contando com a participação exclusiva das pessoas de sexo masculino. Mais elaborado, o sadyry compõe o complexo do kado, ritos pancomunitários, de natureza sagrada.

Entre os Kuikuro, igualmente Karíb, habitante do Alto Xingu, Cibele Verani registrou que a escarificação é

realizada com mais freqüência durante a reclusão pubertária, masculina e feminina, é aplicada diferencialmente em partes do corpo feminino para "engordar" as ancas, as coxas e as pernas. Para os rapazes, serve para "fazer crescer" os músculos do tórax, braços e coxas. Após o período de reclusão, é aplicada nos jovens lutadores para mantê-los fortes, principalmente antes dos rituais intertribais que culminam em grandes lutas que consagram campeões (1991: 84).

Ou seja, a escarificação é um recurso, uma tecnologia de elaboração do corpo que se exerce por meio de intervenções sobre os canais de contato entre o corpo e o mundo, como bem expressou Viveiros de Castro, em seu estudo sobre os Yawalapíti (1987:37).

Entre os Bakairi, tanto na reclusão feminina quanto na masculina, os demais membros da família dos jovens púberes observam restrições alimentares e sexuais, para que os resultados dos tratamentos que se voltam para a fabricação do corpo e construção da pessoa tenham efeitos positivos. A não observância dessas restrições pode resultar em transformação dos reclusos em pessoas inakai, "estragadas", anti-sociais, feiticeiras em potencial.

Durante toda a vida os membros da família elementar, de orientação e depois de procriação, devem, no caso de doenças, se abster de alimentos e sexo em favor da saúde de um dos seus. Há assim, no decorrer do ciclo da vida dos seus membros, uma comunicação corporal que só se rompe com a morte.

Além de seu importante papel na construção do corpo em si, a escarificação é uma das práticas terapêuticas mais bem difundidas entre os Bakairi. Aqui se aplica o que escreveu alhures Cibele Verani sobre os Kuikúro: a escarificação é realizada como opção terapêutica - no caso de "canseira", por exemplo - quanto preventiva e refere-se à lógica do excesso de sangue no corpo (VERANI, 1993: 33). Só que, em termos da lógica Bakairi, o excesso não seria de "sangue", mas de ekuru.

A mãe costuma "arranhar" seus filhos quando estes se encontram irrequietos, danados. A danadice é interpretada como excesso de ekuru, que leva a desequilíbrios emocionais, à teimosia e à ira.

Acidentes ofídicos , inchaços no corpo (perna, mão, braço, etc.) também são tratados com a escarificação. Os Bakairi dizem que as mulheres karaíwa (não-indígenas) têm muitas varizes exatamente porque não sarjam seus corpos.

Enfim, importante faz-se sublinhar que a escarificação, seja por uma razão ou por outra, sempre está associada à fitoterapia, através de aplicações sobre a pele sarjada e, algumas vezes, através de tratamentos complementares, como os eméticos que são ingeridos em várias situações de reclusão, sobretudo pelas pessoas do sexo masculino.

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1er Congreso Virtual de Antropología y Arqueología
Ciberespacio, Octubre de 1998
Organiza: Equipo NAyA - info@equiponaya.com.ar
http://www.equiponaya.com.ar/congreso

Auspicia:


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